Segundo a Polícia Civil, a maioria dos entregadores está vinculada a redes que operam com fornecedores comuns e cobram taxas periódicas para custear advogados, armas e outras despesas do grupo
O tráfico de drogas em Bento Gonçalves tem assumido uma nova face: a tele-entrega. O esquema, que imita a logística de aplicativos de entrega, espalhou-se pela cidade nos últimos anos, tornando-se uma modalidade cada vez mais utilizada por criminosos para despistar a polícia e alcançar usuários em diferentes bairros.
A modalidade ocorre predominantemente em âmbito local ou regional, abrangendo, em Bento Gonçalves, municípios vizinhos como Garibaldi e Carlos Barbosa. “Os líderes desses esquemas geralmente adquirem drogas de fornecedores ligados ao mesmo grupo criminoso e organizam a distribuição com seus subordinados. As investigações frequentemente identificam e responsabilizam tanto os coordenadores quanto os fornecedores, permitindo desmantelar partes dessas redes”, frisa o escrivão Edu Moraes de Souza, da 1ª Delegacia de Polícia Civil de Bento Gonçalves. Raquel Peixoto também atua nas investigações como delegada titular da 1ª DP.
De acordo com o soldado Jonathan Deolinda, do 3º Batalhão de Polícia de Áreas Turísticas (3º BPAT), a Brigada Militar percebeu um aumento significativo nessa prática especialmente em 2024. “A BM e a Polícia Civil realizaram diversas prisões ligadas a tele-entrega de drogas nestes dois anos, especialmente em 2024. Não há estatísticas exclusivas, mas a prática cresceu visivelmente”, afirma.

Segundo ele, os criminosos atuam de forma independente na maioria das vezes, normalmente em duplas ou sozinhos, usando motos e carros comuns. Para disfarçar, chegam a se passar por entregadores de comida. As drogas mais apreendidas nesse tipo de operação são cocaína e maconha. No entanto, para Moraes, as investigações apontam que esses esquemas, embora relativamente independentes, são subordinados a uma organização criminosa maior. “A maioria dos entregadores está vinculada a redes criminosas organizadas, que operam com fornecedores comuns e cobram taxas periódicas para custear advogados, armas e outras despesas do grupo”, revela.
Ele frisa que cada esquema conta com divisões claras: gerentes responsáveis pela compra da droga, armazenadores que fracionam o material, atendentes que recebem os pedidos e entregadores, frequentemente disfarçados de motoristas de aplicativos ou motoboys, utilizando motocicletas ou carros. “A comunicação entre traficantes e usuários ocorre predominantemente por redes sociais, com destaque para o WhatsApp e aplicativos similares”, comenta.
A Polícia Civil tem observado esse aumento significativo do tráfico na modalidade, em substituição parcial às tradicionais “bocas de fumo”, que ainda persistem em alguns pontos da cidade apesar das frequentes operações policiais. “É oferecido maior discrição ao usuário, que pode receber a droga em local de sua escolha, sem a necessidade de se deslocar a áreas de risco. Para o traficante, a tele-entrega reduz a exposição, pois evita a permanência em pontos fixos, diminuindo o risco de prisões em flagrante. Diante desse cenário, a 1ª Delegacia de Polícia tem priorizado investigações voltadas a essa prática, resultando em dezenas de prisões em flagrante anualmente. Essas ações decorrem de investigações minuciosas, que permitem não apenas a captura dos entregadores, mas também a identificação e indiciamento de armazenadores e líderes dos esquemas”, explica o escrivão.

Além da cocaína e maconha, em menor escala também há apreensões de ecstasy, enquanto usuários de crack ainda buscam pontos fixos de venda. “Estes tendem a adquirir a droga em “biqueiras”, já que frequentemente não possuem acesso a celulares, muitas vezes trocados por entorpecentes, o que inviabiliza pedidos por redes sociais”, salienta Moraes.
