Para viver do turismo é necessário investir corpo e alma. Abdicar-se de muitas coisas, mas vivenciar outras inquestionáveis, inesquecíveis e inenarráveis. Quando a jovem Elaine Michelon foi trabalhar com seu pai, o saudoso e visionário Moysés Luiz Michelon na Isabela Massas e Biscoitos, ela passou a respirar um ar familiar muito além do contexto do lar. Passou a ser o braço direito de seu progenitor e aprender com ele o espírito do empreendedorismo, da persistência, da empatia e, acima de tudo, do bairrismo. Afinal, o município de Bento Gonçalves é um local diferenciado, que merece ser visto e tratado como tal.
Aposentado, “seu Michelon” como era carinhosamente chamado, resolveu empreender no turismo, algo que mexia com seu coração e alimentava muitas de suas ideias. E lá foi ela, Elaine, dar total apoio e, novamente, servir como seu braço direito.
Após a passagem de seu pai, em 2015, Elaine tomou à frente dos negócios e, desde então, administra com todo amor e dedicação o Hotel Villa Michelon, que não é visto como um estabelecimento, mas como uma extensão da casa dos hóspedes, que passam a ser tratados como integrantes da família.
Nesta reportagem, Elaine fala sobre o hotel, alguns sonhos não realizados, o Vale dos Vinhedos e o Plano Diretor que deverá reger as construções no local e muitos outros temas.
Villa Michelon
“Está sendo um ano difícil. As condições climáticas espantaram muito os turistas. Há uma grande indecisão por parte deles de como vir, como chegar, como estão as estradas. Além disso, ninguém gosta de viajar para ficar passeando debaixo de chuva. Não tem o mesmo efeito, turisticamente falando. Então tivemos até o mês de julho muito bom, agosto foi péssimo. Em setembro tivemos o maior índice pluviométrico dos últimos 100 anos na região. Então, além de problemas de acesso, as pessoas se assustaram muito com o que viram em termos de tragédias que atingiram nossas cidades. Agora parece que estamos começando a nos reerguer. No que diz respeito a eventos, sempre tivemos, pois foi uma postura que adotamos desde a pandemia. São eventos pequenos, para 30, 40 pessoas, mas contínuos e muito frutíferos, focados. A maior parte deles, que recebemos aqui, são voltados ao agronegócio. Neste viés, o Hotel se mantém lotado de domingo a quinta. Já no fim de semana, o que mais recebemos são os turistas. Continuamos sendo um dos únicos hotéis do Vale que aceita crianças. Temos vários atrativos para elas. Também aceitamos pets. Temos apartamentos adaptados para isso. E aumentou muito a hospedagem para este público, que viaja com os animais de estimação. Com relação a investimentos, no Hotel propriamente dito, fizemos apenas a manutenção. Optamos por investir na reforma do Memorial do Vinho e na Casa do Filó, que são prédios antigos. O primeiro tem mais de 100 anos, inclusive. Precisamos que aquelas estruturas estejam boas, porque no Memorial fizemos a Bella Vendemia, a pisa, o costelão, diferenciais que temos aqui. Uma das novidades é a quadra de Beach Tennis, além das outras que tínhamos e restauramos. Ou seja: este ano o investimento foi externo. Agora vamos partir para o interno, mas a ideia não é modernizar. Tem que ficar com cara de “casa da vovó”, porque é o que queremos vender. Mas tudo tem que estar funcionando, um enxoval bom, um chuveiro bom, os hóspedes precisam se sentir bem, se sentir em casa, porque desde que meu pai veio para cá, ele dizia: “Sinta-se em casa como nos bons tempos”. Então a ideia é fazer de tudo para que as pessoas queiram voltar, porque se sentiram bem aqui”.
Perfil dos hóspedes
“Tem gente que vem de Bento para descansar aqui. Nos fins de semana o público, em sua grande maioria, vem da Região Metropolitana, especialmente Porto Alegre. Em época de férias vem muitos cariocas, paulistas, pessoas que querem fugir das grandes cidades. No inverno recebemos muitos hóspedes do Norte e Nordeste, que vêm para sentir frio. No corporativo temos mais empresas do estado, regionais e locais, poucas de fora do Rio Grande do Sul. Também recebemos muitos hóspedes de casamentos, famílias inteiras, noivos, padrinhos”.
