Em 19 de agosto de 1839, durante um encontro com a presença de membros da Academia de Ciências e da Academia de Belas-Artes, realizado no Instituo da França, em Paris, o cientista e secretário da Academia de Ciências, François Arago, apresentava ao mundo, o daguerreótipo, a “primeira câmera fotográfica do mundo”, invento desenvolvido por Joseph Nicèphore Niépce (1765-1833) com base nos experimentos de Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851). Em homenagem a esse momento histórico, a data passaria a ser comemorada como o “Dia mundial da Fotografia”.
Para celebrar a data, o Semanário conversou com apaixonados pela fotografia e com diferentes fotógrafos profissionais de Bento Gonçalves, explorando por meio de seus relatos e vivências os diferentes rumos e papéis do invento de Niépce e Daguerre, como objeto de arte, documentação histórica e eternização de transformações sociais e de acontecimentos da vida.
A foto como memória
No concreto, que circunda a boca de lobo, em frente à casa onde vive no bairro Santo Antão, Dolmires Lunardi, 76 anos, marcou a data em que seu lar começou a ser construído. O “vício em registrar a história”, como ele mesmo define, se revela também nas milhares de fotografias que abarrotam caixas de camiseta, sapatos e as paredes.
No verso de cada uma delas, a data, o local onde foram tiradas e o que as cenas capturadas significam. Os dados ajudam a reviver as memórias dos tempos e situações congeladas no tempo e impressas em papel. Sejam fotografias tomadas por ele, por amigos, conseguidas com familiares ou mesmo compradas — “Tinha um fotógrafo aqui que chamávamos de Foto Luz; ele tinha uma vitrine, onde expunha as fotos e a gente ia lá e comprava”, lembra —, as histórias pessoais que Lunardi registra imagética e verbalmente se confundem com a própria história de Bento Gonçalves.
Da fotografia em preto e branco às imagens em cores, sua coleção pessoal conta com registros raros do Clube Esportivo de Bento Gonçalves, do extinto clube amador Juvenil, momentos de descontração e trabalho do período da construção das ferrovias e do 1º Batalhão Ferroviário, da família de sua esposa na década de 1910, entre outros. Como uma enciclopédia viva, a cada imagem que mostra, acompanha um relato. “Ao lado do presídio ali do centro, em frente onde eu morava, tinha uma cancha de concreto e a garotada jogava contra o time da Brigada Militar. Nos sábados e domingos, que era dia de visita dos familiares, permitiam que detentos jogassem com nós e suas famílias se juntavam para torcer”, conta, enquanto mostra uma foto da década de 1950, quando o presídio, que está prestes a ser desativado, recém havia sido levantado.
Em preto e branco, guarda com carinho uma foto em que está sentado em cima de um muro, em uma casa de um vizinho do avô. “Seja no futebol ou na política, ele (seu avô) sempre me aconselhava a ficar em cima do muro para evitar problemas, aí brinquei com ele e pedi para fazer essa foto”, lembra. A última “imagem impressa” foi o lançamento do livro que conta a história de seu falecido amigo, Aristides Bertuol. Ela, no entanto, não é a última em que ele aparece. “Ainda domingo, teve a missa da comunidade de Santo Antão e tirei uma foto com os festeiros, mas agora não é mais de papel. No meu tempo de guri, onde tinha fotógrafo, eu estava”, finaliza.
“A fotografia ajuda a recordar os momentos felizes que passei. Elas mostram a cidade crescendo, e não é algo que eu apenas conto, mas que registrei e que vivi”
Foto esportiva: registros da emoção
Uma das últimas fotos de Enio Bianchetti, 54 anos, estampa, em primeiro plano, a emoção e o sorriso do camiseta 90 gremista, André, abraçado pelo companheiro de time, Everton. O alívio do centroavante tricolor após marcar o primeiro gol que encaminhou a vitória do Grêmio sobre o Athletico Paranaense, após um longo período de críticas da torcida acerca de seu desempenho, é apenas um entre os milhares de momentos históricos para os torcedores, eternizados pelo fotógrafo bento-gonçalvense.
Torcedor colorado, mas, sobretudo, do Esportivo e do futebol como um todo, Bianchetti já foi jogador da categoria juvenil do alviazul bento-gonçalvense, teve a oportunidade de viver o time em todas as frentes: jogando, da arquibancada, e desde, 2007, quando voluntariamente se inscreveu para fazer o marketing e as fotografias do clube, por trás das lentes de sua câmera. Apaixonado por futebol, é, justamente, o poder de eternizar cenas como as da última quarta-feira que o fizeram se aperfeiçoar como fotógrafo esportivo, profissão que, ainda, trata como hobbie. “Amo fotografar os lances, os jogadores, a vibração da torcida. Registar e transmitir todo esse cenário que envolve um campo de futebol é muito gratificante”, destaca.
