Com apenas um banco de sangue para toda a Serra Gaúcha, muitos tutores compartilham suas dificuldades para conseguir salvar a vida de seus pets

A doação de sangue para cães e gatos, embora ainda pouco conhecida, tem sido mostrada essencial para salvar vidas na Serra Gaúcha. Com a inauguração do Banco de Sangue Veterinário da Serra Gaúcha (BSG), em Caxias do Sul, em outubro de 2023, uma nova perspectiva foi trazida para a região, facilitando o acesso a bolsas de sangue e aumentando as chances de sobrevivência de animais que passam por procedimentos cirúrgicos e com problemas de saúde variados. “O nosso banco de sangue é novo, com uma proposta diferente dos outros serviços semelhantes na região. Ano passado, ainda estávamos no início do projeto e nosso maior foco eram as doações de sangue de felinos. Considerando o período do início do projeto, foram em média 80 bolsas de sangue já transfundidas em cães e gatos até hoje”, destaca a médica veterinária do BSG, Caroline Rocha Fagundes.

A profissional aponta a situação atual. “A disponibilidade de bolsas de sangue depende totalmente do voluntariado dos tutores dos pets doadores. Isso é variável, hoje, conseguimos manter um estoque sempre disponível de bolsas de sangue de cães, variando em média de cinco bolsas por semana. Já as bolsas para gatos, é ainda mais difícil de estocar, pois a procura é muito grande. Em média duas por semana conseguimos disponibilizar”, argumenta.

A médica veterinária, Marina Kerpen, explica como funciona o processo de doação de sangue. “O tutor que deseja cadastrar seu pet para ser doador de sangue, deve agendar conosco inicialmente uma avaliação clínica para verificarmos os requisitos e explicarmos como tudo funciona. Todo o processo e benefícios, não possuem custo ao tutor do doador. A coleta da bolsa de sangue é bastante simples e rápida. Para os doadores felinos, é necessária uma sedação leve, para que fiquem mais tranquilos durante os 10 minutos da coleta. A recuperação é imediata, logo após a finalização da coleta, é fornecido alimento para o doador e logo após, já pode ir para casa”, salienta.

Ela aponta que não é necessário nenhum cuidado e restrição após a coleta de bolsa de sangue. “Cada doador doa a quantidade de sangue indicada de acordo com o seu peso e também sempre avaliamos cada situação, priorizando sempre o mínimo de estresse e a saúde do doador de sangue. A coleta é feita pela punção de uma veia calibrosa, como a jugular, para uma coleta asséptica. É importante realizarmos a tricotomia (retirada de pelos) na região da punção. O procedimento é bastante semelhante a uma coleta de sangue de rotina de pets. A doação de sangue ocorre com um intervalo de três meses entre cada doação”, indica.

Segundo Caroline, o serviço do BSG, se resume em realizar as coletas e fornecer as bolsas de sangue para que as clínicas e hospitais veterinários realizem a transfusão sanguínea em seus pacientes, as quais são realizadas em média de 80 a 120 transfusão ao ano. “Percebemos um grande registro de felinos portadores de FeLV (Leucemia Felina) e no caso dos cães, as maiores prevalências são neoplasias e hemoparasitoses. A transfusão sanguínea é um grande aliado no tratamento de inúmeras patologias veterinárias. A alta demanda por esse serviço e a dificuldade de encontrar bolsas de sangue com rapidez, qualidade e segurança, foi o principal objetivo para que esse projeto iniciasse”, alerta.

Marina explica como o banco armazena o sangue coletado. “Após as coletas da bolsa de sangue total, é realizado a selagem do material e armazenado em câmera refrigerada com controle de temperatura. Possuímos um controle de qualidade rigoroso, afim de garantir a viabilidade do sangue estocado. Conseguimos armazenar um hemocomponente em perfeitas condições, por em média 30 dias”, frisa. As duas veterinárias se sentem gratas com o trabalho. “Acabamos contribuindo no tratamento de muitos cães e gatos e recebemos muitas mensagens de agradecimentos. Principalmente sobre a agilidade no serviço, que em um momento tão delicado, pode fazer a diferença”, reitera.

Para cadastrar pets no banco de sangue é só entrar em contato pelo número 54 999464581. “O BSG tem abrangência em toda Serra Gaúcha”, salientam as veterinárias.

Vidas salvas

O gato Falcão, de Rodrigo de Toni, é mais do que apenas um animal de estimação, faz parte da família. Por isso, quando ele começou a apresentar manchas amarelas pelo corpo, o casal tutor correu para uma clínica veterinária. “Em um sábado de manhã vi que ele estava meio amarelado e achei que fosse alguma sujeira, porque era nas orelhas. Quando minha mulher chegou em casa, no final do dia, ele estava com a barriga toda amarela, além do céu da boca, lábio e patas. Nós corremos para a clínica veterinária com ele e internamos. No dia seguinte, quando a gente foi visitar ele, veio uma bomba para nós, que ele estava começando a entrar num estágio de falência de órgãos, sendo sugerida a transfusão de sangue”, afirma.