Os entregadores flagrados transportando drogas frequentemente alegam ser apenas usuários, transportando pequenas quantidades para reforçar essa narrativa. Contudo, as investigações da Polícia Civil reúnem evidências que comprovam a prática de tráfico, resultando em prisões em flagrante. “Esses indivíduos respondem por tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/06) e, em muitos casos, por associação ao tráfico (art. 35 da mesma lei)”, frisa.
A pena máxima para esses crimes, somadas, pode chegar a 25 anos de reclusão, ajustada conforme agravantes, majorantes ou atenuantes aplicáveis ao caso concreto. Mesmo assim, o ciclo de reincidência preocupa: líderes continuam coordenando as operações de dentro dos presídios, graças ao acesso a celulares. “Os entregadores, por sua vez, são considerados mão de obra descartável, rapidamente substituídos por novos recrutas atraídos pela promessa de ganhos rápidos, o que permite a continuidade das operações ilícitas”, destaca o policial.
Moraes ressalta que há diversos obstáculos que impedem que um indivíduo preso e condenado de fato deixe, mesmo que temporariamente, de se envolver com o tráfico de drogas. “Benefícios como a progressão de regime permitem que condenados, mesmo reincidentes, cumpram apenas parte da pena, retornando rapidamente às atividades criminosas. Essas questões criam um ciclo de reincidência, dificultando a interrupção definitiva das atividades ilícitas e resultando em um trabalho policial desafiador”, diz.
A investigação do tráfico por tele-entrega apresenta desafios devido à sua natureza discreta. “Mas a Polícia Civil dispõe de um amplo conjunto de ferramentas investigativas, que combinam métodos tradicionais e tecnologias avançadas. Essas ferramentas permitem identificar e prender os envolvidos, além de reunir provas robustas para subsidiar condenações pelo Poder Judiciário. Antes da prisão em flagrante, são elaborados relatórios de investigação detalhados e representações por medidas cautelares, como mandados de busca e apreensão, prisões temporárias ou preventivas, garantindo a eficácia das operações”, informa Moraes.
Cooperação
Apesar da mobilidade do crime, que dificulta a atuação, a Brigada Militar tem reforçado ações conjuntas com Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, 4º Batalhão de Polícia de Choque (4º BPChq), Polícia Penal e Guarda Civil Municipal. Entre elas, a Operação Cerco Fechado, que atua diariamente em diferentes pontos da cidade, além de ações como Força Total e Fecha Quartel. “São desencadeadas com base em informações da inteligência e têm como objetivo garantir a segurança da comunidade. O combate ao tráfico e aos Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLI) continuam ativos e integrados com estas ações regulares em diversos bairros”, destaca Deolinda.
No entanto, para Moraes, a cooperação entre a Polícia Civil, a Brigada Militar e o Ministério Público ocorre, mas não de forma plenamente integrada. “A troca de informações muitas vezes se dá informalmente, como por meio de grupos de WhatsApp entre agentes de segurança. O Ministério Público, por meio do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (GAECO), conduz investigações voltadas a crimes associados, como lavagem de dinheiro. Em Bento Gonçalves, o Ministério Público tem apoiado as investigações policiais, frequentemente endossando pedidos de medidas cautelares, como mandados de busca e apreensão e prisões, o que facilita o avanço das operações”, pontua.
Para a população, tanto Brigada quanto Polícia Civil reforçam a importância da denúncia anônima. A Brigada recebe informações pelo 190 e pelo telefone (54) 996571353. Já a Polícia Civil disponibiliza o número (54) 98417-8487, via WhatsApp, diretamente com a Seção de Investigações, além do atendimento presencial na delegacia (Rua Assis Brasil, 428, Centro, Bento Gonçalves). “Muitas investigações bem-sucedidas se iniciam a partir de denúncias anônimas, que são fundamentais para a repressão ao tráfico”, finaliza.