Em entrevista ao Semanário, o dirigente discute o mercado de vinho e espumantes brasileiros, suas inovações e possibilidades para o futuro
A história da vitivinicultura brasileira se entrelaça com a trajetória da Vinícola Geisse, situada em Pinto Bandeira, na Serra Gaúcha, uma das regiões mais promissoras para a produção de espumantes de alta qualidade. À frente desta história está Daniel Geisse, presidente da Associação dos Produtores de Vinhos de Pinto Bandeira (Asprovinho) e diretor da vinícola que leva o sobrenome de sua família, referência na produção de espumantes premium. Em entrevista, Geisse compartilha sua visão sobre o mercado de vinhos no Brasil, as conquistas regionais, e as inovações que estão moldando o futuro da vitivinicultura.
A origem da Vinícola Geisse
A Vinícola Geisse tem suas raízes em uma história que atravessa fronteiras e une duas grandes nações produtoras de vinho: Brasil e Chile. A tradição vitivinícola da família Geisse começou no país vizinho, e foi trazida para o Brasil pelo patriarca Mario Geisse, um enólogo chileno renomado. “Meu pai chegou ao Brasil no início dos anos 1970, a convite da Chandon, para instalar a marca no país. Foi então que ele descobriu a região de Pinto Bandeira e ficou encantado com o potencial dessa terra para a produção de espumantes”, relata Daniel Geisse.
Naquela época, o Brasil ainda era um terreno praticamente inexplorado quando se tratava de espumantes de alta qualidade. Contudo, a visão inovadora de Mario Geisse levou-o a realizar estudos detalhados sobre o terroir da região, o que culminou na fundação da Vinícola Geisse em 1979. “Ele foi um pioneiro ao realizar os primeiros estudos de terroir na região, e esses estudos provaram que Pinto Bandeira tinha condições ideais para a produção de espumantes, algo difícil de encontrar fora de regiões tradicionais como Champanhe”, comenta.
A especialização em espumantes: um marco na América do Sul
Ao longo de 45 anos, a Vinícola Geisse se especializou exclusivamente na produção de espumantes de alta qualidade, utilizando as variedades Chardonnay e Pinot Noir. Geisse destaca que essa decisão foi estratégica. “Optamos por focar 100% em espumantes, porque acreditamos no potencial da região para essa categoria de vinhos. Aqui, temos um clima e um solo que favorecem o cultivo dessas variedades, e isso nos permite criar espumantes que competem com os melhores do mundo”, afirma.
Com o tempo, a Vinícola Geisse consolidou sua posição como uma das principais referências em espumantes na América do Sul, sendo uma das poucas vinícolas especializadas exclusivamente nessa categoria de vinho. “Somos reconhecidos pela nossa linearidade de qualidade. Tudo aqui é feito com um cuidado extremo para garantir que cada garrafa de espumante representa o que há de melhor no terroir de Pinto Bandeira”, explica Geisse.
O mercado de vinhos no Brasil
O mercado de vinhos no Brasil passou por uma transformação significativa nas últimas décadas, especialmente após a abertura econômica nos anos 1990. Geisse relembra que, antes dessa abertura, o Brasil era um mercado extremamente fechado para vinhos importados. “Até a época do Collor, o Brasil tinha fronteiras fechadas para vinhos importados, o que forçou multinacionais como a Chandon a se instalarem aqui para produzir localmente”, comenta.
Com a abertura do mercado, os vinhos importados começaram a ganhar espaço, e os produtores brasileiros foram desafiados a elevar seus padrões de qualidade. Geisse explica que essa mudança foi benéfica para o setor como um todo. “A concorrência internacional obrigou os produtores nacionais a melhorar. Antes, o vinho brasileiro não tinha competidores diretos, e isso acabou atrasando nossa evolução. Mas com a entrada dos importados, o mercado se equilibrou e hoje o consumidor brasileiro tem acesso a uma variedade imensa de vinhos do mundo todo”, diz.
No entanto, ele ressalta que a concorrência continua sendo desafiadora, especialmente quando se trata de vinhos tranquilos (tintos e brancos). “Países como Chile e Argentina conseguem produzi-los de alta qualidade com custos muito mais baixos, o que os torna competitivos no mercado brasileiro”, afirma. Além disso, Geisse aponta para a elevada carga tributária brasileira como um dos grandes entraves para o crescimento do setor vinícola nacional. “Os impostos aqui no Brasil são muito altos, e isso penaliza bastante as empresas locais. Torna a briga ainda mais desleal, porque os vinhos importados acabam chegando com preços competitivos”, explica.
