De acordo com dados da Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (Fenacelbra), estima-se que, no Brasil, há aproximadamente 2 milhões de celíacos, sendo a maioria não diagnosticada
A doença celíaca, uma condição autoimune que afeta milhares de pessoas no Brasil e no mundo, ainda é cercada por muitos mitos e desafios, especialmente no que tange ao diagnóstico e à conscientização social. Em Bento Gonçalves, a discussão sobre o tema ganha relevância diante da crescente busca por dietas restritivas e da necessidade de informar a população sobre a seriedade dessa condição.

A Dra. Amanda Zilio, médica gastroenterologista, detalha os aspectos cruciais da doença, desde seus sintomas até as perspectivas de tratamento. Ela explica que a doença celíaca é caracterizada por uma reação inadequada do organismo à presença do glúten, uma proteína encontrada no trigo, centeio, cevada e seus derivados. Em indivíduos geneticamente predispostos, essa reação desencadeia uma inflamação no intestino delgado, levando ao desgaste das vilosidades, estruturas essenciais para a absorção de nutrientes. “Como consequência, pode haver uma série de sintomas e deficiências nutricionais”, explica a especialista.
Sintomas
Embora os mais conhecidos sejam os gastrointestinais, como diarreia, dor abdominal, distensão, gases e perda de peso, Amanda alerta para a existência de manifestações fora do padrão que tornam o diagnóstico um desafio. “Muitos pacientes apresentam sintomas atípicos, que tornam o diagnóstico mais desafiador: anemia por deficiência de ferro, osteoporose, infertilidade, aftas recorrentes, depressão, neuropatia periférica, dermatite herpetiforme, alterações nos exames de fígado sem outra explicação. Fica claro que não devemos investigar doença celíaca somente quando houver sintomas gastrointestinais”, enfatiza a médica.
O processo diagnóstico é rigoroso e inicia-se com exames de sangue sorológicos, que detectam a presença de anticorpos específicos, como o anti-transglutaminase tecidual IgA. Confirmada a suspeita, a endoscopia digestiva alta com biópsia do intestino delgado é realizada para analisar a atrofia das vilosidades. “O diagnóstico precoce é fundamental porque, quanto antes for identificada e tratada, menor o risco de complicações nutricionais, ósseas, neurológicas e até de alguns tipos de câncer, como o linfoma duodenal”, afirma a especialista. É crucial que o paciente mantenha o consumo de glúten até o término da investigação diagnóstica, pois a suspensão prévia pode gerar resultados falso-negativos devido à “normalização” das vilosidades.
Tratamento
Atualmente, o único tratamento efetivo para a doença celíaca é a exclusão total e permanente do glúten da alimentação. Mesmo pequenas quantidades, decorrentes de contaminação cruzada, podem ser prejudiciais. Amanda destaca que, “a maior dificuldade está justamente na vigilância constante: ler rótulos, entender ingredientes escondidos, evitar contaminação em restaurantes e convívio social”, afirma. Diante disso, o suporte de nutricionistas especializados e o entendimento completo da doença são essenciais para a qualidade de vida do paciente. É imperativo compreender que a exclusão do glúten deve ser mantida de forma permanente, mesmo que a melhora dos sintomas ocorra nas primeiras semanas, evitando a reintrodução indevida que pode acarretar prejuízos a longo prazo.
Amanda faz questão de diferenciar a doença celíaca de outras condições relacionadas ao glúten, como a alergia ao trigo e a sensibilidade ao glúten não celíaca. “A doença celíaca é uma reação autoimune mediada por anticorpos e alterações intestinais, confirmada por exames sorológicos e biópsia. Já a alergia ao trigo envolve o sistema imunológico mediado por IgE, podendo causar reações alérgicas imediatas. Por sua vez, a sensibilidade ao glúten não celíaca não possui marcadores laboratoriais ou lesões intestinais, mas o paciente relata melhora dos sintomas ao retirar o glúten. Não existem exames para confirmar essa condição”, elucida a médica, reforçando a indispensabilidade da investigação médica cuidadosa para diferenciar esses quadros.
Apresentação em crianças
Nos pequenos, os clássicos são dificuldade no ganho de peso e crescimento, irritabilidade, barriga distendida, diarreia crônica e atraso no desenvolvimento. Em crianças maiores, podem surgir dores abdominais recorrentes, cansaço excessivo, baixo rendimento escolar, anemia e atraso puberal. “Os pais devem estar atentos especialmente se houver histórico familiar de doença celíaca”, alerta Amanda.
O impacto da doença celíaca transcende o aspecto físico, atingindo também o bem-estar emocional e social do paciente. “O diagnóstico traz um grande impacto emocional e social, pois o paciente precisa reorganizar sua rotina alimentar e, muitas vezes, lidar com situações sociais delicadas. Ansiedade, medo de contaminação e sentimento de exclusão são comuns”, pontua a gastroenterologista. Por isso, um acompanhamento multidisciplinar com nutricionistas, psicólogos e médicos é fundamental para garantir não apenas o controle clínico, mas também o bem-estar mental e a qualidade de vida do celíaco.
A banalização da dieta sem glúten, impulsionada por tendências e modismos, gera preocupações para a comunidade médica e para os celíacos. Amanda aponta dois problemas importantes: “Primeiro, muitas pessoas retiram o glúten por conta própria, sem uma investigação adequada, o que pode mascarar sintomas e dificultar o diagnóstico correto da doença celíaca. Em segundo lugar, essa adoção indiscriminada da dieta acaba desvalorizando a seriedade da doença celíaca. Como muita gente elimina o glúten sem real necessidade, passa-se a ideia equivocada de que o celíaco está apenas seguindo uma ‘moda’ ou sendo ‘exagerado’, o que dificulta a compreensão social das restrições que ele realmente precisa seguir”, alerta. Para o celíaco, a dieta sem glúten não é uma escolha, mas um tratamento obrigatório.
Atualidades
No campo da pesquisa, há linhas promissoras para o futuro do tratamento da doença celíaca, incluindo enzimas que degradariam o glúten antes do contato com o intestino e imunoterapias que modulam a resposta autoimune. Contudo, a Amanda ressalta que nenhuma dessas abordagens substitui a dieta isenta de glúten, que segue sendo o único tratamento comprovadamente eficaz. “A expectativa é que, no futuro, possamos ter opções complementares que tragam mais segurança e qualidade de vida ao paciente celíaco”, afirma.
A conscientização é a chave para uma melhor compreensão e acolhimento dos celíacos. Amanda enfatiza a importância de informar. “Muitos estabelecimentos ainda não compreendem a seriedade da contaminação cruzada para o celíaco, em que até traços mínimos de glúten podem desencadear reações”, explica. Capacitar profissionais da área de alimentos, oferecer treinamento específico e promover campanhas educativas são passos importantes.