Por trás da empresária determinada e da presidente da Apescont (Associação dos Contadores de Bento Gonçalves), há uma mulher que construiu sua trajetória com esforço, coragem e sensibilidade. Júlia Liviera é sócia-proprietária da Fluxo Contabilidade e da Reccupera Assessoria Tributária, atual tesoureira do CIC-BG e tem participação ativa em diversas entidades da cidade. Mas sua história começa muito antes do sucesso, em um cenário de limitações, onde a educação era um sonho quase impossível. “Eu hoje me considero uma mulher forte, uma mulher que aprendeu muito com a vida — e, de alguma forma, sim, com a dor, mas isso me deixou mais forte”, afirma Júlia, ao relembrar os desafios enfrentados na juventude. Ela declara isso com firmeza, contando como saiu de casa aos 18 anos, com apenas a sexta série concluída, para retomar os estudos. Vinda de uma família humilde, ela cresceu ouvindo que estudar não era necessário. Hoje, ela lidera uma empresa referência no setor e atua na linha de frente de entidades empresariais do município.
Da experiência no comércio à liderança empresarial

A chegada em Bento Gonçalves foi o primeiro passo para sua transformação pessoal e profissional. “Meu primeiro emprego aqui foi no Mercado Apolo, como expositora, depois fui para o caixa”, recorda. Ela declara com orgulho que trabalhou por dez anos entre as lojas Paludo e Coleccione, onde foi gerente e conheceu o seu marido, Alceu Liviera.
Liviera, sócio-fundador da Fluxo Contabilidade e apaixonado pela profissão, atuou como contador em empresas como a Geremias e a Madecenter. No entanto, seu verdadeiro sonho era empreender — e assim o fez, inaugurando seu próprio escritório em um espaço modesto: o porão da casa dos pais, no bairro Planalto. “Foi meu marido quem fundou a Fluxo”, conta Júlia. Ela revela que, embora tenha iniciado os estudos na área do Direito, decidiu migrar para a Contabilidade a pedido dele. “A insistência dele para que eu mudasse de área faz total sentido hoje”, reflete. Júlia observa que, sem o registro profissional no CRC, não poderia estar à frente da empresa como contadora atualmente.
Transformando dor em força
A perda do marido foi, para Júlia, um dos momentos mais difíceis de sua trajetória. “Lembro que chorava muito, me sentia sem chão, acreditando que não teria forças para continuar. Mas então olhei para os meus filhos, Guilherme, com 13 anos, e Samile, com 15, e disse a mim mesma: “Reage””, relembra, com emoção.
Foi nesse instante que encontrou uma força que nem sabia possuir. Com os filhos como maior inspiração, assumiu a gestão do escritório e seguiu em frente. “Eles só tinham a mim, e, por eles, eu precisava continuar. Transformei a dor em combustível. Parar não era uma opção”. Hoje, reconhece que aquele momento representou uma verdadeira virada de chave, um processo profundo de reconstrução em que a dor se transformou em coragem, e a coragem abriu novos caminhos, tanto pessoais quanto profissionais.
Fluxo Contabilidade

Com 34 anos de atuação, a Fluxo Contabilidade presta serviços a mais de 500 empresas, abrangendo diversos setores e atendendo clientes em todos os estados do Brasil. “Nosso foco está na formação de uma equipe altamente especializada, preparada para oferecer soluções com um olhar estratégico, sempre alinhado às necessidades específicas de cada cliente e às dinâmicas do mercado”, explica Júlia.
A empresa opera com uma estrutura setorizada dentro do escritório, o que garante maior precisão, agilidade e assertividade nas entregas. A equipe é composta por coordenadores, gerência e pela própria Júlia, que atua como diretora. Ela conta ainda com o apoio do sócio Roberto Meggiolaro Junior, responsável pela área jurídica, que está sempre presente nas decisões estratégicas. “Sou como um maestro: talvez não saiba tocar todos os instrumentos, mas entendo a sintonia de cada setor”, compara. Júlia acrescenta que, após anos dedicada à operação, especialmente ao setor fiscal, hoje concentra sua atuação na gestão administrativa e financeira da organização.
O desafio constante da burocracia
Júlia destaca que um dos maiores desafios da contabilidade atualmente é lidar com o excesso de obrigações impostas pelo governo. Segundo ela, a burocracia excessiva acaba desviando o foco do que realmente importa: o atendimento ao empresário. “Muitas vezes, parece que trabalhamos mais para o governo do que para as próprias empresas”, critica.
Outro obstáculo recorrente é a escassez de mão de obra qualificada. Encontrar profissionais que dominem a parte técnica e, ao mesmo tempo, tenham um olhar analítico e estratégico tem se tornado cada vez mais difícil. “Muitos chegam com formação acadêmica, mas sem o preparo prático necessário para atuar com eficiência”, observa.
Júlia reforça que o papel do contador vai muito além da análise de números. “É preciso sentar com o empresário, entender seu negócio, identificar gargalos e propor soluções estratégicas que contribuam para a tomada de decisão”, ressalta. “E é justamente nesse diferencial que a Fluxo se destaca: ao ir além dos números, atua como uma parceira real dos clientes, colaborando para decisões mais seguras e estratégicas”, afirma.
