Doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Rualdo Menegat, aponta diversos elementos para compreender as origens e consequências da catástrofe que assolou a região e grande parte do Rio Grande do Sul

Diante da tragédia das chuvas que assolaram diversas regiões do Rio Grande do Sul, deixando um rastro de morte e destruição, a sociedade como um todo, após um período de resgates, organização de doações e trabalho de escuta nas comunidades afetadas, começa a questionar sobre quais medidas devem ser adotadas, tanto pelo poder público municipal, quanto estadual, para minimizar os impactos desses eventos climáticos extremos. Para fornecer uma resposta embasada e esclarecedora, a reportagem do Semanário conversou com o geólogo, doutor em Ciências na área de Ecologia de Paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rualdo Menegat, que destaca a importância de medidas preventivas e de gestão integrada dos recursos hídricos. Ele ressalta que a implementação de políticas de ordenamento territorial, com o mapeamento e monitoramento de áreas de risco, é fundamental para reduzir a vulnerabilidade das comunidades às enchentes.

Além disso, salienta a necessidade de investimentos em infraestrutura, como sistemas de drenagem pluvial eficientes e ações de reflorestamento para conservação dos recursos naturais, visando mitigar os impactos das chuvas intensas. O geólogo também enfatiza a importância da educação ambiental e da conscientização da população sobre práticas sustentáveis e medidas de adaptação às mudanças climáticas.

Segundo Menegat, a catástrofe recente nos faz refletir sobre cinco pontos cruciais. Primeiramente, a quantidade extraordinária de chuva, resultado do aquecimento global, desencadeou a emergência climática. “Nada menos de 800 milímetros de chuva aconteceram durante cinco dias resultantes do aquecimento da atmosfera. É o que nós chamamos dos efeitos climáticos e da emergência climática. Esse efeito climático vem do aquecimento global resultante da queima de carvão e petróleo, principalmente, e emissão de gás carbônico”, revela.

O segundo ponto considera a geografia da região afetada, onde a precipitação intensa escorre rapidamente pelos vales profundos, causando erosão e deslizamentos. “Esta chuvarada toda, ocorreu no terreno do Planalto Meridional, que são morros em tabuleiro, escavados por rios muito profundos, quase cânions, como é o rio Taquari-Antas, como é o rio da Prata, entre outros. Nestes locais, a água rapidamente se acumula numa velocidade incrível e o nível pode então subir nada menos do que 14 metros, que foi o nível atingido na enchente de 2023, e nesta agora, de 30 metros. Os vales profundos são praticamente proibitivos para, digamos, a habitação por causa disso”, enfatiza.

Um outro ponto indicado pelo professor é a maneira como a água interage com o solo. Neste caso, áreas intensamente cultivadas impactam a absorção natural, agravando as inundações. “Na atual circunstância, o uso do solo na região do Planalto Meridional Sul está muito intensivo. Ou seja, há monocultura de soja, um plantio que procura maximizar a produção sem enxergar a sanidade, os serviços ecossistêmicos de controle da água”, aponta.

O quarto ponto, segundo o geólogo, destaca a importância da infraestrutura preparada para lidar com desastres, como fornecimento de energia e água, e serviços hospitalares funcionais. “Nós temos que saber se teremos condições de enfrentar o evento. Estamos falhando. Então temos que prever também os serviços essenciais para a população no momento desses, eles têm que funcionar, isso cabe ao Estado”, observa.

