Referência em produtos orgânicos, a feira busca novas soluções para garantir sua continuidade

A Feira Ecológica de Bento Gonçalves, criada oficialmente em 1998, é um marco na produção orgânica da Serra Gaúcha. Desde sua criação, a feira tem como objetivo promover a agricultura sustentável, oferecendo produtos livres de agroquímicos, tanto para proteger a saúde dos consumidores quanto dos próprios agricultores. Gilmar Cantelli, um dos fundadores e principal líder desse projeto, compartilha sua trajetória, os desafios enfrentados e suas visões sobre o futuro da feira e da agricultura sustentável na região.

Trajetória

Ao longo dos anos à frente da feira, o produtor já aduiriu experiência para mensurar sua produção para que atenda a todos os clientes

Nascido em 1º de junho de 1961, Cantelli compartilha como a educação e suas experiências moldaram sua carreira. “Estudei aqui na comunidade, e aos 11 anos fui estudar com os irmãos Lassalistas. Fiquei três anos em Flores da Cunha e mais dois anos em Canoas, fazendo o ensino médio”, conta. Após concluir os estudos, ele retorna a Bento Gonçalves, onde finaliza sua formação e começa a trabalhar na roça.
Em 1980, ele se alista no Exército Brasileiro e, ao voltar em 1981, decide retornar à agricultura. De 1982 a 1993, trabalhou como caminhoneiro, estabelecendo rotas entre Porto Alegre e São Paulo. De 1993 a 1996, foi sócio de uma empresa de transportes.

O marco de sua carreira ocorre em 1998, quando ele e um grupo de 15 pessoas, com o apoio do falecido padre Júlio Giordani e diversas entidades, fundam a Feira Ecológica. “Nosso objetivo era adotar um novo método de agricultura, promovendo produtos livres de agroquímicos”, explica. A feira se torna um espaço vital para a comercialização de produtos orgânicos da região.

Cantelli também assumiu o cargo de secretário de Agricultura de Bento Gonçalves de 2008 a 2012, onde implementou diversas iniciativas. “Juntamente com o secretário de Garibaldi, optamos por trazer uma unidade da Escola Família Agrícola para a Serra Gaúcha”, conta. A escola, que começou com 17 alunos e hoje conta com cerca de 200, é um passo importante na formação de novos agricultores. “O aluno fica uma semana internado e uma semana em casa, recebendo uma educação voltada para a agricultura na prática”, explica.

Desde 2012, Cantelli volta a se dedicar integralmente à lavoura e continua atuando em várias frentes na comunidade. “Sou presidente da Associação dos Moradores de São Pedro, onde ajudamos a manter a rede de água para 160 famílias”, diz. Ele também é tesoureiro da Escola Família Agrícola da Serra Gaúcha e membro do Comitê de Ética e Pesquisa do Hospital Tacchini.

A Feira Ecológica

A proposta surge em um contexto em que os feirantes viajavam até Bom Princípio ou Porto Alegre para vender seus produtos. “Queríamos abrir a feira aqui em Bento Gonçalves, e a adesão do público foi muito boa”, conta. Em 1996, após sair do ramo de transportes e ingressar na agricultura, Cantelli se une a outros 14 feirantes, com o incentivo do então secretário de Agricultura, Dorval Brandelli, e de Gilberto Salvador, da Emater/RS.

Com o tempo, a feira passou por diversas mudanças. Cantelli começou com a horta orgânica e depois expandiu para pomares de caqui, pêssego, marmelo e uva, sempre mantendo o compromisso com a produção orgânica. “Com o passar dos anos, fui reduzindo minha produção devido à idade e à diminuição de mão de obra”, admite.

Um dos princípios da feira desde o início era produzir alimentos livres de agroquímicos. “Proteger a nossa própria saúde é fundamental. Os agricultores estão expostos aos produtos químicos, e, embora hoje tenhamos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), na época não era assim. A ideia era ter uma agricultura diferenciada, sem monocultura, diversificando a produção”, explica. Cantelli lembra que plantava cerca de 50 a 55 produtos diferentes ao longo do ano, o que o ajudava a garantir a oferta, mesmo diante de imprevistos. “Criamos a feira em 1996, e, em agosto de 1998, a inauguramos oficialmente. Desde então, sempre lutei pela feira, e talvez pelo meu modo de agir e interagir com as entidades, acabei me destacando”, afirma. Até 2006, a feira atraía muitos visitantes de diversas regiões, interessados em conhecer a produção orgânica.