Empresariado de Bento
Com base na convivência diária com empresários dos mais diversos setores, por meio da Fluxo Contabilidade, Júlia tem uma leitura clara sobre o perfil do empresariado de Bento Gonçalves. Ela observa que a maioria dos empreendedores locais compartilha valores como comprometimento, vínculo com a tradição regional e uma gestão prática e objetiva. “Aqui em Bento, o empresário é muito comprometido com o negócio, tem ligação forte com os valores familiares e regionais, e costuma ser muito prático nas decisões”, afirma.
No setor industrial, especialmente nas áreas moveleira, metalmecânica e vitivinícola, Júlia aponta um perfil técnico e focado na produção. “É um empresariado que busca eficiência e continuidade. Mas, em alguns casos, ainda falta o olhar para a governança e o planejamento de longo prazo”, observa. Ela comenta que há espaço para evolução em temas como sucessão, compliance e até a estruturação de holdings.
No comércio, ela enxerga uma transição em curso entre gerações. “Temos empresários mais antigos, com gestão tradicional, e uma nova geração que vem investindo em inovação, canais digitais e experiência do consumidor”, descreve. No entanto, pondera que a mudança ainda enfrenta obstáculos. “A estrutura muitas vezes não acompanha o ritmo da inovação, e a capacitação da gestão ainda é um desafio”, complementa.
Já o setor de serviços, na visão de Júlia, é um dos que mais cresce na cidade, tanto em número quanto em qualificação dos empreendedores. “O setor de serviços se destaca, mas ainda vemos muita dificuldade com planejamento financeiro e o uso de indicadores de desempenho”, alerta.
Apesar dos desafios, Júlia reconhece qualidades marcantes nos empreendedores da região. “O empresariado de Bento é resiliente, trabalhador, orientado por valores familiares e comprometido com o desenvolvimento da cidade”, destaca.
Para ela, o próximo passo é claro: “Se quisermos garantir sustentabilidade e competitividade no médio e longo prazo, precisamos avançar na profissionalização da gestão, usar melhor os dados contábeis nas decisões estratégicas e valorizar o planejamento tributário e sucessório”, aponta.
Liderança feminina e desafios no mercado
Apesar dos avanços, Júlia reconhece que ainda há barreiras significativas que dificultam a presença feminina em cargos de liderança. “Em alguns ambientes, a atuação da mulher em posições estratégicas ainda é recebida com certa cautela. Por isso, é essencial que estejamos conectadas e nos apoiando”, defende.
Ela ressalta como um marco positivo o fato de a atual diretoria do CIC, sob a presidência de Carlos Lazzari, contar com a maior participação feminina da história da entidade. “É uma conquista importante, mas sabemos que ainda há muito espaço para crescer. Muitas vezes, o olhar crítico vem até de outras mulheres, o que evidencia a necessidade de fortalecer nossa rede de apoio”, observa.
Júlia também chama atenção para a baixa representatividade feminina na política local. Para ela, a mudança começa quando as próprias mulheres passam a reconhecer seu valor e sua capacidade de ocupar posições de decisão. “Somos maioria na sociedade, mas ainda minoria nos espaços de representatividade. Precisamos nos fortalecer, incentivar umas às outras e entender que, juntas, podemos ir muito mais longe”, afirma com convicção.
Maternidade e carreira
Mãe de dois filhos, Júlia relembra o esforço diário para equilibrar as responsabilidades da maternidade com os compromissos profissionais. “Dormia quatro ou cinco horas por noite para dar conta da casa, dos eventos e do trabalho”, recorda. Hoje, vê sua dedicação refletida no sucesso dos filhos: a filha está prestes a se formar em Medicina e o filho atua ao seu lado na empresa. “Ver meus filhos trilhando seus próprios caminhos é uma das maiores recompensas da minha trajetória”, afirma.
Ela reconhece que não percorreu esse caminho sozinha. “Tive o apoio do meu marido no início e, depois da sua partida, segui com força e fé. Mas também sou grata à equipe que esteve, e está, ao meu lado, dividindo os desafios do dia a dia com lealdade e comprometimento”, destaca.
A importância da rede de apoio
Ao longo da sua trajetória, Júlia encontrou nos amigos, na equipe da Fluxo, no sócio e no apoio dos filhos já adultos, uma base sólida para seguir em frente. “Se não fosse pelo comprometimento da minha equipe, pela parceria do meu sócio e pelo suporte dos meus filhos, eu não conseguiria me dedicar com a mesma intensidade às entidades e conselhos dos quais participo. Sou profundamente grata por isso”, afirma.
Para ela, contar com uma rede de apoio é essencial em qualquer jornada. “Ter pessoas ao nosso lado, que acreditam no propósito e caminham juntas, faz toda a diferença. Ninguém constrói nada sozinho”, conclui.