Ainda, de acordo com Menegat, é necessário que haja eficácia da defesa civil, que deve estar bem equipada e engajar a comunidade em medidas preventivas. Compreender esses aspectos é fundamental para lidar com eventos climáticos extremos, exigindo ações coordenadas entre governo, comunidade e políticas públicas para mitigar os impactos devastadores. É necessário ter uma defesa civil capaz de enfrentar a crise. Um órgão que tenha aparelhamento, helicópteros, materiais e profissionais treinados. É preciso que haja articulação com a sociedade, para que esta entenda os mecanismos que existem para sua proteção. “Nós temos que saber prever, é para isso que existe a ciência, a tecnologia, os aparelhos do Estado, os equipamentos. Isso aí não é uma situação que se possa achar razoável”, aponta. “Tem que estar alerta, tem que ter educação, tem que mudar a percepção também da coisa. E para isso, então, nós precisamos ter não só uma Defesa Civil equipada, mas também uma população educada; que isso se ensine nas escolas, como se proteger, como atender de fato as questões quando há a previsão de eventos climáticos severos”, acredita.

Elaboração de mapa para avaliar áreas vulneráveis

Outro aspecto indicado por Menegat, frente à preocupação em relação às áreas da Serra, especialmente após o registro de centenas de fissuras e rachaduras decorrentes das intensas chuvas de maio, é que é crucial realizar um mapeamento detalhado das áreas afetadas para identificar as causas das fissuras e avaliar o risco de deslizamentos e desabamentos.

Na região da Serra, segundo o geólogo, é preciso prestar atenção porque há acumulação de rochas resultantes desses derrames de aproximadamente 130 milhões de anos, cheios de fraturas, rochas quebradiças e com a presença de fendas, que indicam o modo como a água escorre e como o subsolo rochoso pode também modificar a sua dinâmica em função de receber mais água ou menos água.

Para identificar o cenário, o professor indica a produção de um mapa geológico, com o intuito de saber onde forma os pontos em que ocorreram os chamados “colapsos do solo e do subsolo. “Nós dizemos que toda encosta que tenha mais de 30 graus de inclinação, o material que está sobre essa encosta, solos, rochas, eles têm a propensão de escorregar. E quando a encosta tem uma inclinação maior de 45 graus, então o perigo passa a ser muito grande. Então nós podemos com isso prever situações”, explica. “Também, por fim, além de diagnosticar aonde aconteceram os eventos, os deslizamentos, é também avaliar os impactos que produziu. Isso é importante porque nos faz, então, melhorar e prever o que acontece”, pondera.

Monitoramento constante

Diante da ocorrência de deslizamentos em diversas áreas, surge o questionamento sobre quais medidas devem ser tomadas a partir de agora, especialmente em curto prazo, para lidar com essa situação. A sugestão indicada por Menegat é de que em curto prazo seja reestabelecida a paisagem. “Eventualmente, um deslizamento pode ter interrompido um curso d’água. Também pode ter afetado uma estrada, enfim, tem que recuperar a paisagem, deslocar solo e detritos que porventura estejam obstruindo passagens, principalmente da água”, indica.

Se, por um lado é preciso criar ações para normalizar o cenário, por outro, o geólogo indica que é necessário monitorar o local, dependendo do grau de risco da situação. Essas medidas, segundo ele, são essenciais para proteger vidas e minimizar os impactos imediatos da tragédia, enquanto se planejam ações de médio e longo prazo para a reconstrução e recuperação das áreas atingidas. “Pode ser que alguns desmoronamentos apenas tenham iniciado o processo. O deslizamento é um evento, é um fenômeno. Ele tem início, meio e fim, mas esse procedimento pode ser completado num curtíssimo espaço de tempo ou não. Então nós temos que saber que tipo de processo está acontecendo ali, se ele já concluiu, digamos, a liberação das tensões que produzem o deslizamento ou se o evento ainda está em curso”, pontua.

Ele acredita ainda que o que foi registrado em diferentes regiões de Bento Gonçalves, como é o caso de Faria Lemos, Serra das Antas, São Valentim, entre outros, seja apenas o primeiro estágio do evento. “Precisamos monitorar todas essas ocorrências para saber se está concluído, em que estágio está e compreender se há probabilidade de que o evento tenha mais estágios logo avante”, observa.

