Um estudo da Universidade de Caxias do Sul (UCS), publicado na revista “Saúde em Debate”, revela que agricultores expostos a agrotóxicos apresentam um risco maior de desenvolver câncer. Esse risco é ainda mais acentuado entre trabalhadores do sexo masculino, que costumam ter contato direto e frequente com os produtos, muitas vezes sem o uso adequado de equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras e luvas.
A revisão analisou 29 estudos publicados entre 2012 e 2021 e, de acordo com os resultados apresentados por vários pesquisadores ao redor do mundo, identificou que a exposição prolongada a agrotóxicos pode causar danos celulares que contribuem para o desenvolvimento de qualquer tipo de câncer. No entanto, os cânceres de pulmão, mama, próstata e cânceres hematológicos (leucemias e linfomas) são mais incidentes. Casos de câncer de pele também apareceram nos estudos, mas não foram considerados conclusivos devido à forte relação da doença com a exposição solar, um fator de risco conhecido na profissão. “Os fatores comuns são a forma como os agricultores estão expostos, se usam os EPIs ou não e como usam. E o tempo de exposição. Muitos iniciam cedo no trabalho agrícola e têm contato com essas substâncias desde jovens”, explica Fernanda Meire Cioato, enfermeira e autora principal do artigo. A autora também chama atenção para a exposição indireta, especialmente entre mulheres que manuseiam equipamentos contaminados ou armazenam os produtos. “São exposições diferentes. O homem é aquele que prepara a calda e aplica, que lida diretamente com a colheita, e a mulher faz todo o trabalho de organização”, ressalta Cioato.

Outro ponto destacado pelo estudo é que a toxicidade dos agrotóxicos não está necessariamente relacionada ao tipo de cultivo ou produto utilizado. Em muitos casos, os agricultores utilizam uma combinação de substâncias, aumentando a complexidade da exposição e dificultando a identificação precisa dos agentes mais nocivos. O uso inadequado de EPIs agrava esse cenário, já que muitos trabalhadores substituem as vestimentas de proteção por alternativas informais, como bonés e calças jeans, devido ao desconforto térmico das roupas especializadas. “Os equipamentos de proteção são desconfortáveis para quem trabalha o dia inteiro sob o sol. É fundamental a modernização de EPIs, com produção de equipamentos mais ergonômicos e eficientes para utilização no trabalho agrícola”, destaca Cioato.
Diante desses achados, os pesquisadores defendem a implementação de políticas públicas que garantam o controle e a segurança no uso de agrotóxicos. Além disso, enfatizam a necessidade de capacitação dos profissionais de saúde para diagnosticar e tratar precocemente os trabalhadores rurais expostos. “Os profissionais devem estar aptos a identificar, analisar e implementar medidas que minimizem riscos, além de monitorar e acompanhar a saúde desses trabalhadores”, afirma João Ignácio Pires, professor da UCS e coautor do estudo.
A pesquisa também ressalta a necessidade de adaptar a comunicação sobre os riscos dos agrotóxicos ao público que os utiliza. Com muitos agricultores de baixa escolaridade, a complexidade das bulas e rótulos dificulta a compreensão das instruções de segurança. “Os rótulos precisam ser mais acessíveis, com símbolos e informações simplificadas, para garantir que todos compreendam os riscos e saibam como se proteger”, conclui Cioato. Essas medidas, segundo os pesquisadores, são essenciais para reduzir os impactos negativos dos agrotóxicos na saúde da população rural.
Certificação obrigatória para aplicadores de defensivos
Em resposta a essa preocupação, o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) implementou a Portaria 410/2022, que determina a certificação obrigatória de todos os aplicadores de defensivos agrícolas no país até o final de 2026.
Para atender à nova exigência, foi lançado o curso gratuito “Aplicador Legal” por meio da plataforma de Ensino à Distância (EAD) CropLife Conecta. O treinamento, disponível desde março na Expodireto Cotrijal, em Não-Me-Toque (RS), inclui módulos sobre uso correto de defensivos, dosagem, impacto ambiental e toxicológico, e a importância dos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). O objetivo é garantir que, até o fim de 2024, ao menos 100 mil produtores estejam capacitados.
De acordo com o último censo agrícola do IBGE, em 2017, o Brasil registrou 1,7 milhão de aplicadores de pesticidas, crescimento de 20,4% em relação a 2006, ano do recenseamento anterior.