Embora tenha começado com sucesso, a feira enfrentou diversas transformações ao longo dos anos. Em 2011, foi modernizada, com o aumento do número de feirantes de oito para 13 e a melhoria da infraestrutura, incluindo barracas, balanças e uniformes. No entanto, a mudança da feira para a Praça Centenário, em 2013, fez com que ela perdesse força. “A feira do centro encerrou, e a da Cidade Alta ainda continua, mas com apenas quatro feirantes”, explica Cantelli. Ele é o único fundador que ainda participa.

Hoje, a feira está em declínio em termos de número de produtores, embora a oferta de produtos continue variada. “Temos hortaliças e frutas sazonais, como pêssegos e uvas, mas a falta de novos participantes é um problema. Muitos produtores se aposentaram, e não houve renovação”, conta. A diminuição do número de feirantes também se deve ao surgimento de lojas especializadas e supermercados que vendem produtos orgânicos, o que torna mais conveniente para os consumidores comprar nesses locais, especialmente em dias de chuva​.

A logística também é um desafio constante. “Se chove, o público desaparece, e nós voltamos para casa com os produtos”, lamenta Cantelli. Para evitar desperdícios, ele e os outros feirantes aprenderam a ajustar suas produções, de modo que a feira consiga absorver tudo. “A gente já sabe mais ou menos quanto o cliente compra e planta de acordo com isso”, explica ele. Cantelli menciona que, além dos produtos cultivados localmente, a feira também oferece itens de outros estados e até de outros países, como frutas importadas da Itália, França e Chile, ampliando a diversidade de produtos oferecidos​.

Incentivos e o futuro da feira

Para Cantelli, a feira precisa de incentivos para continuar. “Precisamos de assistência técnica para o produtor e políticas que incentivem o consumo de produtos orgânicos”, sugere. A produção orgânica, segundo ele, exige muito mais trabalho manual do que a convencional, o que torna o cultivo mais trabalhoso e menos atraente para novos agricultores. “No cultivo orgânico, é preciso limpar o canteiro manualmente várias vezes, enquanto na agricultura convencional você aplica herbicida e pronto”, exemplifica​.

Uma das soluções para revitalizar a feira seria o retorno ao centro da cidade. “Tentamos trazer a feira de volta ao centro em 2017 e 2018, mas não tivemos sucesso”, comenta ele.

Um dos grandes desafios enfrentados pela agricultura orgânica, segundo Cantelli, é a dificuldade de manter os jovens no campo. “Muitos pais incentivam os filhos a deixarem a roça, dizendo que é muito trabalho e sofrimento”, observa ele. No entanto, Cantelli acredita que, com a tecnologia disponível hoje, os jovens podem ter sucesso na agricultura. A Escola Família Agrícola, da qual ele é tesoureiro, tem como objetivo preparar esses jovens, oferecendo-lhes condições de permanecer no campo com a mesma qualidade de vida que teriam em uma cidade.

Uma gama diversificada de produtos

A produção de Gilmar Cantelli é diversificada e envolve vários tipos de verduras, legumes e frutas

Apesar das limitações sazonais, Cantelli enfatiza que a feira oferece produtos que estão disponíveis durante todo o ano. “Temos cenoura, beterraba, alface, erva-doce e rúcula, que podem ser encontradas o ano todo”, afirma. Ele menciona que é possível encontrar também aipim e uma vasta gama de outros produtos. “Alguns itens que não produzimos aqui, adquirimos de um mercado de produtos orgânicos em Caxias do Sul, que comercializa em todo o país, especialmente de São Paulo para baixo”, afirma, revelando a importância de ponderar a produção para atender à demanda. “No início, jogávamos fora muitos produtos, mas aprendemos a mensurar a plantação para que a feira absorva tudo”, explica Cantelli. Detalhando que, quando há excesso de produção, ele entrega os produtos para esse mercado, que faz a distribuição.

Na produção, Cantelli utiliza estufas e cultiva uma variedade de produtos, como brócolis, couve-flor e repolho. “Nelas planto folhosas como cenoura, beterraba, tomate, pepino, pimentão, berinjela, acelga, agrião e morango”, enumera ele. Essa diversidade permite que ele ofereça uma ampla gama de produtos, adequando-se às preferências e necessidades dos consumidores.

Possibilidades de expansão

Cantelli aborda as dificuldades de expandir a feira para locais turísticos da região, como os Caminhos de Pedra. “Ela se torna inviável porque você trabalha a semana inteira produzindo, de segunda a quinta, e no sábado você também trabalha produzindo. Na quinta à tarde e na sexta pela manhã, você colhe para comercializar tudo à tarde, entre às 14h e 18h”, explica.