Vale dos Vinhedos
“Acho que o Vale está diversificado demais. Era necessário, sim, dar uma diversificada, mas massificou demais, ficou muito grande. Acho que perdemos um pouco daquela essência de ser “Vale dos Vinhedos” com as vinícolas, com o turismo rural, o turismo agrícola. Perdeu-se bastante isso. Mas eu não sei o quanto essas diversificações irão se manter. Eu tenho alguns receios. Será que vamos ter mão-de-obra para tudo o que está sendo construído? Só para terem uma ideia, estou com vaga de garçom há dois anos. Eu não estou pedindo ninguém com formação. Estou pedindo apenas alguém com vontade de aprender. Quero alguém que tenha paixão pelo que faz. Tem que gostar de atender as pessoas, o que é difícil. Outro ponto: nossa estrutura viária já está sucateada. Não vai dar conta para o crescimento que vem se apresentando. Deixou de ser do Estado, veio para o Município. Mas está um caos. Eu, que faço esse percurso 365 dias por ano, sei quantos buracos têm no trecho em que eu trafego. Eu sei que a Prefeitura está tentando manter, mas é impossível. Teria que começar do zero para durar. Essa estrada foi asfaltada há cerca de 20 anos, não tem como duplicar, ela não vai aceitar mais fluxo. Afora isso, temos a ligação com a Rota do Pão e do Vinho, que foi parcialmente destruída pela enchente de setembro, mas que vai levar ao Vale do Taquari, que também está investindo em turismo. Imaginem vocês que quando viemos para cá o Vale não tinha praticamente nada. Eram seis as vinícolas conhecidas. E eu não estou falando do século passado. Inauguramos o Hotel em 2001. Nem mesmo telefone tínhamos, era uma central no Vale com ramais nas residências e estabelecimentos. Todos os empreendimentos cresceram. Muitos outros surgiram, outros hão de surgir. E vou além: temos uma ciclovia programada desde 2010. Não sai do papel. E nossa malha viária, continua a mesma. Nem acostamento temos. Também não temos linhas de ônibus urbano para os funcionários virem trabalhar. Para atrair mão de obra, temos que oferecer transporte. Infelizmente, não vejo perspectivas de melhoria”.
PlanVale
“O grande problema daqui é que não é um Plano Diretor. São três cidades envolvidas. São três tipos de interesses. Não sei o que vai ser do Vale, e me refiro a Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul. Já não temos quase parreirais. A exploração imobiliária está tomando conta. Qual é, afinal, a nossa identidade? Vamos plantar uvas viníferas, acho lindo. Mas temos que ter a Isabel também. Como que isso tudo começou? Como vamos mostrar? Aonde vamos mostrar? O turista quer ver isso. As vinícolas têm que ter uva plantada. Em 2001, quando construímos aqui, os colonos tinham vergonha de serem colonos. A palavra colono era pejorativa. Eu sempre falei colono enchendo o peito, porque sei o quanto eles trabalham. Mas a experiência da uva aqui está sendo deixada de lado. Tem a experiência do vinho, mas a uva está se escasseando. E isso me dói. A essência do colono está se esvaindo. Mas parece que preferem vender e transformar em loteamento do que trabalhar. Os filhos não querem mais ficar. Alguns montam restaurantes, gardens. Pelo menos não estão saindo da terra, mas há famílias inteiras deixando a colônia. As pessoas precisam entender que não é só crescer. Temos que crescer com qualidade, com estrutura”.
O sonho
“Meu pai tinha um sonho… colocar uma fábrica de biscoitos aqui no Hotel. Nós temos até o projeto. Tínhamos também uma loucura, que minha irmã cortou pela raiz: uma fábrica de batata frita. Descartamos a ideia. O biscoito meu pai “cutucou” as meninas da Itallini e elas estão fazendo muito bem. Então, deixa elas com os biscoitos e eu com o Hotel. Eu tenho tudo pronto, mas não tenho mais vontade de empreender. O Brasil está muito complicado”.