A expectativa do Programa Nacional de Habilitação de Aplicadores de Agrotóxicos, do MAPA, é capacitar e registrar até 2026, dois milhões de profissionais que manuseiam esses produtos.
Além do aplicativo, CropLife Conecta também está disponível pelo conecta.croplifebrasil.org
Boas práticas agrícolas
A habilitação de trabalhadores para o uso correto e seguro de defensivos agrícolas é um dos temas da campanha de Boas Práticas Agrícolas, lançada pela CropLife Brasil no início do ano.
O programa também visa aumentar a segurança no transporte desses produtos, desde a revenda até a propriedade rural, no armazenamento desses químicos nas propriedades, e para a redução dos impactos ao meio ambiente pelo mau uso dos defensivos no campo. “A certificação dos aplicadores é responsabilidade das empresas, não do município. Além disso, a comercialização dos produtos não é regulada pelo município. No que diz respeito à logística reversa das embalagens de agrotóxicos, a responsabilidade recai sobre comerciantes, distribuidores e fabricantes. O poder público atua como fiscalizador do cumprimento dessa obrigação”, informa a secretaria de Agricultura do município.
Fiscalização e monitoramento
A fiscalização do uso de agrotóxicos é realizada em diferentes esferas. No âmbito federal, o MAPA é responsável pelo monitoramento. No nível estadual essa função é desempenhada pela Inspetoria Veterinária, vinculada à Secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação (SEAPI) e no nível municipal pela Secretaria de Agricultura. A SEAPI também fiscaliza as Casas Agrícolas e questões relacionadas à pecuária. “Já a responsabilidade pelo uso correto dos agrotóxicos, incluindo dosagens e períodos de aplicação, é do agricultor. O uso é regulamentado por meio de um Receituário Agronômico, documento emitido por um engenheiro-agrônomo que orienta a aplicação dentro das normas legais”, informa a secretaria municipal.
Apenas produtos registrados junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) são autorizados. Produtos que, após estudos, apresentaram riscos à saúde, como potencial cancerígeno, foram retirados de circulação por meio de resoluções federais.
Segundo a prefeitura, as denúncias sobre o uso irregular de agrotóxicos são encaminhadas aos órgãos competentes.
A Secretaria Municipal de Saúde também realiza monitoramento da qualidade da água por meio do Programa VigiÁGUA, analisando pontos de captação em áreas agrícolas. O solo é avaliado anualmente em laboratórios credenciados, em parceria com a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Sul e Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural (Emater/RS-Ascar) para identificar possíveis contaminações por defensivos agrícolas.
Denúncias
O secretário do Meio Ambiente de Bento Gonçalves, Volnei Tesser, explica como a secretaria lida com denúncias de uso irregular de agrotóxicos. “As denúncias são verificadas in loco, analisando-se eventuais indícios para posterior notificação do responsável. A fiscalização municipal ocorre exclusivamente em áreas urbanas, sobretudo para casos de capina química. No meio rural, o uso de agrotóxicos exige receituário agronômico e é fiscalizado pela Inspetoria Estadual”, salienta.
Denúncias sobre irregularidades são encaminhadas aos órgãos competentes, e os infratores estão sujeitos às penalidades previstas na legislação vigente.
Ações de informação e conscientização
Segundo Tesser, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento da Agricultura (SMDA) promove campanhas periódicas para orientar os agricultores sobre o uso racional de agrotóxicos.
Para a população em geral, são realizadas ações de sensibilização ambiental, incluindo palestras e visitas comunitárias. Nessas atividades, informa-se sobre a proibição da capina química em áreas urbanas e sobre o cronograma da logística reversa das embalagens de agrotóxicos, que pode ser consultado diretamente nas Casas Agrícolas.
Desafios e preocupações dos agricultores
O Sindicato dos Trabalhadores Agricultores Familiares de Bento Gonçalves, Monte Belo do Sul, Pinto Bandeira e Santa Tereza (STR) enfatiza a importância do uso correto dos defensivos, mas destaca os desafios enfrentados pelos agricultores. Segundo Cedenir Postal, presidente do STR, há uma grande pressão comercial dos fornecedores de produtos químicos, além da necessidade de treinamentos constantes.

