Falta de políticas públicas efetivas. Pouca conscientização. Inacessibilidade. Preconceito. Quando o assunto é deficiência, torna-se difícil não escutar reclamações sobre esses problemas, apontados como os principais por quem sofrem diariamente com isso. Com o intuito de dar mais visibilidade para o tema e acima de tudo, aumentar a conscientização sobre a importância de desenvolver formas de incluir pessoas com deficiência na sociedade, hoje é comemorado o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência.
De acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, 45,6 milhões de pessoas têm alguma deficiência. Esse número representa quase 24% da população. Em Bento Gonçalves, para muito além de prestar acolhimento, diversas entidades foram criadas ao longo dos anos com o objetivo de lutar ao lado das famílias por direitos que muitas vezes o município não oferece de forma eficaz.
É o caso da Associações dos Deficientes Visuais de Bento Gonçalves (ADVBG). Criada há 32 anos, a instituição atualmente atende cerca de 65 pessoas, entre crianças e adultos, que convivem com deficiência visual e múltiplas deficiências. A presidente do órgão, Eloisa Morassutti, acredita que quando o assunto é inclusão, estamos melhores que em outros anos. Entretanto, destaca que as barreiras atitudinais ainda são os maiores desafios a serem encarados.
De acordo com Eloisa, a legislação vigente obriga que todo o proprietário de terreno readéque a calçada pela qual é responsável com o chamado piso tátil, que são faixas em alto-relevo fixadas nas calçadas para auxiliar a locomoção de pessoas cegas ou com baixa visão. Quem anda pela cidade, principalmente pelo centro, pode observar que muitas calçadas já receberam a adaptação. A queixa se deve a dois fatores: foram feitas sem seguir o padrão estabelecido na lei e estão sendo utilizadas por pessoas que enxergam. “Pouco adianta os proprietários adequarem as calçadas se os pedestres caminham em cima do espaço destinado para as pessoas que tem deficiência visual. Além disso, em alguns lugares o piso é colocado próximo do prédio, em outros é próximo ao meio fio e em alguns locais é bem no meio da calçada, ou seja, não obedecem ao padrão”, afirma.
Circulando pelo Centro de Bento Gonçalves a reportagem constatou dois locais que poderiam causar um acidente para quem tem deficiência visual. Um deles está localizado em uma calçada próxima à Caixa Econômica Federal, onde o piso tátil foi colocado em direção a um poste de concreto. Outro local perigoso foi encontrado na rua General Osório, onde quem caminhar pelo piso tátil vai acabar colidindo em um tapume. Na rua Treze de Maio, os pisos foram colocados muito próximos ao meio fio, fazendo com quem caminhe por eles, corra o risco de esbarrar nas lixeiras.
Quem sente na pele os desafios de andar pela cidade é Cleiton de Andrade, 43 anos, que devido a um problema de glaucoma, perdeu totalmente a visão há oito anos. Na época, morava sozinho no município de Ibirubá, porém sabendo da existência da associação, sentiu necessidade de retornar para Bento, cidade onde nasceu. Hoje, de Andrade faz tudo sem ajuda, inclusive vai para a entidade e volta para casa sozinho, mas é justamente nesses momentos, quando precisa se locomover, que percebe o quanto o município precisa progredir para melhorar a vida de quem tem alguma deficiência. “É um problema muito grande falar de inclusão na nossa cidade. A prefeitura e os órgãos falam bastante disso. A dificuldade é realmente os pisos táteis colocados em lugares errados, placas não posicionadas corretamente, muitas armadilhas e bem no centro, visíveis a olho nu e quem enxerga, percebe. A gente faz um parkour aqui na cidade, aquele esporte francês que é pirueta para todos os lados, temos que fazer malabarismo para poder caminhar”, alega.
Outra adversidade apontada por de Andrade é a falta dos pisos em lugares que considera essenciais. “Os lugares não são bem adaptáveis. No centro tem piso tátil, mas nas paradas de ônibus, não. O shopping não tem o piso para entrar lá dentro, todas às vezes precisei de ajuda para entrar e cego também faz compras, gasta”, afirma.
Engana-se quem pensa que os problemas param por aí. Outro transtorno enfrentado por quem depende dos pisos táteis está na falta de conscientização das pessoas que têm visão, mas andam em cima dos pisos. “A gente já presenciou várias vezes pessoas paradas no meio do piso tátil conversando, elas param ali, ficam plantadas e a gente tem que desviar. Eu fico me perguntando se elas sabem o que é aquele piso, para que serve”, expõe a assistente social da ADVBG, Marcia Macari.