A logística da produção orgânica é intensiva e exige dedicação constante, o que dificulta a realização da feira em locais adicionais. “Fazer a feira aqui nos Caminhos da Pedra seria complicado, porque o agricultor diria: ‘Bah, mas é o meu dia de descanso, vou trabalhar no domingo também?’”, comenta. Cantelli enfatiza que, para essa expansão ser viável, seria necessário um número maior de feirantes. “Hoje, com o número que temos, mal conseguimos dar conta da feira no centro. Se tivéssemos um lugar fixo, com certeza a feira estaria melhor e teríamos mais feirantes”, sugere.

Artesanato na Feira Ecológica

Questionado sobre a inclusão de artesanato na feira, Cantelli não vê obstáculos, mas explica que a feira foi concebida originalmente como um espaço dedicado exclusivamente a produtos orgânicos. “Nós não veríamos problema quanto a isso. Inclusive, foi aberto uma vez para isso, mas muitos que vêm à feira ecológica para comprar o produto orgânico e vão embora, eles não ficam para outras compras”, comenta ele.

Cantelli acredita que, em uma feira com maior circulação de pessoas, como as realizadas em grandes centros urbanos, o artesanato poderia ter mais espaço. “Eu conheci as feiras de São Paulo nos anos 80, e elas têm de tudo: alimentação, conserto de panelas e objetos, venda de chapéus. Seria uma feira multissetorial”, compara ele.

Apesar de aberto à ideia, Cantelli destaca que nunca houve uma demanda expressiva para isso em Bento Gonçalves. “Se houvesse um grupo de artesãos que nos questionasse, poderíamos fazer uma parceria, mas até hoje isso não ocorreu”, afirma. Ele menciona que algumas iniciativas ocorreram pontualmente, como durante enchentes que prejudicaram expositores, mas ressalta que a logística de realizar várias feiras por semana é inviável. “Perdemos um dia inteiro entre colher e vender, e repetir esse processo duas ou três vezes por semana não funciona”, explica.

A feira e o turismo

A relação entre a feira ecológica e o turismo local é outro ponto relevante. Embora a feira já tenha ocorrido próxima à estação da Maria Fumaça, Cantelli relata que o público turístico não costuma comprar produtos frescos. “Os turistas compram frutas como pêssego e uva, mas dificilmente compram hortaliças”, explica. Apesar disso, ele vê potencial no turismo rural, onde visitantes poderiam participar da produção orgânica e até colher seus próprios produtos. No entanto, o desafio é encontrar mão de obra para manter a produção funcionando enquanto se dedica ao turismo​.

Comentando sobre o impacto do turismo nas feiras, Cantelli observa que o perfil turístico de Bento Gonçalves é muito diferente de países europeias, como Alemanha e Itália, onde o turismo é mais concentrado em áreas urbanas. “O turismo daqui é mais voltado para rotas rurais, como os Caminhos de Pedra e os vinhedos. O público fica bastante disperso, e o movimento maior é nos fins de semana”, diz ele. Durante a semana, o fluxo de turistas é menor, o que limita o impacto positivo para as feiras.
Embora a ideia de integrar a feira ao turismo local não esteja descartada, Cantelli destaca que os feirantes atuais são de famílias pequenas e não têm capacidade de lidar com uma demanda maior. “Seria algo a se pensar, mas precisaria de mais feirantes para isso acontecer. Com o número que temos hoje, não conseguimos dar conta”, conclui.

A Feira Ecológica de Bento Gonçalves continua a ser um exemplo de comprometimento com a sustentabilidade, mesmo enfrentando desafios como a diminuição do número de feirantes e as mudanças nas preferências dos consumidores. Cantelli, com mais de duas décadas de liderança à frente da feira, permanece otimista quanto ao futuro da agricultura orgânica na região. “A feira é mais do que um lugar para comprar alimentos, é um projeto de vida”, afirma ele, reforçando a importância de continuar lutando pela produção sustentável e pelo fortalecimento da comunidade agrícola.

Com o apoio certo, seja por meio de políticas públicas, incentivos técnicos ou uma maior integração com o turismo e o artesanato, Cantelli acredita que a feira ecológica tem potencial para se revitalizar e continuar servindo de referência para a produção orgânica na Serra Gaúcha. “Precisamos continuar dando o nosso melhor”, conclui​.