“ O turista quer ver e colher uva embaixo dos parreirais”
O que falta para satisfazer os turistas
“Temos uma grande deficiência em termos de alimentação aos domingos à noite e às segundas-feiras. Extremamente escasso. Muitos fecham no domingo à tarde e só irão reabrir na terça-feira. Precisamos do todo. Eu não trago turista para ficar somente aqui dentro. Eu preciso sobreviver juntamente com os outros. Temos que fazer de tudo para que a experiência do turista seja maravilhosa e completa. Não podemos ser egoístas. O sol nasceu para todos. Temos excelentes restaurantes, excelentes locais, mas restritos em horários. Podemos ter hotelaria, ter turismo sem recriar a roda. Temos que ser apaixonados pelo que fazemos. Turismo não tem folga. Ou se ama o que se faz, ou então, não se faz”.
Preparativos para o fim do ano e início de 2024
“Nós temos Ceia de Natal, Ceia de Ano Novo, eventos direcionados aos hóspedes. Na segunda quinzena de janeiro iniciamos a colheita. Neste ano vou fazer um pouco diferente a La Bella Vendemia. Ao invés de fazer toda a semana, vou fazer quinzenalmente, até porque tem outros estabelecimentos fazendo vindimas muito boas. Teremos hóspedes todos os fins de semana de janeiro a março, mas temos que contemplar as vinícolas e os outros locais que realizam programações especiais para esta época do ano”.
Visão de Bento
“Em Bento teria que ser feito algo para lembrar do passado, a fim de conseguir construir o futuro. Do passado aprendemos com erros e acertos. Precisamos construir um futuro com menos erros. Isso não significa que não se vá errar. Temos pessoas importantíssimas que ainda vivem para contar histórias, que têm um legado a ser deixado, e elas precisam ser ouvidas. São referências que precisam ser aproveitadas”.
Investimentos no Vale
“Temos muitos investimentos, mas muito do que deveria ser feito não está sendo feito. É o caso das estradas, da ciclovia. As pessoas daqui estão muito encantadas com o que nossos atrativos se transformaram, mas estão sem foco. Então, estão jogando verbas e ideias a esmo. Acho que estão deslumbrados e se desestruturando. O Vale dos Vinhedos, querendo ou não, virou um destino enoturístico imenso para o Brasil, quiçá para o mundo. As pessoas vêm em busca dos vinhos premiados, dos vinhos mais simples, da uva. Tenho turistas o ano inteiro, inclusive no inverno, que vêm para participar da colheita. Eles querem ver uva. Daí eu sugiro que voltem em janeiro, fevereiro, março. Muitos acham que temos uva o ano inteiro. Por isso que reforço: não podemos, de forma alguma, perder a nossa essência. Se isso acontecer, perderemos o Vale”.
“Bento tem tudo para crescer, mas tem que ter foco na comunidade“
O que mais impressiona em Bento
“A preservação da nossa cultura, herdada dos imigrantes, mesmo que no meu íntimo, tenho grande medo que ela se perca. O turismo também é muito bonito aqui, foi sendo muito bem conduzido ao longo dos últimos anos, tanto que se hoje recebemos cerca de um milhão e meio de visitantes por ano, é porque alguém, digo, um grupo, trabalhou muito para que isso acontecesse. Está aí mais uma coisa que não podemos deixar se esvair”.
O que mais lamenta
“O povo pacato. Acho que os jovens precisam se movimentar mais, mas é uma geração que veio do assistencialismo, que ganha tudo. Se voltarmos para as gerações que tiveram que lutar para ter as coisas, eram pessoas que arregaçavam as mangas e trabalhavam, pois precisavam se preocupar com o crescimento e o desenvolvimento do todo. Hoje as pessoas não estão mais envolvidas com a comunidade, estão cada vez mais preocupadas somente consigo. Não pensam no próximo. Não vemos muita representatividade nem nas entidades, certamente por conta disso”.
Visão de Bento atual e futura
“Sou grata hoje por termos uma representatividade política em nível estadual. Ficamos muito tempo não tendo ninguém que falasse a nossa língua. Tínhamos apenas pessoas de fora que tentavam falar. Não podemos, de forma alguma, enquanto Bento Gonçalves e pela posição que ocupamos no cenário estadual e federal, perder a representatividade. Isso nos causou imensos prejuízos durante cerca de 30 anos. Tivemos, sim, pessoas que voltaram seus olhos para nós, mas não é a mesma coisa. Bento tem tudo para crescer, mas tem que ter foco na comunidade. Mesmo que 50% não seja daqui, tem que fazer com que essas pessoas deem valor ao que é daqui”.
Fotos: Rita Michelin / Reprodução