Ele detalha o processo em busca de uma doação de sangue, que mobilizou uma equipe veterinária e um complexo processo de transfusão de sangue. “Nós pensávamos que o banco de sangue ia ter muitas bolsas disponíveis, mas nos disseram que só tinha um recipiente de sangue na Serra inteira, que estava em Caxias do Sul. Nos deslocamos até lá, porém a partir do momento que se leva no BSG, tem que esperar um outro exame, que é o de compatibilidade. Fizemos todos os testes, ficamos quase cinco horas fora de casa, mas conseguimos pegar a bolsa e trouxemos de volta para que a clínica realizasse a transfusão. Ele ficou no soro, mas depois se recuperou”, relata.

O gato Falcão resistiu graças a uma bolsa de sangue disponível no BSG

Menos de um mês depois, Falcão estava praticamente recuperado. O custo da recuperação, no entanto, foi alto: cerca de R$ 4,5 mil, incluindo a única bolsa de sangue disponível, que custou R$ 2 mil.

Hoje, Falcão está saudável e cheio de energia. A experiência, embora traumática, trouxe uma lição valiosa para Rodrigo e sua esposa sobre a importância de se preparar para imprevistos. “Foi muito tenso, mas faria tudo de novo para vê-lo bem. Ele é parte da nossa família”, afirma De Toni.

A pinscher de Camila Gularte também foi salva graças a ação de veterinários e pelo estoque de sangue disponível. “Ela sofreu um ataque de um cão maior, onde teve lesões internas e uma hemorragia, precisando passar por uma cirurgia e pela perda de sangue, de uma transfusão. Isso aconteceu em setembro, hoje, ela está fazendo acompanhamento e está quase 100%”, conta.

Camila Gularte fez de tudo para que sua pinscher sobrevivesse

Ela relata como foram os passos que tomou naquele momento. “Fiquei bem assustada e apreensiva, não fazia ideia de onde íamos conseguir uma bolsa de sangue, mas a clínica que a operou passou o contato do banco de Caxias do Sul. Eles foram extremamente atenciosos, possuíam uma doação compatível com o sangue dela e no mesmo dia entregaram aqui em Bento Gonçalves, na clínica. Foram usadas 40ml”, lembra.

A veterinária Janice Thiessen, da Feliclínica, aponta que a indicação é de que sejam coletados no máximo 70 ml de sangue em gatos e 450 ml em cães, sendo proporcional ao peso.

Complicações

Alguns casos de transfusão, infelizmente, não foram bem sucedidos. Como é o caso do gato Batman, da tutora Bruna Zauza, que também é médica veterinária. O exame do animal deu positivo para FeLV, sendo feita uma transfusão. “Como demorei em torno de três dias para conseguir a bolsa de sangue, o estado de saúde dele havia piorado consideravelmente, não tendo tempo hábil para fazer a compatibilidade e tipagem sanguínea como deveria ter sido feito. Ele veio a óbito 48h pós transfusão de sangue”, recorda.

Batman não resistiu a transfusão

Diferenças entre cães e gatos

Janice complementa que a maior parte das transfusões em gatos está realmente relacionada à FeLV ou outras doenças medulares, que exigem transfusões frequentes para prolongar a vida. “Não existe antiviral que mate este vírus, precisando de transfusões recorrentes. Normalmente, quando a gente tem um animal que precisa de doação, a gente tem a possibilidade de comprar a bolsa de sangue pronta, que é bem difícil conseguir. Como o volume de sangue necessário é muito grande para gatos, normalmente, na maioria das vezes que eu precisei, eu não consegui bolsa pronta. Acabo entrando em contato com clientes que tem doadores saudáveis e também fazemos campanhas para conseguir mais doadores”, afirma.

Segundo a especialista, quando cães precisam de transfusão é mais tranquilo, pois eles normalmente desenvolvem doenças com certo tempo de duração, sendo necessário apenas uma transfusão.

O Faísca, gato de Mônica Rachele, faleceu após quatro transfusões de sangue. “Em julho deste ano, ele começou a ficar fraquinho de uma hora para outra, deixou de comer e só ficava deitado, não brincava mais. O diagnóstico foi o pior possível: FeLV. Ele faleceu no dia 17 de novembro. Mesmo com a medicação e com quatro transfusões de sangue, não aguentou a força da doença”, relembra.

Faísca (e) não resistiu às complicações da FeLV. Fred (d) também é portador da doença, porém não manifestou os sintomas

Ela compartilha o sentimento da perda. “Não queríamos acreditar que um bichinho tão lindo e saudável, criado com carinho, cuidados, alimentação de qualidade, dentro de casa, pudesse ter algo tão cruel. Mas infelizmente passamos por isso. Agora, temos que cuidar do Fred, mesmo sabendo que ele tem a mesma doença, vamos rezar para que não manifeste, o que pode ocorrer. Porém, se manifestar, já sabemos que as coisas não são fáceis e que, atualmente, não há um tratamento eficaz e muito menos cura para essa doença terrível”, finaliza.