Garantir recuperação e resiliência das comunidades

Diante da urgência de planejar ações para médio e longo prazo nas áreas afetadas por deslizamentos e enchentes, surge a questão sobre o que é necessário fazer para garantir a recuperação e a resiliência dessas comunidades. Em resposta a esse questionamento crucial, Menegat destaca a importância de um plano integrado e sustentável de reconstrução e reabilitação das áreas atingidas. Segundo ele, isso envolve investimentos em infraestrutura como sistemas de drenagem e contenção de encostas, além da revisão e atualização das políticas de ordenamento territorial e uso do solo para evitar ocupações em áreas de risco. “É preciso verificar as condições da flora, da fauna e principalmente dos banhados nas regiões mais altas, além de recompor a funcionalidade dos ecossistemas e dos seus serviços. Além disso, é preciso fazer um mapa não só das probabilidades de deslizamento segundo a inclinação das encostas, mas também do uso do solo. Saber onde ocorreram esses eventos e que relação eles têm com essa prática. Fazer as devidas equações e tirar as conclusões para que esse uso do solo possa amenizar esses eventos em vez de aumentá-los”, enfatiza.

Ações humanas e resposta da natureza foram responsáveis pela tragédia

A tragédia climática que atingiu o Rio Grande do Sul, provoca a indagação sobre até que ponto esse evento pode ser atribuído a uma falha humana ou simplesmente como um efeito da natureza. Em resposta a essa questão complexa, Menegat indica que, embora as chuvas intensas sejam eventos naturais, a magnitude dos danos e da tragédia muitas vezes está relacionada a fatores humanos. Entre esses fatores estão o planejamento urbano inadequado, o uso inadequado do solo, a ocupação desordenada de áreas de risco, a falta de investimentos em infraestrutura de drenagem e contenção de encostas e também o aquecimento global. Essas são falhas que podem aumentar a vulnerabilidade das comunidades e amplificar os impactos dos desastres naturais. “Nós precisamos reconhecer que este evento foi proporcionado por uma grande enxurrada, uma chuva de nada menos de 800 milímetros em quatro a cinco dias. Ela resulta do aquecimento global, que é um aumento da temperatura do planeta que leva à emergência climática, quer dizer que intensifica fenômenos e também a sua frequência. Uma precipitação desse volume é um perigo, mas se ela ocorre numa área em que tem infraestrutura humana, ela passa a ser um risco. Ela pode danificar a estrutura social, a infraestrutura da vida humana, das cidades, da agricultura”, afirma.

Conforme o geólogo, com a existência de banhados, o impacto poderia ser amenizado, já que a velocidade da água seria suprimida. “Eles ajudam a fazer a gestão do território. Eliminando-os, a água simplesmente escorre pelo solo e não se infiltra. Quando o uso do solo é muito intensivo, e ele suprime a mata ripária, a água que precipita ganha uma velocidade enorme, rapidamente ela chega nos rios. No caso da Serra, os rios são muito profundos e estreitos, por isso, a água rapidamente se avoluma. Ela não tem pra onde se espalhar”, aponta.

Menegat ressalta ainda a importância de rever e entender a dinâmica do Rio das Antas e Taquari. “Porque essa água toda, então, ela vai se acumular lá na frente, lá na baixada, que é a região metropolitana de Porto Alegre, onde ela fica estacionada”, analisa.

Outro ponto indicando o poder do ser humano na gravidade das últimas enchentes é a questão da infraestrutura das cidades, que acabam, segundo ele, avançando até a borda de um rio que se torna uma torre inteira quando uma enxurrada é muito forte. Para evitar problemas futuros, Menegat indica a necessidade de planos diretores que considerem as encostas muito íngremes com a possibilidade de ter deslizamento de massa e de cheias.

