Como as icônicas máscaras gregas da tragédia e da felicidade, a identidade do povo brasileiro parece se definir por princípios antagônicos. De um lado, o povo do futebol e do carnaval, reconhecido por sua alegria e bom humor; do outro, a população mais ansiosa do mundo. Consequência dessa situação, o consumo de benzodiazepínicos, medicamentos popularmente conhecidos como “ansiolíticos” ou “calmantes”, também tem se tornado quase banal, parte da rotina.
Só em 2018, de acordo com dados do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), os brasileiros consumiram cerca de 56,6 milhões de caixas. Embora os números da SNGPC não sejam pontuais o suficiente para abranger municípios, dados levantados pela Secretaria da Saúde de Bento Gonçalves mostram que essa também é uma realidade na cidade. Levando em conta só o consumo do Diazepam 5 mg, medicamento fornecido pelo município, foram quase 500 mil comprimidos nos três últimos anos.
Em 2018, os bento-gonçalvenses consumiram 185.155 desses medicamentos, um aumento de 43% em relação ao ano anterior (128.763). O número de pessoas atendidas, porém, caiu 13%, indo de 1465 para 1269.
Medicamento de uso controlado, amplamente usado no tratamento de ansiedade e insônia o Diazepam, conforme explica a coordenara de Assistência Farmacêutica do município, Tatiana Copat Nondillo, atua no sistema nervoso central, podendo causar dependência física e mental. “O risco de dependência aumenta conforme o uso prolongado e a dose utilizada”, explícita. Se levados em conta o número de pessoas atendidas na cidade e o consumo do medicamento, cada pessoa teria ingerido cerca de 145 comprimidos por ano, ou seja, quase um a cada dois dias, a maior média dos últimos 10 anos.
O avanço do transtorno de Ansiedade
Publicado pela Organização Munidal da Saúde (OMS), em 2017, um documento com estatísticas dos distúrbios psiquiátricos ao redor do mundo mostrou que 264 milhões de pessoas sofrem com transtornos de ansiedade. Só no Brasil são 18 milhões, ou seja, 9,3% da população. Dados que nos levaram ao topo do levantamento, como o país mais ansioso de todos. A média mundial dos casos de ansiedade foi de 3,6%, quase três vezes menor que aqui.
Segundo o professor de Psicofarmacologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Lucas de Oliveira, tanto o avanço do transtorno em escala global, quanto a sua grande incidência no Brasil estão relacionados a questões amplas de ordem política, social e econômica. “O atentado de 2001 e a crise de 2008 são só alguns exemplos, de como o mundo está há uns 20 anos com uma situação que não é de tranquilidade como um todo. E aqui também não estamos em situação tranquila. Se for observar, em países com boa qualidade de vida, segurança, emprego, entre outros, a proporção de pessoas ansiosas é menor. Nosso país há muitos anos está numa situação difícil”, pontua.
A análise de Oliveira fica ainda mais contundente quando observada, por exemplo, a situação do Brasil em 2015, quando se inicia o processo de recessão econômica no país. No mesmo ano em que nosso Produto Interno Bruto (PIB) recuou 3,55%, tivemos o ápice do consumo de “Rivotril”, o benzodiazepínico mais popular entre os brasileiros. Foram 37,9 milhões de caixas. Segundo a Anvisa, o consumo do princípio ativo do Rivotril, o clonazepam, em 2007, era de 29 mil caixas por ano.
“Estamos formando uma legião de pessoas com dependência química. Isso só é bom para a indústria farmacêutica. Afinal, criou-se um consumidor fiel, que vai tomar aquele medicamento por anos a fio e se parar de consumir vai ficar muito mal”
Para Oliveira, as explicações para o grande procura deste e demais medicamentos semelhantes se explica pelo avanço dos transtornos de ordem psiquiátrica, pela prescrição indiscriminada e, sobretudo, pela dependência química gerada pelos benzodiazepínicos. “Em muitos casos, quem toma esse tipo de fármaco cronicamente não está tendo o efeito terapêutico desejado, mas usando para ficar numa situação mais ou menos estável. Eles vão acalmar no momento, mas os problemas vão prosseguir”, assinala.
Ele pontua, ainda, que a intervenção mais efetiva em casos de ansiedade passa pela psicoterapia. “O problema é que a terapia é demorada, mais cara que o medicamento e nem todo mundo tem disposição. Então esse tipo de intervenção que poderia levar a uma melhora de longo prazo fica como última opção e o que é para ser um alívio temporário, o medicamento, fica em primeiro plano”, finaliza.