Conversando com algumas pessoas que circulam pelo centro da cidade, foi possível constatar que de fato, muitas pessoas caminham em cima dos pisos táteis. A maioria relatou para a reportagem que sabem qual a função daquele diferencial na calçada. É o caso da pedagoga Luciane Dutra Ribeiro, que acredita que a desinformação pode ser o motivo pelo qual as pessoas não respeitam o espaço destinado para os deficientes visuais. “O piso é para as pessoas cegas. É uma evolução para quem tem esse tipo de deficiência poder se locomover. Para mim é bem desconfortável caminhar em cima do piso tátil, não sei porque as pessoas utilizam, mas é importante essa conscientização”, afirma. Entretanto, Jussara Domingos de Paula, 53 anos, revelou não saber o motivo do piso tátil nas calçadas. “Percebi que tem em vários lugares. Interessante. A gente não sabe para que serve”, respondeu.
É justamente para ajudar em todas as necessidades apontadas que a associação continua com as portas abertas, afirma a assistente social. “Se as instituições estão presentes é porque o município não dá conta do recado. A gente não faz nada além daquilo que o município deveria fazer. Se a nossa associação ou as outras tantas que existem na cidade fechassem as portas, onde esses usuários seriam acolhidos? ”, questiona Marcia.
Síndrome de Down
A Associação Integrada do Desenvolvimento do Down (AIDD) também existe para acolher e fazer valer os direitos daqueles que vão até lá. Hoje a entidade atende cerca de 30 famílias. As idades variam entre dois e 47 anos. A coordenadora, AnneChristy Bem, relata que os alunos que frequentam a instituição, além da síndrome de down, geralmente tem outras limitações associada. “O down normalmente fica com a língua para fora em função da hipotonia e com isso aparece a dificuldade na fala, na alimentação, na amamentação, então todos esses processos se tornam mais difíceis. Tem o desenvolvimento intelectual, da aprendizagem também. Eles aprendem bastante, mas demoram um pouco mais”, explica Anne.
A coordenadora relata que para fazer valer os direitos das crianças e jovens é preciso brigar e que a prefeitura não oferece o que deveria. “Para entrar na escola é uma briga, para ir em algum lugar é uma briga. Temos que estar sempre lutando. Precisamos de fonoaudióloga, de fisioterapia e tudo isso custa muito. Normalmente quem procura a associação é baixa renda e gratuitamente o município não oferta de maneira ampla como deveria ou poderia oferecer”, argumenta.
Atualmente a AIDD conta com fonoaudióloga, assistente social, psicopedagoga, neuropsicopedagoga e profissionais da educação física, mas necessita de fisioterapeuta, psicólogo, psicomotricista para prestar atendimento adequado aos usuários.
Ainda de acordo com Anne Christy Bem, incluir as crianças nas escolas, ter professores preparados para receber alunos com alguma deficiência ainda é um dos maiores obstáculos que eles enfrentam. “Todos temos nossas diferenças, mas de que maneira estamos olhando elas. Estar de mãos dadas para colocar eles na sociedade, com as famílias unidas pelo bem dessas pessoas faz com que a entidade mantenha as portas abertas”, afirma.
Paralisia
Quem entende o significado da palavra luta é a família do Jocelmo Vieira de Melo, que sofreu paralisia mista na hora do parto. O rapaz, que hoje tem 31 anos, depende da ajuda dos pais para tudo. “Ele entende tudo, mas não pode fazer nada. Não fala, não caminha, não senta, não pode pegar nada com a mão, não faz nada. A única coisa que ele faz é dizer não levantando o dedo e sim com o sinal de joia”, conta a mãe, Otacília Vieira Melo.
A família, que era natural de São Luiz Gonzaga, na região das Missões, veio morar em Bento Gonçalves quando o filho tinha sete anos. “Tínhamos alguns terrenos, casas e estávamos melhorando a situação, mas quando ele nasceu começamos a gastar. Levávamos para Porto Alegre, Caçapava do Sul, Santa Maria, Passo Fundo, Ijuí. Resolvemos vir embora para cá. Vendemos um pedaço de terra, compramos uma casa e viemos. Para mim não era vantagem ter três terrenos e meu filho ficar em uma cadeira de rodas, em uma cama, eu tinha vontade de curar ele”, relata o pai, Edgar Ávila de Melo.
De acordo com os pais, a família decidiu morar em Bento Gonçalves devido à maior oferta de recursos oferecida na cidade, incluindo as associações. Jocelmo frequenta a Associação dos Deficientes Físicos uma vez por semana para fazer fisioterapia. Também frequenta a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). A família diz que não teria condições de pagar profissionais particulares para atender as necessidades do filho.
Para o futuro, a dona Otacília confessa que não sabe como será a vida do filho quando ela não estiver mais viva, mas fala da vida com muito amor. “Nós já sofremos com ele e não foi pouco. A dor ensina”, finaliza.