Automaticamente, ele aponta a necessidade de criar sistemas e infraestruturas que possam, durante um evento desses, garantir o essencial à vida humana, como água e energia elétrica. “Não pode, num momento de crise, faltar tudo. Faltar hospitais, faltar água, faltar energia elétrica. Porque daí isso também aumenta a intensidade do evento. E, por fim, é preciso ter uma Defesa Civil apurada, quer dizer, capaz, com infraestrutura, com equipamentos, para que, havendo a emergência, a catástrofe, ela consiga fazer com que a população possa, antes de mais nada, evacuar antes que aconteça. Que ela consiga prever, ter sistemas de monitoramento e ter sistemas de alerta”, afirma. “Nós chamamos isso de evento desnatural porque a chuva, a emergência climática, é produzida pela atividade humana. Mas é também falha humana quando a infraestrutura para enfrentar o evento não é adequada”, explica.

O geólogo observa a necessidade de pensar, aproveitar esse momento difícil para enxergar as mudanças que a sociedade precisa adotar. “Há falha humana no sentido de que estamos sendo imprevidentes. Nós não estamos prestando atenção naquilo que a ciência está dizendo, e as coisas estão acontecendo, e quando acontecem, então, elas incidem de forma muito trágica, e não pode ser assim. Nós podemos enfrentar a emergência climática, mas nós temos que ter uma outra visão, mudar atitudes e realmente começar já”, revela.

“Muita gente está balançando os ombros e isso custa caro”, afirma Menegat

O desastre no Rio Grande do Sul pode servir como um alerta contundente para a necessidade urgente de investimentos na prevenção de catástrofes em todo o país. A tragédia evidencia a vulnerabilidade das comunidades frente aos impactos dos eventos climáticos extremos e ressalta a importância de medidas preventivas e de adaptação para reduzir esses riscos.

Diante desse cenário, Menegat espera que o poder público, não apenas no Rio Grande do Sul, mas em todo o Brasil, reconheça a urgência de políticas e ações voltadas para a gestão de riscos e desastres naturais. Isso inclui investimentos em infraestrutura resiliente, planejamento urbano sustentável, fortalecimento de sistemas de alerta precoce, capacitação de comunidades locais e promoção de práticas de conservação ambiental. Somente com uma abordagem proativa e integrada será possível mitigar os impactos das mudanças climáticas e proteger a vida e o patrimônio das populações em todo o país. “Nós estamos diante da maior catástrofe climática de uma região metropolitana na América do Sul. Dois eventos foram particulares para mostrar a todo o mundo que, de fato, estão havendo mudanças significativas do sistema climático. Estamos no meio de uma catástrofe. Ela não terminou. Há muita coisa para fazer e acontecer. A tragédia mostrou para o mundo que também no hemisfério sul as mudanças estão significativas. Então é hora de fazermos uma discussão mais séria. Há um negacionismo sobre as questões climáticas. Muita gente está balançando os ombros e isso custa caro, né? Nós estamos vendo em Porto Alegre como custa caro, porque os governos não se prepararam”, afirma.

O geólogo alerta para a necessidade de prevenção para evitar prejuízos maiores. “É possível enfrentar isso tudo desde que a sociedade tenha claro o que está ali na frente. Esses eventos climáticos não serão os últimos. Eles podem se intensificar mais e podem ser mais frequentes. Então nós temos que nos preparar para isso. Nós podemos entrar num bote sem salva-vidas, ou nós podemos entrar no bote com salva-vidas bem equipados e caso o bote vire, nós nos salvamos. Estamos tranquilos. Essa é a grande questão”, alerta. “Nós precisamos ter coragem. A sociedade não pode ficar prostrada. E isso implica, então, que o poder público, as pessoas, se conscientizem. Porque sim, nós temos capacidade técnica, social, infraestrutural para enfrentar isso. Mas temos que saber fazer e saber fazer agora”, finaliza.

Fotos: UFRGS, Vinicius Titton + Os Veios Quadri e UTV, Bruno Zilio e Gustavo Mansur