Apesar de, ao longo de mais de uma década, já ter registrado mais de uma centena de jogos da dupla grenal, entre eles finais e “mata-mata”, são as partidas de retorno do Esportivo para a série A do Campeonato Gaúcho, em 2012 e em 2018, ano do centenário do clube, as que mais se comoveu ao fotografar. “Me emociono com todos jogos decisivos. Fotografei Copa do Brasil, Libertadores, mas o mais inesquecível para mim é sem dúvida ter registrado o Esportivo subindo”, destaca.
Foto documental: relatos da história
Eternizar a realidade do que costuma passar longe dos holofotes e que constituem, mesmo que não se o perceba no momento, a história de parte da cultura urbana de nossa cidade. Isso é o que alimenta e direciona as paixões de Bruna Ferreira, 22 anos, pela fotografia e pelo hip hop.
Autora do livro fotográfico “Coolture Trip; Nossa casa, Cypher Vico”, lançado em 2018, e atualmente com o projeto “Rolê Coolture Trip”, em exposição no Sesc de Bento Gonçalves, as imagens que compõem ambas as obras são fruto de mais de quatro anos de documentação da cultura hip hop na cidade. Para além dos movimentos de dança, são registros de pessoas que compõem e que vivenciam o sentimento de pertencimento proporcionado pela cultura urbana. “A ideia é registar o movimento do hip hop, que ocorre sem divulgação ou financiamento, como o que ocorre na praça Vico e em vários lugares do Brasil, onde as pessoas se encontram para fazer o hip hop seguir acontecendo. Os eventos são muito importantes para essa cultura que já tem 46 anos, mas sozinhos não a sustentam. O que a mantém são esses encontros que que acontecem espontaneamente”, sublinha.
A fotografia, explica, começou por casualidade. Um amigo costumava levar uma câmera para a praça e, aos poucos, Bruna foi trocando os passos de dança pela captura do movimento dos amigos. “Eu estava crescendo dentro do hip hop com pessoas que já tinham um legado e razão para viver, como a dança. Eu estava inserida, mas não sabia ainda qual a forma de eu contribuir para fomentar essa cultura, até me descobrir como fotógrafa. Foi com a foto que me encontrei no mundo, e não me vejo fazendo outra coisa, seja no hip hop como fora dele”, destaca. Para ela, o papel da fotografia é documentar. “É guardar um pedacinho da história que será contada depois”, complementa.
“O registro desses momentos pode não parecer tão importante no momento, mas daqui 20 anos eles vão continuar existindo e mostrando como tudo acontecia e isso é muito valioso. Essas pessoas que estão hoje, em 2019, no livro, na exposição, podem parar de dançar, mas elas fizeram a história aqui e agora”
Foto social: eternização de bons momentos
Centenas de casamentos, formaturas, festas de 15 anos e milhares de olhares chorosos, abraços e sorrisos eternizados. Esse é, em suma, um resumo de mais de duas décadas de trabalho do fotógrafo social Merlo, 49 anos.
De personalidade emotiva e sensível, guarda cada um dos negativos e das fotos que fez ao longo de todos esses anos, com o cuidado de quem sabe que está eternizando as memórias mais felizes e os dias mais importantes da vida de muitas pessoas. “É um trabalho que tem que ser valorizado. Ser escolhido para fotografar momentos tão importantes para quem está ali é algo fantástico e que exige muito carinho e cuidado”, resume.
Apesar da longa trajetória na fotografia, é justamente o primeiro evento que fotografou, um casamento em Monte Belo do Sul, em 1997, o que não consegue esquecer. “Nunca suei tanto na vida. Foi o primeiro momento que tive o compromisso firmado de entregar o trabalho para alguém, foi a perda do medo, algo realmente inesquecível”, finaliza.
“A fotografia é um documento, uma coisa histórica. Talvez o casal que fotografei hoje tenha um filho que daqui 30, 40 anos será um governador ou o presidente, ou ainda, um prêmio Nobel. Quando fotografamos, muitas vezes não nos damos conta disso, mas pode ser que eu tenha guardado imagens que podem ser importantes lá na frente”