No mês de conscientização da violência contra a mulher, o Agosto Lilás, entrevistamos a psicóloga Daniele Walczak para explicar sobre os diferentes tipos de violências e como acontecem
O Agosto Lilás é uma campanha nacional de conscientização e combate à violência contra a mulher, realizada no Brasil durante o mês de agosto. Criada em 2016, a iniciativa tem como objetivo principal sensibilizar a sociedade sobre a importância de combater todas as formas de violência contra as mulheres e divulgar a Lei Maria da Penha, que completou 17 anos em 2023.
A campanha adota a cor lilás como símbolo da luta pelos direitos das mulheres e promove uma série de ações educativas e informativas, como palestras, debates, campanhas nas redes sociais, rodas de conversa, e eventos em espaços públicos. As atividades têm como foco conscientizar tanto as mulheres sobre seus direitos e os meios de proteção disponíveis, como a sociedade em geral, para que todos possam reconhecer, denunciar e combater a violência de gênero.
Além de abordar a violência física, o Agosto Lilás também destaca outras formas de violência contra as mulheres, como a psicológica, patrimonial, sexual e moral, mostrando a necessidade de uma abordagem ampla e integrada para enfrentar essa questão.
A campanha reforça a importância da denúncia e incentiva as vítimas a buscarem ajuda, promovendo o Disque 180, canal nacional que recebe denúncias de violência contra a mulher e orienta sobre os serviços de apoio. O Agosto Lilás é, portanto, um marco na luta contra a violência de gênero, buscando criar uma cultura de respeito e igualdade entre homens e mulheres.
Em meio a essa campanha, a psicóloga Daniele Walczak, especialista em Terapias Cognitivo-Comportamentais, oferece uma visão aprofundada sobre os relacionamentos abusivos, destacando a complexidade, os impactos emocionais e psicológicos, além de desmistificar crenças equivocadas que perpetuam a violência de gênero.
O que são relacionamentos abusivos
Daniele esclarece que os relacionamentos abusivos não se limitam a parcerias heterossexuais. “Relacionamentos abusivos podem ocorrer em qualquer tipo de vínculo, seja ele homoafetivo ou até mesmo familiar, como entre pai e filha ou avô e neta,” afirma. Ela destaca que existem cinco principais tipos de violência: física, sexual, patrimonial, psicológica e moral.
Violência Física e Sexual: a violência física é uma das formas mais visíveis de abuso, envolvendo agressões como tapas, chutes, empurrões ou sufocamento. Já a violência sexual, envolve obrigar a vítima a participar de atividades sexuais contra sua vontade, seja por meio de força física, chantagem ou intimidação. “Mesmo dentro de um relacionamento, isso é caracterizado como estupro”, ressalta.
Violência Patrimonial e Moral: a violência patrimonial ocorre quando o agressor controla o dinheiro da vítima, destrói seus bens ou impede o uso de recursos financeiros. Já a violência moral envolve difamação, calúnias e insultos. “Muitas vezes com o objetivo de destruir a reputação da mulher, tanto em público quanto em ambientes privados,” explica Daniele.
Violência Psicológica: a violência psicológica, considerada por ela como uma das mais insidiosas, visa controlar os passos, decisões e comportamentos da vítima, afetando profundamente sua autoestima e autoconfiança. Esse tipo de abuso pode incluir humilhações, ameaças e tentativas de isolar a mulher de seus amigos e familiares.
A sutileza e a gradualidade do ciclo de abuso
Daniele detalha o que chama de “ciclo de abuso”, um padrão recorrente em relacionamentos abusivos. “O ciclo começa de forma muito sutil, com pequenas críticas ou tentativas de controle que, no início, parecem inofensivas. Ao longo do tempo, essas atitudes se intensificam e evoluem para formas mais explícitas de abuso”, descreve.
O ciclo de abuso geralmente passa por três fases: tensão, violência e lua de mel. Na fase de tensão, a vítima sente que algo está errado, mas não consegue identificar exatamente o que é. Na fase de violência, o agressor explode em raiva, que pode se manifestar de várias maneiras, desde abuso verbal até agressão física. Após essa explosão, vem a fase da lua de mel, onde o agressor pede desculpas e promete mudar. “Essa fase de reconciliação dá à vítima uma falsa esperança de que o parceiro pode realmente mudar, o que muitas vezes prende ela ainda mais no ciclo,” explica a psicóloga.
Isolamento e controle: ferramentas do agressor
Um dos aspectos mais complexos dos relacionamentos abusivos é o isolamento social que muitas vítimas enfrentam. Daniele observa que “o agressor muitas vezes começa a criticar as amizades e a família da vítima, afastando-a de sua rede de apoio. Com o tempo, a mulher se vê cada vez mais isolada, dependendo exclusivamente do parceiro para validação emocional”, explica.