O sindicato, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), oferece cursos de aplicação segura de defensivos para capacitar os agricultores. “Precisa ter turma formada, nós temos que ir atrás dos técnicos que são especializados em oferecer estes cursos, mas já foram feitos vários no ano passado, tem alguns programados para esse ano, e quem demonstrar interesse, tem que ter uma turma mínima de 10 participantes para a realização”, frisa o presidente.
Postal ressalta que, embora os defensivos agrícolas sejam necessários para a produção de alimentos, seu uso deve ser feito com responsabilidade. “Ao menos é um produto que é bem pouco usado aqui na nossa região. Ele é mais utilizado nas lavouras de soja, principalmente no controle da buva, e acaba prejudicando as frutíferas, as olerícolas. Por isso que até os nossos produtores não o usam, e ele é bastante prejudicial na região da campanha, principalmente nos campos de cima da serra, onde tem lavouras lindeiras de soja”, pondera.
Ele destaca que o STR incentiva a adoção de práticas agrícolas mais sustentáveis e com menor uso de agrotóxicos. “Não há agricultor que goste de usar esses produtos, porque são extremamente caros. No entanto, são remédios para as plantas, muitas vezes, devendo ser administrados na dose certa e no momento adequado”, explica.
O STR incentiva a adoção de práticas agrícolas sustentáveis e com menor dependência de defensivos químicos. Entre as alternativas viáveis, destacam-se o controle biológico de pragas, rotação de culturas e uso de bioinsumos. No entanto, a transição para uma agricultura menos dependente de químicos ainda enfrenta desafios, como custos elevados e a necessidade de conhecimento técnico especializado.
Atuação da Emater
A Emater destaca que cada agrotóxico age de forma diferente no organismo humano, alguns podem ser cancerígenos, outros mutagênicos, teratogênicos e outros ainda podem atuar sobre o sistema nervoso. “Não podemos generalizar e dizer que todos são cancerígenos. A Emater atua no sentido de orientar o produtor a fazer o manejo integrado de pragas e doenças, isso é, aplicar todas as práticas culturais que visam a sanidade dos cultivos e quando da necessidade de um controle complementar sempre buscar os produtos que ofereçam menor risco ao meio ambiente e à saúde do aplicador e do consumidor, mas sem perder a eficácia de controle da praga”, informa João Villa, engenheiro agrônomo, assistente técnico regional da Emater/Caxias do Sul.
Segundo ele, todos os agrotóxicos registrados no Brasil são considerados seguros, desde que sejam observadas todas as medidas necessárias para minimizar o risco. “A Emater orienta desde a construção de abrigo de agrotóxicos na propriedade visando a segurança coletiva e do meio ambiente”, revela.
Também há a orientação do uso de EPI (equipamento de proteção individual), seguindo a orientação do fabricante para que o aplicador esteja protegido para aquela pulverização que ele vai fazer e também a observância do período de carência para que no momento da colheita, o resíduo do produto aplicado esteja abaixo do limite máximo tolerado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Por fim, a Emater também orienta sobre a devolução das embalagens vazias auxiliando também nas campanhas de coleta de embalagens que ocorrem nos municípios.
Tipos de agrotóxicos:
- Agrotóxicos mutagênicos:
Esses agrotóxicos causam alterações no material genético (DNA) das células.
Essas alterações, chamadas de mutações, podem levar a mudanças permanentes no DNA, que podem ser transmitidas para as gerações futuras.
As consequências das mutações podem incluir o desenvolvimento de doenças genéticas e câncer. - Agrotóxicos teratogênicos:
Essas substâncias interferem no desenvolvimento embrionário ou fetal, causando malformações congênitas.
A exposição a agrotóxicos teratogênicos durante a gravidez pode resultar em defeitos de nascença em bebês.
As malformações podem variar em gravidade e afetar diferentes partes do corpo. - Agrotóxicos carcinogênicos:
Esses agrotóxicos têm a capacidade de induzir o desenvolvimento de câncer.
Eles podem causar danos ao DNA ou interferir nos mecanismos de controle do crescimento celular, levando à formação de tumores.
o desenvolvimento de câncer pode ocorrer após anos de exposição a essas substâncias. - Agrotóxicos clastogênicos:
Essas substâncias causam quebras nos cromossomos, que são as estruturas que contêm o DNA.
As quebras cromossômicas podem levar a alterações na estrutura e função dos cromossomos, resultando em mutações e outros danos celulares.
A clastogenecidade é um tipo de mutagenicidade.
Link do artigo: https://saudeemdebate.org.br/sed/article/view/9298/2128