Professor da UCS explica como a prática de reduzir a durabilidade dos produtos afeta o meio ambiente, o mercado e o comportamento do consumidor

Imagine comprar um celular novo e, dois anos depois, perceber que ele está mais lento, que a bateria dura menos e que, ao levá-lo à assistência técnica, descobre que o conserto custa quase o valor de um novo. Coincidência? Para especialistas, não. Esse é um dos exemplos mais comuns da chamada obsolescência programada, prática adotada por algumas indústrias que projetam produtos para durarem menos, seja técnica ou emocionalmente, com o objetivo de estimular o consumo constante. “Tudo que demora a desgastar é ruim para os negócios”, cita o professor Alexandre Mesquita, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), ajuda a resumir a lógica por trás da obsolescência programada. Para ele, trata-se de uma estratégia real e amplamente aplicada no mercado industrial.

A organização Global E‑Waste Monitor, da ONU, registra que, em 2022, foram geradas 62 milhões de toneladas de lixo eletrônico, volume que cresce cerca de 2,6 milhões de toneladas por ano e pode atingir 82 milhões de toneladas em 2030. Apenas 22% desse total é formalmente reciclado, e, mesmo assim, muitos materiais valiosos se perdem, enquanto substâncias tóxicas se infiltram no solo, na água e no ar.

De acordo com Mesquita, doutor em Física e docente dos cursos de Engenharia e dos programas de mestrado profissional em Engenharia de Produção e Ensino de Ciências e Matemática, o conceito de obsolescência programada é real e se aplica a grande parte dos produtos industrializados. “É uma estratégia normalmente associada a produtos industrializados que tem por objetivo a redução programada da vida útil de um produto, seja por falhar, seja simplesmente por desinteresse do consumidor, para que seja trocado por um produto mais recente”, explica. Segundo ele, a motivação está na competitividade do mercado, na necessidade de lançamentos constantes e na lógica de inovação. “Muitos atribuem sua origem à indústria automobilística já na década de 1920, com a intenção de fazer os consumidores trocarem de carro todo ano, motivados pelo lançamento contínuo de veículos com novas tecnologias e/ou novas tendências de design”, aponta.

Tipos e motivações

Mesquita explica que existem diferentes formas pelas quais a obsolescência programada se manifesta. A primeira é a obsolescência funcional, quando o produto apresenta defeitos que podem ou não ser corrigidos. A segunda é a perceptiva, relacionada à percepção de valor pelo consumidor. E a terceira é a obsolescência tecnológica, que ocorre quando um produto é substituído por outro com novas funcionalidades, mesmo que o anterior ainda funcione bem. “Boa parte do interesse do consumidor em um produto se deve ao emocional, à satisfação, ao status que a posse do mesmo lhe traz”, destaca o professor. Para ele, há hoje uma parcela significativa do mercado com estratégias de obsolescência voltadas especialmente para os aspectos perceptivo e tecnológico.

Como os produtos são projetados para durar menos

A redução proposital da durabilidade pode estar presente desde a concepção do produto, nos materiais utilizados, no design e até no software. “Na escolha dos materiais, componentes e processos de montagem utilizados”, resume. Ele explica que, mesmo entre produtos de fabricação complexa, como smartphones e veículos, basta incluir um componente de qualidade inferior no meio de bons componentes para que a falha aconteça com o tempo. “E normalmente as empresas conhecem componentes, materiais ou o tipo de serviço de melhor qualidade e os de pior. Bastaria colocar alguma inferior (que costuma falhar depois de um certo tempo de uso) no meio de bons componentes e a probabilidade de mal funcionamento em seguida é grande”, afirma. “Mas é preciso esclarecer que esse é um passo que requer muito cuidado, pois ao mesmo tempo é preciso que o consumidor tenha uma percepção de que a empresa produz produtos de boa qualidade, e isso é fundamental”, explica.

Além disso, atualizações de software também podem estar envolvidas. “As mesmas podem comprometer a performance do produto. Não estou querendo dizer que as atualizações são ruins, muito pelo contrário, na maioria das vezes são necessárias, mas elas podem ser um caminho para afetar a performance do produto”, diz.

Quando limitar a vida útil é aceitável?

Mesmo que a ideia de um produto durável pareça ideal, há situações em que a limitação da vida útil é necessária e legítima, especialmente em setores que envolvem risco à vida humana. “Dentro de determinadas áreas, por causa da natureza do produto e da natureza da função, se espera, muitas vezes até por norma, que o produto seja substituído depois de um determinado tempo de uso, mesmo que ainda esteja operante”, afirma. “Produtos como EPIs, extintores de incêndio, máquinas e equipamentos para diagnóstico de saúde devem estar não só operacionais, mas funcionando a pleno em suas capacidades. Por isso, um tempo definido para serem substituídos é plenamente aceitável ou justificável”, destaca.

Mesquita ainda alerta que “passar por manutenções preventivas ou corretivas não necessariamente significa que o equipamento voltará a atuar como em estado de novo”, aponta.