Apesar desses desafios, Geisse vê um diferencial importante nos espumantes brasileiros. “Quando se trata de espumantes, o Brasil tem uma vantagem. Hoje, cerca de 85% do mercado de espumantes no Brasil é atendido por produtos nacionais. Isso mostra que o consumidor brasileiro reconhece a qualidade dos nossos espumantes, que têm uma excelente relação custo-benefício”, afirma.
A denominação de origem Altos de Pinto Bandeira
Uma das maiores conquistas da região de Pinto Bandeira foi a obtenção da Denominação de Origem (DO) Altos de Pinto Bandeira, que certifica a qualidade dos espumantes produzidos na região. Geisse, como presidente da Asprovinho, foi uma das figuras chave nesse processo, que levou mais de 20 anos para se concretizar. “A DO é um reconhecimento técnico e científico de que a região de Pinto Bandeira tem atributos únicos que permitem a produção de espumantes de altíssima qualidade”, afirma.
A Denominação de Origem Altos de Pinto Bandeira é a única no Novo Mundo dedicada exclusivamente a espumantes, o que eleva ainda mais a importância dessa conquista para o Brasil. “A DO garante que os espumantes produzidos aqui sigam regras rigorosas de plantio, manejo e colheita, o que assegura a qualidade do produto final. Para nós, é um marco histórico, pois valida tudo o que já sabíamos: que a região tem um potencial incrível para produzir espumantes que competem com os melhores do mundo”, ressalta.
Além de garantir a qualidade dos espumantes, a DO também tem um impacto econômico significativo na região. “Os produtores que seguem as regras da DO têm uma demanda garantida para suas uvas e conseguem vender por um valor mais alto. Isso cria uma cadeia de valor que beneficia toda a comunidade local”, explica. Geisse acredita que a DO é um projeto de longo prazo, que beneficiará as próximas gerações. “Essa denominação é algo eterno, que vai garantir a sustentabilidade da região por muitos anos”, afirma.
Tecnologia no campo e a retenção de jovens na vitivinicultura
Um dos grandes desafios enfrentados pela agricultura em geral, e pela vitivinicultura em particular, é a retenção de dos mais novos no campo. Geisse explica que muitos jovens resistem a seguir a carreira de seus pais, preferindo buscar oportunidades nas cidades. “Os filhos de produtores não querem mais ficar expostos ao sol e aos defensivos químicos. Eles olham para o trabalho no campo e veem uma vida muito dura, diferente das oportunidades que as cidades oferecem”, comenta.
No entanto, ele acredita que a tecnologia pode ser a chave para mudar essa percepção. “Com o avanço tecnológico, o trabalho no campo está se transformando. Hoje, já utilizamos drones, robôs e tratores com ar-condicionado para manejar os vinhedos. Essas inovações tornam o trabalho mais eficiente e menos desgastante, o que atrai mais os jovens”, explica.
Ele acredita que a próxima geração de produtores de vinho será muito mais focada no uso da tecnologia e na gestão empresarial do que no trabalho braçal. “O jovem de hoje vai se enxergar mais como um empresário do agronegócio, alguém que utiliza a tecnologia para melhorar os processos e aumentar a rentabilidade, e não como um trabalhador braçal. Isso vai ajudar a reter talentos no campo”, afirma.
Enoturismo: recuperação e perspectivas
Apesar das dificuldades recentes, o enoturismo em Pinto Bandeira segue como uma das principais forças econômicas da região. Antes das enchentes, ele estava em plena expansão, com cerca de 45 mil visitantes anuais, atraídos pelas experiências diferenciadas oferecidas pelas vinícolas locais. Geisse destaca o papel do enoturismo na promoção dos espumantes de alta qualidade da região, além de movimentar a economia local. “O enoturismo aqui é muito forte, especialmente por conta dos espumantes, que estão em alta. As vinícolas de Pinto Bandeira se destacam por oferecer experiências únicas, diferenciadas de outras regiões do país”, afirma. Ele acrescenta que o público que visita a região é de alto poder aquisitivo, o que contribui para o desenvolvimento do comércio local e gera um ticket médio elevado.
No entanto, os impactos das enchentes e o fechamento dos aeroportos após o desastre natural afetaram consideravelmente o fluxo turístico. “Estamos funcionando com cerca de 30 a 40% do movimento que tínhamos antes das enchentes. Durante a semana, o número de visitantes ainda é baixo, mas já vemos uma recuperação significativa aos finais de semana”, explica.
