A morte ficou patética

As cerimônias fúnebres tem lá, me desculpem, seus encantamentos. Sou do tempo em que tudo começava pelo tocar do sino, passava pelo barulho noturno da confecção do caixão pelo Busnello, vinha o velório e missa de corpo presente, e a procissão mortuária com o carro fúnebre na frente dirigido pelo Seu Rigon, o padre e o cortejo da Igreja Matriz Santo Antônio em direção ao Cemitério Público Municipal. As condolências limitavam-se à perda do ente querido. Mas, nos tempos modernos, lamenta-se a morte, não só pela perda, mas também pelo legado deixado pelos que se foram.

O enterro ideal

Na minha visão, o enterro ideal: uma sala da família para receber os sentimentos de pesar pela perda; a sala de despedidas, onde estaria o finado com uma projeção de suas músicas preferidas, dos vídeos marcantes da vida e de suas realizações; uma sala de espera onde estariam as fotos mais representativas de momentos vividos; uma sala de coquetel (bebidas e comidinhas) em que seriam revividos momentos com quem se foi. E no cortejo fúnebre, uma banda de música (lembram do filme O PODEROSO CHEFÃO Parte I) – a banda tocando pelas ruas “pá pá papa pá papa papa papa”? Antes da despedida final, no cemitério, a leitura do ‘curriculum vitae’ do falecido, a bênção do Padre e a retirada dos presentes antes do sepultamento, estilo americano, o que significaria, para mim, “ele não foi enterrado, permanecerá entre nós”, coisa minha. Ah, o epitáfio, tem que ter o epitáfio. “Fiz o que pude, desculpe” – “Estejam em paz e com Deus, não lamentem” – “Tenham fé, esperança e amor”. – “Desculpem pelos erros cometidos”. Se eu pudesse escrever o meu, lá estaria: “Cuidado, eu posso voltar”. Se a comunidade não estivesse em paz; se a família estivesse brigando pelos meus “badulaques”; se os “testardos” não sentassem à mesa para se entenderam; se os ladrões estivessem por aí; coisas assim, eu voltaria para puxar os lençóis.

Sentimentos

Ao participar das despedidas de Carlos Dreher Filho, Moysés Michelon, Édalo Michelon, Milton Rosa, Darcy Pozza, José Eugênio Farina, estou citando alguns, perdoem os omitidos, confesso que imaginei uma despedida inovadora, fruto da importância do legado deixado na construção de nossa economia, de nosso desenvolvimento social, da construção humana, exemplos a serem seguidos e sempre exaltados, assim como se exaltou a partida de Getúlio Vargas, Tancredo, Airton Senna, a Princesa Diana, não porque eram famosos mas, porque em sua obra de vida, deixaram exemplos e profundos significados.

Lahude

Rubens Lahude era dentista em Santa Tereza, sua terra natal, quase uma unanimidade por lá. Suas relações sociais estendiam-se por toda a Bento através do seu grande círculo de amigos. Elegeu-se Vereador, foi Presidente do Legislativo e ocupou o cargo de Prefeito por quase um ano, somados os períodos que sucedeu ao Prefeito Sady Fialho, em suas ausências. Já havia então se transferido para a cidade e assumido plena condição de líder comunitário, a par do exercício de sua profissão como dentista. Gostava de conversar sobre política, sorria com os olhos, era cordial e tinha um senso de equilíbrio como poucos. Tinha uma candidatura para Prefeito com chances de vencer, mas a hierarquia política partidária o colocou na condição de candidato a Vice de Milton Rosa, que havia sido eleito Prefeito por duas vezes e estava há muitos anos em Porto Alegre, depois de ter sido um dos melhores Prefeitos que Bento já teve. Confrontou-se a juventude de Darcy Pozza com a experiência de vida e legado de realizações de Milton, ganhou a juventude de Darcy, era época de renovação. Quando assumia a Prefeitura, Lahude fazia, em trinta dias, o que o Prefeito fazia em seis meses. Como Secretário de Governo me fazia trabalhar dia, noite e madrugada, queria as coisas ‘pra ontem’. Tinha por norte fazer “o que tinha que ser feito não o que se quer fazer”, atendia com simplicidade os anseios populares, foi um exemplo de ser humano, um amigo que me transmitiu muitas diretrizes de conduta, além de ter sido meu dentista. Sua passagem pela política deixou “marcas do que se foi” e seus amigos certamente estão a pranteá-lo. Estou pesaroso.

Loreno

Loreno José Dal Sasso, marcou minha vida como professor, líder e amigo. A única coisa que eu não gostava dele é que além de ser um gremista extremado, ainda era estatístico, antes das aulas ele projetava a vitória do Grêmio nos jogos e não me lembro dele ter errado uma só vez. Loreno era o símbolo do dinamismo, diria-se até, com todo o respeito, que era “um pentelho”, sempre em torno das boas causas. A FERVI foi construção fundamentalmente sua, aquele patrimônio imobiliário era de uma sociedade de pessoas, brigaram e não se conversavam mais. Loreno convenceu-os a doarem o imóvel para uma sociedade educacional comunitária. Naquela história de “se fulano concordar eu também concordo”, Loreno conseguiu a procuração de todos eles. E assim se fez a FERVI, posso estar errando em algum detalhe ou omitindo a importância, no processo, de outras pessoas, mas destaco, diante da despedida, a importância e liderança de Loreno. Eu era Secretário de Governo do Município e Loreno reivindicava, junto ao Prefeito, que fosse desapropriada uma área de terras, tenho lembrança de 8 hectares, para adjudicá-la à FERVI. Ele “pentelhou”, “pentelhou” o Prefeito, até que conseguiu. A partir do ok do Prefeito ele não me deixou em paz, subiu aquela escada da Prefeitura todos os dias exigindo do Secretário de Governo, que era eu, a equação imediata da doação. Confesso que, às vezes, me escondia dele, porque os trâmites da desapropriação não eram tão fáceis dentro da Prefeitura. Tudo pronto, era preciso depositar o valor em juízo com a prefeitura depositando o valor para ser emitida na posse e posteriormente doar a terra à FERVI. E quem disse que eu conseguia do Tesoureiro da Prefeitura o dinheiro? Para me ver ‘livre’ do Loreno, tirei o dinheiro do meu salário e disse “Loreno amigo, é a única forma de resolver, eu pago e depois tu me devolve o dinheiro, se tu ficar esperando pelo dinheiro da Prefeitura, espera sentado” e apontei para um sofá confortável que tinha na antessala de meu gabinete. E assim se fez. Era impossível não admirar a capacidade e não ser grato aos ensinamentos assim como resistir à volúpia comunitária de Loreno, muito fiel àquele ditado que diz “se queres alguém que faça, procura alguém que não tem tempo”. Não conheço liderança que não tenha “quiprocó”, Loreno tinha, Lahude tinha, todos têm, “eu tenho, tu tens, ele tem, nós temos, vós tendes, eles têm”. E daí? Daí que temos que pegar as coisas sempre pelo lado bom. Daí que eu prefiro um líder que faça errando do que alguém que não faça nada ou, menos do que pode, pela comunidade.

Despedida patética

Fico pesaroso pela morte de nossos líderes, mais pesaroso ainda quando a vida lhes impõe sofrimento antes da partida. Mas, mais pesaroso do que o mais pesaroso ainda, quando a despedida se torna patética como essas que o vírus está nos impondo. Morre, “envelopa”, como dizem, e enterra. Não aceito, deploro, denuncio meu inconformismo perante os homens que globalizaram as relações, no entanto, não globalizaram a necessária grandeza no combater a fome, a miséria e a proliferação do vírus.