Num desses encontros em o vinho rola solto e solta a língua, o papo foi avançando o sinal.
-E essa barriguinha… cerveja? – perguntei com um quê de ironia.
-E a tua… chocolate? – me respondeu o cara, visivelmente irritado.
Sem querer querendo, eu tinha invadido o espaço aéreo dele e poderia ser abatida a qualquer momento. Mexer com a vaidade de alguém tem preço. E o insultado não ia deixar barato.
-Cortou o cabelo? Rosto redondo e grande não harmoniza… Faltou visagismo… – sorriu meio vingado.
Então ele estava apelando! E roubando a performance de “supersincero” que pertencia ao pai. Mas não esquentei, até porque ele tinha toda a razão. E, além disso, eu havia entornado outro cálice de Merlot meio doce com bastante gelo (adoro provocar os entendedores de vinho) que me deixava bem levinha.
Ao mesmo tempo, o comentário atrevido acendeu uma luz no meu cérebro. Eu começava a intuir por que os profissionais sempre passavam a tesoura além do solicitado. Dessa vez, o cabelo deveria ficar na altura dos ombros. E ficou… levando-se em consideração uma margem de erro de um centímetro para mais ou para menos. Acontece que o problema está naquilo que dá suporte à cabeça…
Enquanto eu pensava, o mais novo supersincero refletia. Acho que temos uma conexão que foi acentuada pelo licor. Então, com um risinho sarcástico, ele acrescentou:
-Se tu vivesse na Tailândia e pertencesse à tribo das mulheres-girafa, duas argolas seriam suficientes pro teu pescoço…
Agora ele estava totalmente vingado. Mas não perdi a classe. Inclusive resolvi colaborar com a sessão de relaxamento (o fígado pedia) contando um detalhe não revelado por ocasião do tombo num ônibus, aqui, na capital do vinho, há alguns anos, quando fraturei três costelas. Para os que ainda não conheciam a história, contei que, numa curva, o movimento rápido do veículo quase vazio me jogou de encontro à barra de ferro do assento. De lá do fundo, minha bolsa voou pra frente, e eu, pro chão. Sem ar. Com os olhos esbugalhados. Com uma dor lancinante nas costas. Isso que o coletivo tinha um santo protetor! Quando o SAMU chegou, eu já respirava. O protocolo para o deslocamento até a ambulância foi feito, com exceção do ajuste do colar cervical. O chefe dos socorristas advertiu o responsável pelo procedimento não efetuado. A resposta foi clara e inequívoca:
-Ela não tem pescoço…
Meu pessoal está rindo até hoje.