Para a recuperação total, a reabertura dos aeroportos será fundamental. Geisse acredita que, quando os voos voltarem ao normal, a região poderá até vivenciar uma retomada mais rápida do que o esperado. “Assim que os aeroportos abrirem, esperamos uma recuperação acelerada. Estamos otimistas, tanto que mantivemos nossa equipe completa e até ampliamos os investimentos em novas áreas de entretenimento nas vinícolas, visando melhorar ainda mais a experiência dos turistas”, ressalta.
Investimentos em infraestrutura e tecnologia
Para garantir que o enoturismo e a vitivinicultura em Pinto Bandeira continuem a crescer, a tecnologia tem desempenhado um papel crucial. Geisse comenta que a Vinícola já investe há anos em tecnologias avançadas para o manejo dos vinhedos, incluindo drones, robôs e sistemas automatizados de proteção contra granizo. “Somos reconhecidos por nossos investimentos em tecnologia, que protegem nossa matéria-prima e garantem a qualidade dos espumantes que produzimos”, afirma.
Esses investimentos não apenas protegem a vinícola de desastres naturais, mas também tornam o trabalho no campo mais eficiente e menos árduo. Geisse acredita que essa modernização é fundamental para atrair a nova geração de produtores e manter o legado da vitivinicultura na região.
Além disso, a Asprovinho tem trabalhado ativamente para promover a modernização do setor. “Nosso papel como associação é fomentar a inovação e garantir que os produtores locais tenham acesso às melhores tecnologias disponíveis. Isso é fundamental para garantir a competitividade de nossos espumantes no mercado global”, afirma.
O papel da Asprovinho na promoção dos espumantes
A Asprovinho é uma entidade que desempenha um papel vital no desenvolvimento da vitivinicultura na região. Sob a presidência de Geisse, a associação tem se concentrado na divulgação da Denominação de Origem (DO) Altos de Pinto Bandeira e na promoção dos espumantes que seguem os rígidos padrões de qualidade estabelecidos pela certificação. “Nossa missão é mostrar ao mundo os diferenciais dos espumantes de Pinto Bandeira. A DO garante que nossos produtos sigam um rigoroso controle de qualidade, o que aumenta a confiança dos consumidores e fortalece a nossa posição no mercado”, afirma Geisse.
Além da promoção, a associação também atua no incentivo à adesão dos produtores às regras da DO, buscando aumentar a área de produção que segue os padrões exigidos. “Queremos que mais produtores se juntem a nós na produção de espumantes de alta qualidade, pois isso garante maior valor agregado às uvas e uma demanda consistente por parte das vinícolas”, destaca.
A associação também está trabalhando em conseguir parcerias com instituições financeiras para facilitar o acesso a crédito, permitindo que os pequenos produtores invistam na reconversão de seus vinhedos. “Estamos em diálogo com bancos para criar linhas de crédito viáveis, que possibilitem aos produtores plantar variedades adequadas à DO. Isso é crucial para o futuro da vitivinicultura em Pinto Bandeira”, ressalta.
Desafios tributários
Geisse também aborda a questão da reforma tributária, um tema sensível para o setor vitivinícola. Ele expressa preocupação com a possível criação de um “imposto do pecado”, que poderia aumentar ainda mais a carga tributária sobre o vinho, já uma das mais altas do mundo. “A simplificação dos impostos é bem-vinda, mas estamos atentos a como a reforma vai impactar o setor. Se houver um aumento na taxação dos vinhos, especialmente com a criação de um imposto específico sobre bebidas alcoólicas, muitas vinícolas podem não sobreviver”, alerta.
Geisse também critica o modelo de centralização tributária proposto pela reforma, no qual os impostos seriam coletados pelo governo federal e repassados aos municípios. “Esse formato é problemático. No Brasil, os municípios muitas vezes precisam ‘passar o chapéu’ para conseguir os recursos que deveriam receber. Isso pode dificultar ainda mais o desenvolvimento local”, comenta.
Perspectivas futuras para a região
Apesar dos desafios enfrentados pelo setor, Geisse está otimista quanto ao futuro da vitivinicultura em Pinto Bandeira. Ele acredita que, nas próximas décadas, a região se consolidará como um dos principais polos produtores de espumantes do mundo, comparável a Champanhe, na França. “Nosso futuro está na produção de espumantes de altíssima qualidade, dentro das regras da Denominação de Origem. Com isso, garantimos não apenas o sucesso da nossa geração, mas também o futuro das próximas gerações de produtores. O reconhecimento global da região como produtora de espumantes premium é apenas uma questão de tempo”, conclui.
Com uma visão estratégica e um forte compromisso com a qualidade, Daniel Geisse e os produtores de Pinto Bandeira estão prontos para levar a vitivinicultura brasileira a novos patamares, transformando a região em um sinônimo de excelência na produção de espumantes.