Transparência e percepção do consumidor

Um dos fatores que agrava o problema é a assimetria de informação entre fabricantes e consumidores. “Depende. Se o produto não tem a ver com a atividade diária do consumidor médio, acredito que não”, avalia Mesquita. “Um pedreiro tem noção da qualidade das ferramentas e dos insumos que usa, mas muito provavelmente não terá a mínima noção de como um computador é produzido. Por outro lado, um técnico em eletrônica pode ter boa noção da qualidade construtiva de uma placa-mãe, mas não saberá avaliar se determinada ferramenta é a melhor para uma obra”, exemplifica.

Ele também observa que a transparência das empresas é variável: algumas fornecem manuais e dados técnicos detalhados, enquanto outras liberam o mínimo possível, geralmente apenas por exigência legal.

Impactos ambientais e sociais

Prof. Dr. Alexandre Mesquita

Um smartphone demanda extração de metais como lítio e terras raras, e gera até 93 milhões de toneladas de CO² evitadas quando reciclado corretamente, potencial desperdiçado pela baixa taxa de reaproveitamento.

A matemática é simples: menos durabilidade e mais consumo sustentam o modelo linear “extrair-produzir-descartar”. Diante desse cenário, a obsolescência programada se revela não apenas uma questão de mercado, mas uma crise ambiental e social.

O descarte acelerado de produtos e a exigência constante de produção têm consequências severas. “O lixo eletrônico contém materiais tóxicos, como mercúrio, cádmio e chumbo, que podem ser liberados no solo e na água quando o lixo for mal descartado”, alerta Mesquita.

Além disso, ele destaca que a fabricação contínua desses equipamentos exige extração constante de recursos naturais. “As baterias mais modernas precisam de lítio. Os ímãs, utilizados em motores elétricos, precisam de terras raras”, explica. “A extração desses materiais sem dúvida traz impacto no ecossistema, desmatamento, poluição da água”, diz.

Além disso, a geração de energia necessária para produzir esses equipamentos também provoca impactos. “A fabricação de produtos consome muita energia elétrica e térmica. E as formas de geração de energia que temos hoje envolvem algum tipo de impacto ambiental, como a inundação de áreas para a construção de hidrelétricas, ou a queima de carvão para as termoelétricas”, destaca.

O papel da engenharia e do consumidor

Para combater a obsolescência programada, o professor acredita que é preciso investir em dois pilares: a reparabilidade, produtos pensados para serem consertados com facilidade, e a pesquisa e inovação sustentável, como desenvolvimento de baterias mais duráveis e métodos de manutenção que prolonguem a vida útil de equipamentos. “A concepção do projeto deve priorizar fortemente o seu ‘pós-venda’, ou seja, a capacidade de o produto ser facilmente reparável e manter sua funcionalidade planejada”, afirma. “O outro pilar é a busca contínua pela pesquisa, inovação e desenvolvimento tecnológico, uma bateria elétrica que dure mais, um material mais leve e resistente, métodos de manutenção preditiva, entre outros”, comenta.

Ele destaca que há empresas na região da Serra Gaúcha, muitas fundadas por egressos da UCS, que adotam a durabilidade como diferencial competitivo. “Não vou citar nomes para não mencionar algumas e esquecer outras”, justifica. “Quando é o setor produtivo ou setor de serviços que é o consumidor, tendo outras empresas como seus fornecedores, o que fala mais alto é durabilidade, confiabilidade e, fruto disso, reparabilidade”, reforça.

Legislação e formação

O combate à obsolescência também passa por políticas públicas. Mesquita menciona iniciativas em andamento, como os projetos de lei PL 2833/2019, que propõe alterar o Código do Consumidor para considerar a redução artificial da durabilidade uma prática abusiva, e o PL 805/2024, que visa garantir o direito ao reparo.

Em nível internacional, ele cita que países como os Estados Unidos e membros da União Europeia já exigem que os fabricantes forneçam informações técnicas, manuais de reparo e peças de reposição por tempo compatível com a vida útil esperada dos produtos.

Na formação de novos engenheiros, o tema também é debatido. “Na Universidade de Caxias do Sul, o objetivo na formação de um engenheiro não está somente em entregar para a sociedade um profissional de excelência na sua área de atuação, mas um cidadão consciente dos problemas de sua sociedade e época e pronto a usar seu conhecimento para colaborar na solução de tais problemas”, afirma. Ele destaca, por exemplo, que desde os primeiros semestres os alunos são desafiados, em disciplinas como Introdução à Engenharia, a desenvolver soluções sustentáveis para problemas como a obsolescência programada.

Entre durabilidade e descarte, a escolha é cultural

Mais do que um problema técnico ou mercadológico, a obsolescência programada é reflexo de um modelo econômico baseado no consumo constante. Para Mesquita, é possível mudar esse cenário — mas essa transformação depende também de nós, consumidores. “Na camada mais superficial do ecossistema que alimenta a obsolescência programada está a relação empresa e consumidor, que se trata de uma simbiose: um alimenta o outro. As empresas direcionam esforços para onde obtêm retorno e lucro”, observa. “Mudanças culturais, como valorização maior do que é durável e reparável, podem trazer melhorias nesse cenário”, conclui.