Em meio a relatos de ataques a terreiros e vandalismo em locais sagrados, religioso, representante de movimento negro, autoridade policial e pesquisador ressaltam a importância do respeito mútuo, enfatizando a necessidade de promover o debate e a conscientização sobre o tema, visando combater o preconceito e garantir o respeito à diversidade religiosa

Considerada por pesquisadores e integrantes de movimentos de luta, a intolerância religiosa é uma questão histórica que ganha nova dimensão na era digital, onde a visibilidade proporcionada pelas redes sociais amplifica suas manifestações. No entanto, o que tem impulsionado essa situação é a postura de pessoas públicas, como agentes políticos e influenciadores, que expressam de forma intolerante suas opiniões sobre religiões de matriz africana. Esse comportamento encontra eco em parte da população, que acaba por disseminar discursos preconceituosos, muitas vezes motivados pelo desconhecimento das crenças afro.

Prova disso são os mais recentes ataques a profissão de fé, em recentes episódios que ilustram essa problemática. A empresária Michele Mendonça Dias Abreu, por exemplo, foi formalmente indiciada pelo Ministério Público de Minas Gerais por associar as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul à “ira de Deus”, citando o grande número de terreiros no estado como motivo. Já o Padre Paulo Santos, de Nova Andradina (MS), está sendo processado por representações de religiões de matriz africana após afirmar, durante uma missa solidária, que o Rio Grande do Sul havia abraçado a bruxaria e o satanismo.

Na região, pelo menos dois relatos vieram à tona nos últimos meses. Em ambos os casos, atos de vandalismo provocaram destruição e danos em dois terreiros de religiões de matriz africana. Apesar de serem fatos isolados, o debate sobre o assunto vem à tona, onde representantes de movimentos, entidades e os próprios líderes religiosos se manifestam sobre a situação.

Conforme o coordenador do Movimento Negro Raízes de Bento Gonçalves, Marcos Flávio Dutra Ribeiro, a intolerância tem raízes profundas no período escravagista, quando os negros trazidos para o Brasil foram discriminados por suas crenças africanas, perpetuando a associação do negro ao que é considerado ruim. “Após este período, quando formam a nação Brasileira, mas que são ‘apartados’ da sociedade por conta do racismo, preconceito e por conseguinte resulta também na intolerância religiosa, em torno das divindades africanas, formando uma espécie de ‘conceito’ de que ‘tudo que é ruim, vem do negro’. Cabe ressaltar que os professos de Matriz Africana, desconhecem a figura de satã ou do demônio, já que esta figura ou denominação faz parte da crença católica, como figuração do mal, e não pertence e nem figura nos cultos africanos”, aponta.

Ribeiro, que atua fortemente nas ações de valorização da cultura e costumes do povo negro na Capital Nacional do Vinho, destaca o papel fundamental da Entidade na educação e conscientização da sociedade. Através de ações em escolas, o movimento valoriza a cultura negra e combate o racismo, o preconceito e a intolerância religiosa desde a infância, buscando construir uma sociedade mais justa e igualitária. “O Raízes surge para os demais segmentos da sociedade como cultura e social, escolhe primeiramente a educação por acreditar que a mudança deve ter seu ‘start’ nas crianças e jovens, pois este processo de retirar esta tríade de chagas da sociedade formada pelo racismo, preconceito e intolerância religiosa, deve ser trabalhado com personalidades em formação, ainda livres de estereótipos preconceituosos”, revela.

Número de adeptos às religiões de matriz africana aumenta em Bento

Juliano de Abreu, que é Olorixá e Babalawo, cujo nome religioso é Ifatemi-lade Taye Elebuibon, participa da doutrina há cerca de 36 anos, ainda quando era adolescente.

Desde então, seu trabalho é realizado em Bento Gonçalves. Questionado sobre episódios discriminatórios por professar sua fé, ele recorda que aconteceram com vizinhos que não entendiam a cultura e a religiosidade da cultura Afro. “Associavam nossos costumes com Magia Negra e afins”, recorda.

Apesar da situação, Abreu nunca precisou registrar ocorrências policiais sobre atos diretos de intolerância. “Em um episódio fui chamado pela Justiça por perturbação do sossego alheio por causa dos cantos. Sendo que sempre respeitei os horários de silêncio”, conta. Ele aponta que outras denominações cristãs, por exemplo, extrapolam sobre o volume em seus templos e nem por isso são acionadas pela lei. “Igrejas fazem muito mais barulho. No final a Justiça ficou a favor dos vizinhos, nisso senti a intolerância, pois na mesma rua tinham igrejas evangélicas que excediam os decibéis permitidos e com eles nada aconteceu”, recorda.

