A crescente discussão sobre a linguagem neutra e a preservação de símbolos nacionais, como o Hino Nacional, tem dividido opiniões no Brasil. Para entender melhor essas questões, entrevistamos a professora Fabiana Kaodoinski, professora Dra. de Letras, que traz uma análise profunda sobre o tema
A primeira versão do Hino Nacional remonta a 1831, composta pelo maestro Francisco Manuel da Silva, logo após a abdicação de Dom Pedro I. Na época, não tinha letra e era conhecido como “Hino ao 7 de Abril”. Durante o Império, foi usado em diversas cerimônias, porém não era oficial. No lugar, havia um específico para o imperador, chamado de “Hino da Carta”, que ocupava esse papel simbólico para o monarca.
Oficialização na República
Com a Proclamação da República, em 1889, foi realizado um concurso para escolher uma nova composição, mas a proposta vencedora foi mal recebida pelo público, que já estava acostumado com a versão de Francisco Manuel da Silva. Em vez de substituí-lo, a nova composição foi usada para criar o Hino da Proclamação da República, e a antiga melodia foi mantida.
Até então, o hino era apenas instrumental. A letra que conhecemos hoje foi criada por Osório Duque-Estrada, um poeta carioca que, em 1909, escreveu os versos que seriam incorporados à melodia. Essa letra, após algumas modificações, foi oficializada por meio do decreto de 6 de setembro de 1922, durante as comemorações do centenário da Independência. A partir dessa data, o Hino Nacional passou a ser oficialmente cantado com a letra de Duque-Estrada. Desde a oficialização, ele passou por pequenos ajustes de interpretação e ritmo, mas manteve-se praticamente intacto em sua estrutura original. Em 1971, com a Lei nº 5.700, o hino ganhou novas regras de execução, padronizando a forma como deveria ser tocado e cantado em eventos oficiais, além de estipular as ocasiões em que seu uso seria obrigatório, como em cerimônias cívicas e educacionais.
Linguagem neutra: inclusão e desafios
A linguagem neutra, que propõe o uso de pronomes como “elu” em vez de “ele” ou “ela”, e termos como “todes” em vez de “todos”, busca ampliar a inclusão, especialmente para a comunidade LGBTQIAP+. No entanto, a professora Dra. de Letras, Da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Fabiana Kaodoinski, destaca que o uso dessa linguagem na escrita ainda precisa ser discutido mais profundamente. “Na oralidade, penso ser legítima a linguagem neutra”, afirma. “Contudo, na escrita, a questão é mais complexa. A língua portuguesa, sendo falada em diversos países, necessitaria de um novo acordo ortográfico para incluir a linguagem neutra, o que parece inviável no momento”, explica.
Fabiana também menciona que, embora a língua seja dinâmica e possa evoluir, a imposição de mudanças linguísticas pode ser problemática. “Se expressões neutras forem inseridas naturalmente no cotidiano, elas podem ser incorporadas ao sistema da língua. Caso contrário, estaremos diante de uma imposição, o que é problemático ao meu ver”, observa.
Complexidade e ensino
O vocabulário rebuscado do Hino Nacional é frequentemente apontado como um desafio para as gerações mais jovens. No entanto, Fabiana vê isso como uma oportunidade pedagógica, e não como um obstáculo. “A apreciação do Hino Nacional oportuniza não apenas explorar a linguagem, mas adentrar na história de nossa nação”, explica. Ela sugere que o Hino pode ser utilizado em sala de aula para discutir a sonoridade, as inversões sintáticas, e o contexto de produção da música. “Pode-se levantar hipóteses sobre a dificuldade de clareza da letra associada ao estilo parnasiano, que primava pela forma e não necessariamente pela compreensão da mensagem”, complementa.
A recente polêmica envolvendo o uso da linguagem neutra no Hino Nacional durante a campanha eleitoral do candidato a prefeito de São Paulo, Guilherme Boulos, também foi abordada pela professora, que considera o uso como um erro, destacando a importância de respeitar os símbolos nacionais. “O uso da linguagem neutra ao cantar o Hino foi equivocado, considerando a Lei nº 5.700 de 1971. Alterar símbolos nacionais é uma infração penal. O Hino Nacional deve ser preservado em sua forma original para manter suas qualidades estéticas e simbólicas”, afirma.
Quando questionada sobre a possibilidade de modernizá-lo para refletir as transformações sociais, ela é enfática em sua defesa da preservação cultural. “Modificar o Hino faria com que ele perdesse suas qualidades estéticas. Sou contra qualquer simplificação de arte”, argumenta. Ela sugere que, em vez de alterar o Hino, outras manifestações culturais e artísticas, como rodas de slam, podem ser usadas para explorar a linguagem neutra.
Desafios linguísticos e culturais
A professora também reflete sobre os desafios linguísticos e culturais que surgem com as discussões de gênero e sexualidade. “A linguagem apresenta relações de poder. As palavras têm força e podem moldar a sociedade, incluir e excluir. O desafio é encontrar formas de representatividade que contemplem toda a sociedade, sem imposições”, destaca. Ela também aponta que as discussões sobre linguagem neutra podem influenciar outras áreas da cultura brasileira, como músicas, poemas, e outras formas de expressão artística. “A linguagem neutra já vem sendo usada em livros literários e músicas, e faz parte do estilo composicional da obra. Talvez o debate sobre o tema impulsione a valorização e a produção de obras artísticas que incluam essa forma de expressão”, conclui.