O município vive uma crise silenciosa com o aumento alarmante de desaparecimentos, onde famílias lutam por respostas em meio à falta de recursos e continuidade nas investigações
Bento Gonçalves enfrenta um desafio que, muitas vezes, permanece invisível aos olhos de quem não vive essa realidade: o desaparecimento de seus cidadãos. Enquanto as recentes enchentes de 2024 trouxeram à tona o desaparecimento de algumas pessoas, essa tragédia é apenas uma faceta de um problema mais profundo e contínuo na cidade.
Nos últimos anos, o munícipio tem visto um número preocupante de pessoas desaparecidas. Até o fechamento desta edição foram contabilizadas 56 pessoas desaparecidas no município, sendo 28 mulheres e 28 homens. Segundo informações do site da Polícia Civil, o último desaparecimento ocorreu ontem, 13 de agosto. Já o desaparecimento mais antigo cadastrado no site é do dia 3 de junho de 2019. Das 56 pessoas desaparecidas apenas quatro são das enchentes de maio, sendo: Lourdes Helena Lazarini, de 71 anos, Nelsa Faccin Gallon, 87 anos, Isabel Velere Antonelo Gallon, 70 anos, e Carine Milani, 40 anos.
Gustavo Kist, comandante do Corpo de Bombeiros Militar de Bento Gonçalves ressalta que existem diversos mecanismos para encontrar as pessoas desaparecidas. “Buscamos todas as informações para ajustar a operação de buscas, informando o escalão superior, e solicitando apoio de outras instituições, inclusive de outros estados, caso necessário, o que depende do ambiente de busca, que poderá ser urbano, parcialmente urbano, rural ou aquático. Usamos todos os recursos disponíveis do Corpo de Bombeiros e todos os demais que são disponibilizados para operação de buscas, como: viaturas, embarcações, drones, sonares, mergulhadores, cães e aeronaves”, pontua.
Kist ressalta que há uma parceria de trabalho com a Polícia Civil para a localização de pessoas de forma mais rápida e eficaz. “Há uma parceria e um contato muito próximo junto a Polícia Civil, a fim de traçar diretrizes de atuação e persecução visando o encontro das vítimas e estruturação de buscas, que proporcionaram o encontro mais rápido de desaparecidos em locais de difícil acesso. Recebemos da AGAS e Consepro uma aeronave não tripulada, drone, com sensor termográfico que empregado já proporcionou a localização de uma vítima em local de difícil acesso na de cidade Taquara/RS, que pertence a área de abrangência do nosso Batalhão. Estes recursos só vem a favorecer o atendimento com excelência pela nossa Corporação à sociedade, sempre visando a salvar vidas e resguardar patrimônio”, conta.
Números alarmantes para Bento
No total, só este ano, já desapareceram 19 pessoas em Bento Gonçalves, um número alarmante diante de pessoas desaparecidas de outros anos cadastrados no site. Ainda há 13 pessoas desaparecidas do ano de 2023, 10 de 2022, cinco de 2021, sete de 2020 e duas de 2019.
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, os desaparecimentos não estão restritos apenas aos eventos catastróficos, como as enchentes, mas também abrangem uma ampla gama de circunstâncias, desde problemas familiares até situações de violência e tráfico de pessoas.
Segundo o professor de Ciência Política da Universidade de Caxias do Sul (UCS), João Ignacio Pires Lucas, o problema de tráfico de pessoas é tão preocupante quanto o de drogas. “Se formos ver pelo crime organizado, hoje o tráfico de pessoas é tão ou mais forte que o de drogas. Há um tráfico humano internacional que é um grande motivador de desaparecimento de pessoas, especialmente de pessoas jovens; mas existem vários motivos para esses tráficos, inclusive em relação a órgãos humanos, escravidão e prostituição. Temos um volume constante de pessoas desaparecidas pelo mundo em que essas causas se destacam e são fruto das relações humanas, da criminalidade, da violência”, ressalta o pesquisador, que também leciona no Programa de Pós-Graduação em Psicologia / Mestrado Profissional da UCS.