Apescont em nova fase

Júlia assumiu a presidência da Apescont em janeiro de 2025, após anos de atuação como diretora de cursos e coordenadora. Desde então, tem se dedicado a fortalecer a presença e a representatividade da associação, promovendo aproximação com os profissionais da área e modernizando a comunicação. Hoje, a entidade conta com site, e-mail e Instagram próprios, ferramentas importantes para dar visibilidade às ações da Apescont e aproximá-la da classe contábil.
Um dos avanços mais significativos foi a conquista de um espaço físico dentro da UCS, viabilizado por meio de uma parceria com a coordenação do curso de Contabilidade e a reitoria da universidade. Esse novo ambiente tem possibilitado a realização de projetos, encontros e atividades voltadas ao fortalecimento da profissão.
Júlia destaca que conta com o apoio constante do vice-presidente da associação, Lincoln Gadelha, que tem estado ao seu lado em todas as iniciativas, assim como os demais membros da diretoria, comprometidos com a missão de transformar a Apescont em um espaço de união e valorização profissional.
Apesar das conquistas, ela reconhece que ainda há um caminho importante a ser trilhado. “Ainda precisamos avançar muito. A classe contábil é forte, mas muitas vezes realiza ações relevantes que não ganham a visibilidade que merecem. Precisamos nos enxergar como parceiros de profissão, e não como concorrentes. Quando caminhamos com o mesmo propósito, ganhamos força, representatividade e respeito na sociedade”, afirma.
Com uma visão clara de futuro, Júlia acredita que a mudança começa de dentro para fora. “É hora de nos unirmos, de valorizar nossa atuação e de ocupar o espaço que é nosso por direito. O contador está presente na base de todas as decisões empresariais, precisamos mostrar a grandeza desse papel com orgulho e união”, destaca.
Uma visão crítica e propositiva sobre Bento
Com um olhar atento e atuação ativa em diversas frentes do desenvolvimento local, Júlia acredita que Bento Gonçalves é uma cidade com enorme potencial, mas que ainda precisa alinhar melhor seus projetos a uma visão clara de futuro. “Temos força econômica, capital humano e uma identidade única. No entanto, muitas vezes esbarramos em interesses isolados e na falta de continuidade entre gestões públicas, o que compromete a execução de ideias transformadoras”, avalia.
Para ela, o caminho passa por mais planejamento estratégico e diálogo entre poder público, setor empresarial e entidades representativas. “O que falta não é capacidade, é vontade de construir juntos. Quando as decisões são pensadas de forma integrada, toda a comunidade sai ganhando”, defende.
Ao falar sobre o turismo, setor essencial para a economia local, Júlia afirma que é preciso ir além da estrutura física. “Temos vinícolas premiadas, paisagens deslumbrantes e uma gastronomia riquíssima, mas ainda falhamos na formação de pessoas, especialmente no domínio de idiomas. É urgente investir em capacitação em inglês e italiano, por exemplo, para receber bem quem nos visita”, propõe. Ela acredita que parcerias entre comércio, entidades e o poder público podem preencher essa lacuna de forma eficiente e duradoura.
Apesar dos desafios, Júlia mantém uma visão otimista: “Bento tem tudo para se tornar uma cidade modelo em desenvolvimento sustentável, inovação e turismo. Mas, para isso, é preciso sair do discurso e partir para a ação, e, acima de tudo, agir em conjunto. O futuro da cidade depende do quanto formos capazes de unir forças em torno de um propósito comum”, diz.
Ela destaca, inclusive, iniciativas que apontam para esse caminho, como o projeto Bento+20, voltado ao planejamento estratégico de longo prazo. “É um avanço significativo, porque olhar para o futuro com clareza é essencial. No entanto, essa construção só será efetiva se for feita por meio de um diálogo aberto e inclusivo, que envolva governo, entidades e o setor empresarial. Na maioria das vezes, o que falta não é competência, é vontade de cooperar. E quando essa colaboração acontece, toda Bento sai ganhando”, afirma.
Inovação e juventude
Júlia vê na juventude uma geração repleta de criatividade, visão de futuro e desejo de transformação. No entanto, faz um importante alerta: a inovação precisa estar acompanhada de preparo e responsabilidade. “Percebo jovens extremamente inteligentes, com acesso a ferramentas poderosas, mas muitas vezes dependentes de soluções automatizadas. Alguns não dominam nem o básico, como o uso de uma planilha de Excel, porque se habituaram a buscar respostas prontas. A tecnologia é uma aliada valiosa, mas jamais substitui o conhecimento prático”, destaca.
A quem está iniciando na jornada empreendedora, Júlia compartilha uma mensagem direta, fruto de sua própria trajetória: “Tenha coragem de tentar, mesmo sem garantias. Errar faz parte do caminho, é o erro que ensina, fortalece e amadurece. Mas o que sustenta o sucesso ao longo do tempo é saber quem você é. Mantenha seus valores, caminhe com verdade e não se perca tentando agradar os outros. Propósito, ética e dedicação constante são os pilares que tornam qualquer sonho possível”, conclui.