Esse isolamento é uma estratégia deliberada do agressor para aumentar o controle sobre a vítima. “Ele pode sugerir que os amigos da mulher não são boas companhias ou que a família influencia de maneira negativa, criando um ambiente onde a vítima se sente completamente sozinha e sem apoio”, destaca.
O papel das redes sociais na perpetuação do abuso
A psicóloga aborda a influência das redes sociais na perpetuação de comportamentos abusivos. “Hoje em dia, é fácil encontrar nas redes sociais discursos que normalizam a submissão da mulher e a dominação do homem, muitas vezes disfarçados como conselhos sobre relacionamentos,” afirma. Ela alerta que esse tipo de conteúdo é extremamente perigoso, pois reforça a ideia de que certos comportamentos abusivos são normais e aceitáveis. “É preocupante ver que esses discursos são, em alguns casos, propagados por mulheres, o que pode confundir ainda mais as vítimas sobre o que é ou não aceitável em um relacionamento,” acrescenta a psicóloga.
Para ela, é fundamental que as pessoas desenvolvam um filtro crítico sobre o que consomem nas redes sociais, especialmente os jovens que estão em processo de formação de suas identidades e valores
Desmistificando mitos sobre relacionamentos abusivos
Existem muitos mitos e concepções erradas sobre relacionamentos abusivos que precisam ser desmistificados, segundo Daniele. Um dos mais comuns é a ideia de que “se fosse tão ruim, a vítima já teria saído”. Daniele explica. “Essa visão ignora fatores como baixa autoestima, dependência financeira, medo de represálias e a falta de uma rede de apoio forte, que muitas vezes fazem com que a mulher permaneça no relacionamento abusivo”, diz. Outro mito comum é o de que “ciúmes excessivos são sinal de amor”. A psicóloga é enfática ao afirmar que “ciúme desmedido não é amor, é controle e possessividade. Quando o ciúme se transforma em controle, isso é um sinal claro de um relacionamento abusivo”, destaca.
A psicóloga também combate a crença de que “o parceiro só está passando por uma fase ruim e que, com o tempo, ele vai mudar”. Para ela, esse é um dos discursos mais perigosos, pois coloca a responsabilidade da mudança sobre a vítima. “Não cabe à mulher salvar o parceiro ou ajudá-lo a controlar suas emoções; essa responsabilidade é dele”, afirma.
Os efeitos duradouros do abuso
O impacto de um relacionamento abusivo pode se estender por muitos anos, afetando a maneira como a vítima se relaciona no futuro. “Após sair de um relacionamento abusivo, muitas mulheres podem desenvolver dificuldades em confiar em novos parceiros ou medo de repetir os mesmos padrões”, explica Daniele. Ela acrescenta que algumas vítimas podem evitar relacionamentos por completo, preferindo permanecer sozinhas a correr o risco de sofrer novamente.
Ela também menciona que o trauma de um relacionamento abusivo pode fazer com que a mulher desenvolva comportamentos de autossabotagem em novos relacionamentos. “Ela pode evitar expressar seus desejos ou sentimentos por medo de desagradar o parceiro ou de desencadear uma reação negativa,” observa.
A importância do acompanhamento psicológico
Para Daniele, o acompanhamento psicológico é fundamental para a recuperação das vítimas de abuso. “É crucial que a vítima entenda que ela não é culpada pelo abuso que sofreu. O processo terapêutico ajuda a recuperar a autoestima, a autoconfiança e a capacidade de se relacionar de maneira saudável”, explica.
Além disso, o acompanhamento psicológico pode auxiliar a vítima a reconstruir suas redes de apoio, que muitas vezes foram destruídas pelo agressor. “Reconectar-se com amigos e familiares, redescobrir hobbies e interesses, e trabalhar em novos objetivos de vida são passos essenciais para a recuperação”, afirma.
No contexto do Agosto Lilás, Daniele Walczak enfatiza que a conscientização é apenas o primeiro passo na luta contra a violência de gênero. “Precisamos ir além da conscientização e trabalhar ativamente para prevenir a violência contra a mulher. Isso inclui educar as pessoas sobre os sinais de abuso, apoiar as vítimas e criar uma cultura onde a violência de gênero não seja tolerada”, conclui.
Sala das Margaridas
A “Sala das Margaridas” é uma iniciativa da Polícia Civil criada para oferecer um ambiente seguro e acolhedor para o atendimento de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Esse espaço, que se encontra dentro de delegacias de polícia, é reservado para que as vítimas possam relatar suas experiências com privacidade, longe de seus agressores, garantindo o máximo de respeito e segurança durante o processo.
Iniciado em 2019 no Rio Grande do Sul, o projeto tem se expandido para várias regiões do Estado. As Salas das Margaridas são equipadas para permitir que as vítimas registrem ocorrências, façam pedidos de medidas protetivas e passem por uma avaliação de risco, o que ajuda a polícia a desenvolver planos de proteção adequados.