Pires alerta que é preciso ter cuidado redobrado com crianças e jovens, principalmente se tratando de pessoas mais suscetíveis a caírem em golpes. “Verificamos muitos jovens que buscam sobrevivência e se arriscam muitas vezes com negócios ilícitos. Essa também é uma preocupação que as famílias têm que ter, pois no tráfico internacional de pessoas, a prostituição e o trabalho escravo são vendidos como se fossem uma grande oportunidade. Mentem e ludibriam esses jovens”, afirma.
Dados que assustam
Conforme apontam os dados no Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública, Prisionais, de Rastreabilidade de Armas e Munições, de Material Genético, de Digitais e de Drogas (Sinesp) juntamente com o Relatório Estatístico das Autoridades Centrais, em 2024, na região Sul do Brasil estão desaparecidas 9.200 pessoas, sendo 4059 do Rio Grande do Sul. No país, o número de desaparecidos é 39.724 pessoas, sendo que o Rio Grande do Sul fica atrás apenas de São Paulo, que possui atualmente 9.598. Com os números totais são em média 218 pessoas desaparecidas por dia no Brasil.
Segundo o pesquisador e professor do curso de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM-SP), Marcelo Moreira Neumann, os parentes dos desaparecidos acabam muitas vezes desistindo por causa da falta de um trabalho contínuo. “Não se tem um trabalho continuado, do ponto de vista da investigação e que leva esse alento para as famílias que estão procurando seus filhos. Independente se esses filhos são menores de 18 anos ou são adultos há um desgaste e uma desistência porque você não vê muito investimento”, pontua.
Para conferir todos os 56 desaparecidos de Bento Gonçalves, acesse o QrCode abaixo ou diretamente no site da Polícia Civil RS. Você também pode filtrar a pesquisa por outas cidades, faixas etárias, sexo e período de desaparecimento.
Relembre o caso de uma das desaparecidas
Hellen Natália de Freitas Lopes, de 25 anos, está desaparecida há oito meses e a polícia ainda não sabe o que aconteceu. Ela foi vista pela última vez em um posto de combustíveis de Bento Gonçalves no dia 9 de dezembro de 2023, na companhia do namorado e de uma amiga. A Polícia Civil de Bento, coordenada pela delegada Deise Ruschel, prendeu o namorado de Hellen, em 19 de dezembro de 2023, por suspeita de envolvimento no sumiço da jovem. A família descobriu, no dia 20 de dezembro de 2023 que a moça sofria agressão do ex-companheiro, que não teve identidade revelada pelas autoridades. A madrasta Juremi Muniz, relatou que ainda não sabem o que realmente aconteceu: “A guria sumiu, a gente não sabe onde ela está ou o que fizeram com ela. A Polícia só fala que está investigando, que não pode falar nada. A delegada juntou tudo e já está no poder judiciário. Não sabemos se vai ter inquérito, se o cara vai ser intimado, condenado, processado. A gente foi até na Defensoria Pública e eles falaram que temos que esperar”, alega.
Segundo a madrasta, o pai de Hellen precisa de um advogado e de ajuda psicológica: “Na realidade o pai dela precisa de uma ajuda e de um advogado para ver o processo pela Defensoria Pública. Ele está com o coração em pedaços, terminou a vida dele. Ele já tinha perdido um filho, só que foi num acidente em Santiago esmagado no trator e aí agora, simplesmente a Hellen sumiu e até hoje não sabemos de nada. Ninguém fala nada, ninguém viu, ninguém sabe”, finaliza.
O Semanário preferiu não expor o nome do pai em vista dos golpes que estão acontecendo com a família. A Polícia Civil de Bento Gonçalves foi perguntada sobre as novidades do caso, mas em razão do não reajuste salarial dos delegados, as entrevistas foram suspendidas.