A internet, antes vista como ferramenta de conexão, torna-se um terreno fértil para a proliferação de grupos radicais que cooptam jovens em busca de pertencimento
Em uma sociedade cada vez mais digitalizada, a influência das redes sociais na formação de identidades e na adesão a grupos específicos tem se tornado um tema central de debate e preocupação, especialmente entre as gerações mais jovens. Em entrevista, a socióloga Aline Passuelo, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), lança luz sobre a complexa dinâmica que leva jovens, inclusive em cidades como Bento Gonçalves, a serem cooptados por grupos que, muitas vezes, propagam ideias extremistas e discursos de ódio.

“Muito tem se debatido essas questões dos jovens e do ingresso nesses grupos que, muitas vezes, para as outras gerações, principalmente pais, professores, adultos em geral, são grupos que teoricamente a gente não tem acesso, porque são grupos que também disseminam ideias e sabem lidar muito bem com os algoritmos das redes sociais”, inicia a socióloga.
A especialista aponta para a arquitetura das plataformas digitais como um fator crucial nesse processo de adesão. “É que esses jovens, dependendo dos interesses ali dentro das redes, eles vão sendo quase que bombardeados por esse tipo de conteúdo. Essa exposição constante e direcionada, facilitada por algoritmos cada vez mais sofisticados em mapear potenciais membros, intensifica a disseminação desses grupos, que antes eram menos localizados e com menor alcance. Claro que as redes sociais e essa eficiência das redes em mapear o público potencial, é exacerbado e acaba tomando uma proporção que anteriormente nem se imaginava”, constata Aline.
A socióloga contextualiza o fenômeno em um cenário de profundas transformações sociais e questionamentos de hierarquias tradicionais. “Nas últimas décadas, temos passado por uma série de mudanças, socialmente, devemos pensar em mudanças e questionamentos de hierarquias e de pertencimento a grupos que anteriormente a gente não tinha”, afirma.
As pautas relacionadas à orientação sexual, identidade de gênero, feminismo e questões raciais, que buscam desconstruir estruturas de poder historicamente estabelecidas, geram reações em diferentes segmentos da sociedade. “E isso faz com que determinados grupos sintam que não tinham um local, vamos dizer, de destaque, um local nessa sociedade, e faz com que esses grupos se ressintam de novas pautas. Esse ‘ressentimento’ é particularmente forte em grupos que tradicionalmente ocuparam posições de poder, como a masculinidade hegemônica. ‘Vamos pensar exatamente no lugar do masculino na nossa sociedade, que ser homem e sempre de partida já garantiu um local de destaque na nossa hierarquia social, mas que esses lugares têm sido, de fato, questionados por outros grupos que sempre foram excluídos”, explica Aline.
A reação a essa perda percebida de centralidade não se traduz, em geral, em uma abertura para o diálogo e para a escuta das demandas de grupos minoritários. É nesse caldo cultural de ressentimento e dificuldade em lidar com a diversidade que florescem discursos de ódio e a eleição de inimigos comuns. “Então, muitas das questões que são atuais, são questões que vêm a partir de um ressentimento desses grupos, de não compreender, de não conseguir suportar que a sociedade é diversa, que a gente precisa construir, garantir um espaço para todos”, afirma a socióloga, enfatizando que o discurso de ódio, o machismo, o racismo e outras formas de violência contra minorias são fortalecidos por essa incapacidade de lidar com o diferente.
A eleição de um inimigo comum, como exemplificado historicamente pelo Holocausto, possui um potencial destrutivo alarmante. “Quando os nazistas elegem os judeus como inimigo a quem todas as mazelas do mundo são destinadas como culpadas, isso acaba justificando uma série de crimes, de genocídios, e isso é muito grave. No contexto contemporâneo, esse mecanismo se manifesta em discursos misóginos, como os propagados por grupos Red Pill, que elegem as mulheres como as responsáveis pela exclusão de determinados homens. Para mim, a primeira questão é uma total desconsideração de que as mulheres, enquanto categoria, elas sempre foram oprimidas e foram colocadas em posições subalternizadas nas hierarquias. O discurso que faz a cola entre esse grupo é de que não, são as mulheres que são as responsáveis por esse determinado grupo de homens serem excluídos” esclarece sobre o fato gerador destes discursos.
A vulnerabilidade dos jovens, especialmente adolescentes, a essa manipulação é particularmente preocupante. “Infelizmente, vão ser os jovens, então os adolescentes que vão ser capturados por esses discursos. A adolescência, com suas inerentes inseguranças e a busca por identidade e pertencimento, torna os jovens alvos fáceis para narrativas simplistas e polarizadas. A adolescência é uma fase de transição, é aquela fase da saída da infância, da entrada na vida adulta, de muitas questões, muitos dilemas, não é uma fase tranquila, é uma fase de muitos desafios, e aí nesse tornar-se adulto, de como eu vou construir minha identidade, como eu vou me afirmar nesse mundo, e nesse mundo que é hostil, e é hostil para todos e todas, a quem eu vou me filiar?”, neste contexto, Aline explica que eles se tornam alvos fáceis para receber esse discurso e passar a propagá-lo.
Enquanto os meninos são frequentemente atraídos por discursos de ódio misóginos e pela busca de uma masculinidade tóxica, as meninas são, muitas vezes, capturadas pela pressão por padrões de beleza irreais, também intensificada pelas redes sociais. “Então, para a busca de padrões irreais, de corpos muito magros, de determinado padrão de cabelo, de estar no mundo, de vestimenta, e, mais uma vez, a gente vê as redes sociais como uma das vias que esse discurso circula e acaba capturando. Essa dinâmica cria um ciclo vicioso, onde a exclusão percebida por um grupo alimenta a insegurança e a busca por padrões em outro”, reflete a socióloga.
Diante desse cenário complexo, Aline aponta que a escola emerge como um espaço crucial para promover essa escuta e o desenvolvimento do senso crítico nos jovens. “Se a gente não tiver também espaço, seja na família, seja na escola, que estejam abertos para essa escuta, que sejam formados por pessoas que não vão cortar qualquer manifestação que seja diferente do esperado, isso acaba fazendo com que esses jovens busquem esses grupos, que são os grupos que estão nas redes sociais, que vão ser, em muitos casos, os grupos de acolhimento àquelas questões”, alerta a socióloga.
A preocupação com o crescimento desses grupos em cidades do interior, como Bento Gonçalves, é também abordada por Aline. “É claro que a internet, ela rompe essa barreira da distância, então a inclusão nesses grupos ela é muito mais facilitada, porque a gente tem a internet, as redes sociais, mas a gente tem que pensar que quanto menores os municípios, menor diversidade, menor diferença entre as pessoas a gente vai ter. Em comunidades menores, a menor exposição à diversidade de ideias e a tendência a conservar modelos sociais tradicionais podem criar um ambiente mais propício à adesão a discursos extremistas, que oferecem respostas simplistas a um mundo em constante mudança”, Aline reforça.
A socióloga conclui intensificando o papel fundamental da educação e do diálogo na desconstrução de padrões nocivos e na promoção de uma sociedade mais inclusiva e tolerante. “Acredito que principalmente as escolas, cada vez mais têm um papel essencial nessa escuta, nesse diálogo, porque o final da infância e a adolescência, são um momento de questionar, da experimentação, então se a gente não tiver também espaços abertos para essa escuta, isso acaba fazendo com que esses jovens busquem esses grupos e não a internet”, finaliza