O episódio passado não intimidou o religioso a seguir com a sua fé. Ele conta que atualmente, com a chegada de novos moradores em Bento Gonçalves, o número de adeptos às religiões de matriz africana aumentou consideravelmente. “Hoje, cultuar acabou se tornando algo mais comum do que décadas atras. Os jovens também estão com outra mentalidade, não foram criados dentro de uma cultura cristã pragmática”, observa.

Para o futuro, Abreu espera que a sociedade seja mais aberta e inclusiva, sem inibir ou banir alguém por aquilo que professa. E cobra dos seguidores que não tenham vergonha ou medo de defenderem sua fé, já que o país é laico, ou seja, não defende uma única religião. “O que falta para o povo de axé é exigir, mas também dar-se o respeito. Protegerem-se entre si e fazer valer o que a Constituição prevê. Promover atos culturais que divulguem aspectos esclarecedores, ainda estamos muito fechados, com medo do preconceito e julgamentos”, revela.

Na região, dois casos acabaram sendo registrados na Delegacia de Polícia

Recentemente, um terreiro localizado em Vila Azul, no município de Veranópolis, foi alvo de vandalismo, destacando a urgência de combater a intolerância religiosa. Durante a madrugada, o local foi invadido, resultando na destruição de imagens e objetos sacros. Como nada havia sido roubado, a situação foi caracterizada como intolerância religiosa e vandalismo.

Conforme o coordenador do Movimento Negro Raízes, ao tomar conhecimento da situação, prestou apoio e numa parceria com o Ministério Público, promoveu ações socioeducativas para conscientizar a comunidade e combater o racismo e o preconceito em todas as suas formas. “A orientação para situações como esta, é de imediato procurar as autoridades policiais para registro de um boletim de ocorrência e, em paralelo, encaminhar denúncia para o Ministério Público do Município”, explica.

O mais atual foi registrado na semana passada, em Farroupilha. A casa de um pai de santo, localizada no bairro Primeiro de Maio, foi alvo de um ataque com pedras.

Segundo o Pai Carlos de Ogum, responsável pelo templo de Umbanda Pai Joaquim de Angola e Ogum Sete Ondas, o incidente ocorreu durante uma sessão religiosa que reunia fiéis no templo. O religioso acredita que o ataque foi motivado por intolerância religiosa.

Após o ocorrido, Pai Carlos registrou um boletim de ocorrência na Delegacia de Polícia local, buscando a investigação do incidente e a punição dos responsáveis conforme a lei. Ele destacou que o templo possui câmeras de monitoramento que podem auxiliar na identificação dos autores do ataque.

Penas contra intolerantes podem chegar a três anos de prisão

O delegado Éderson Bilhan, responsável pela condução das ações na 1ª Delegacia de Polícia de Bento Gonçalves, ressalta que não tem conhecimento de casos de intolerância religiosa na cidade. Há pouco mais de uma semana no cargo, ele indica que situações anteriores ao seu comando precisariam ser buscadas nos registros. Porém, recorda que no período em que esteve atuando em Farroupilha, o número de casos envolvendo intolerância religiosa aumentou. “Claro que não é algo ainda, me parece, tão expressivo como outros delitos que também decorrem de algum tipo de injúria, algum tipo de intolerância. Por exemplo, hoje nós temos registros de certa forma bem consideráveis relacionados à injúria racial, injúria e intolerância racial. Mas claro que existem crimes”, afirma.

Segundo ele, as causas para esse tipo de crime ocorrem, na maioria das vezes, pela falta de conhecimento das pessoas. Quando esses incidentes são expostos e discutidos abertamente, muitas vezes na mídia e nas redes sociais, isso desperta a atenção das pessoas e as encoraja a tomar medidas. “Isso acaba alertando as pessoas, encorajando, eventualmente, quem for vítima de algum tipo de intolerância religiosa, a procurar as delegacias”, afirma.

Conforme Bilhan, uma das maneiras mais concretas e eficazes de lidar com casos de intolerância religiosa é através do registro de ocorrência policial. Embora não seja o único meio disponível, é frequentemente o mais adequado para iniciar uma investigação sobre tais situações. Ao registrar a ocorrência, as autoridades policiais podem coletar informações importantes sobre as circunstâncias do incidente, o que é essencial para entender melhor o caso. “E as vítimas, por óbvio, devem procurar, tendo uma situação concreta, a delegacia mais próxima, registrar o fato, e instaurar inquérito policial. As penas hoje, dependendo do contexto de intolerância, de racismo religioso, podem chegar até três anos. É um crime sério, grave, sem contar que é repugnante socialmente”, garante.

Reflexões sobre a intolerância religiosa e os estereótipos contra os credos de matriz africana

O desafio de respeitar o que é diferente, especialmente no contexto das religiões de matriz africana, reflete uma complexidade enraizada em preconceitos históricos e falta de compreensão cultural. Muitas vezes, a intolerância emerge da ignorância e do medo do desconhecido, alimentando estereótipos e visões distorcidas. Conforme o filósofo Artur Lopes, a aceitação e o respeito pela diversidade religiosa exigem um esforço consciente de educação, diálogo e empatia, desconstruindo barreiras e promovendo a tolerância como um valor fundamental em uma sociedade pluralista. “O que é distinto (conceito estético de Enrique Dussel) nos gera estranheza, desconforto e de uma certa maneira faz nos sentirmos ameaçados. Percebemos isso quando enfrentamos uma situação inusitada em nossas vidas. Isso, geralmente, se deve ao problema de baixa intelectualização. Ou seja, quando não compreendo e não tenho recursos argumentativos, tendo ao recurso da violência. Mas é necessário superar esse momento negativo. Isso se faz através da aproximação e compreensão do que estamos experienciando”, observa.

Para Lopes, a questão do respeito às religiões se torna ainda mais complexa quando é considerado se esse respeito é genuíno ou apenas uma máscara para encobrir o preconceito subjacente. “A questão é bastante complexa, pois será que estamos falando de um respeito que apenas vela o preconceito? ‘Não seja preconceituoso pois isso pode dar cadeia!’. A partir do momento em que se percebe o outro como um ser humano que tem necessidades, carências e principalmente qualidades que lhe emprestam um colorido diferente, percebemos que para o além do respeito, essa outra pessoa precisa de acolhimento”, garante.

Conforme o filósofo, a questão sobre se a nova geração é mais respeitosa ou se simplesmente segue os padrões aprendidos dos pais é complexa. “Os seres humanos agem de acordo com o aprendizado que eles têm. Ou seja, a probabilidade de uma criança manifestar um comportamento preconceituoso é muito maior em uma sociedade preconceituosa”, afirma.

Segundo Lopes, quando começamos a perceber que certos comportamentos morais resultam em consequências negativas, somos incentivados a ajustar nosso comportamento para obter melhores resultados. “Contudo, se apenas importamos um catálogo moral de certo e errado em nossas vidas, a tendência de repetirmos os comportamentos que têm resultados negativos é maior”, pontua.

Trabalhar a tolerância em uma região com uma inclinação política, religiosa e cultural específica pode ser desafiador, mas não impossível. Para Lopes, em Bento Gonçalves e na região, é importante reconhecer que a intolerância não está enraizada em uma única ideologia, religião ou orientação política. “Não é isso que faz com que as pessoas tenham seus comportamentos. Discriminação se vê em Bento, em Porto Alegre, em Salvador, nos Estados Unidos da América, na Rússia. Não se deve a crença de que o mercado ou o estado devem regular a economia. Não é referente a ser conservador ou de vanguarda. Está relacionado a não perceber o ser humano que está a sua frente. O problema está em ver essas pessoas como objetos para alcançar um objetivo”, reforça.

Para ele, é fundamental promover uma compreensão mais profunda e um acolhimento genuíno do próximo, exercitando a alteridade e reconhecendo as complexidades e individualidades de cada pessoa. “Esse comportamento excludente, violento e preconceituoso, se deve, em grande medida, à falta de compreensão profunda e ao acolhimento do outro ser humano. Olhar para o outro e perceber o ser humano com seus dramas existenciais, suas dificuldades e suas qualidades”, finaliza.

Apoio em casos de intolerância

Segundo o coordenador do Movimento Negro Raízes, a orientação para situações como esta, é que de imediato procurar as autoridades policiais para registro de B.O. e em paralelo encaminhar denúncia para o Ministério Público do Município em ocorrer situação desta natureza, e/ou representações Negras como o próprio Movimento e/ou outras entidades afins, para possíveis outros encaminhamentos. “No caso do Movimento Negro Raízes, o contato poderá ser feito pelas redes sociais do Movimento (Facebook, Instagram) e pelo WhatsApp (54) 991072128”, orienta Dutra.