Vida Vivida – Capítulo II
Então, como eu já contei, nasci e vivi na casa dos meus avós Henrique e Irene, até os 8 anos. Um dia meu pai bradou: “vamos fazer a mudança para a casa nova”! Eu lá sabia de casa nova, tava noutro canal. Um sentimento de tristeza tomou conta de mim, lembro de que “pegamos todas nossas trouxas… um pouco mais do que os imigrantes carregavam no navio”. E o meu colchão de penas de ganso no meu quarto com balcão? E as minhas pescarias? E os meus passeios a beira do rio em direção ao dadivoso pé de cerejeiras? E os bolos, biscoitos, café na mastela de minha avó? E os meus amigos de viera, carrinho de lomba? E as uvas do parreiral do meu avô? E o vin del tchodo que eu dava uma roubadinha? Tudo isso ficou para trás como num passe de mágica. Acabara a submissão do seu Almir e de Da. Zulma ao regime do meu avô “andiamo fare lá vita” deve ter pensado meu pai, certamente pressionado, no calor da noite, pela minha mãe. A nova casa era simples, 4 paredes, telhado, umas divisórias, atrás dela uma vertente de água, represada num criativo tanque de lavar roupa e, no entorno, uma grande área de terra com pomar e área de plantio. Achei tudo interessante, mas era como ter ido para o deserto. Meu pai havia saído da profissão de auxiliar de alfaiate (meu avô) e minha mãe era costureira auxiliar. Como sobreviver? Acho que o lema do meu pai era “família unida sofre unida, trabalha unida, ganha unida”, “elora zo scarpon”. Eu tinha que estudar na cidade, no Colégio Marista, “the best”. E, cuidar da “colônia” tipo o Paese. Mas que mudança cultural! Não tinha galinha, não tinha patos, vacas, cachorro, cavalo, compensando tudo isso meu pai me deu uma enxada, um ancinho, um picão, minha mãe me deu uma olhada significativa tipo “vai que é tua Taffarel”. Ela me matriculou no Colégio Marista, comprou um uniforme que era parecido com aqueles volantes de polícia que mataram o lampião. As mangas eram curtas, faltava 5 cm para alcançar o dedão da mão, o cinturão era caído, o couro não dava mais pro couro e era todo esgaçado. Eu tinha vergonha, os “riquinhos” vinham com aqueles uniformes engomadinhos, novinhos, e eu, que me chamavam de “Riquinho”, bem, deixa prá lá, meu astral melhorava quando eu me lembrava da vara de marmelo, uma “instituição” na casa nova. Meu pai decretou, “vai para o Colégio de carona, ataca os caminhões e carros na beira da estrada se ninguém parar então vai com os Nichetti da linha Bento – Pinto Bandeira”. Nova vergonha, eu parecia o Mr. Been na beira da estrada. Os caminhões que paravam (o acesso a Bento era pelo Barracão) chegavam a Bento “no dia seguinte”. Veio nova ordem do Seu Almir: “acorda duas horas mais cedo, alguém vai parar”! Mais uma vez não deu certo. O gasto com o ônibus era caro “comprometia o orçamento da família”. Minha mãe, outrora submissa, virara protagonista. “Quem sabe ele vai morar com a Nona, lá na cidade”? A Nona morava lá pelos lados da Todeschini, calculei a quilometragem: 15 km, ida e volta. Pensei, tudo bem eu já levava o saco de trigo e milho nas costas do Barracãocity a San Piero, para fazer farinha no Moinho do Mário Bertarello, já tô acostumado. E vou ter um bônus, não vou precisar passar a vergonha de pedir carona e nem gastar dinheiro do meu pai com os Nichetti. E mais, a comida da minha avó era “de graça”. Bora então morar na casa de minha avó Dileta e estudar no Marista.
Tinha uma taipa
Eu, com aquela bici “zero bala” pensei: o que eu faço agora? Dava banho nela e lustrava três vezes por dia até que, de repente, Jesus olhou para este feliz mancebo e disse: “levanta os olhos, olha para frente”. Foi o que fiz e lá estava o “potrero” do vizinho e “mezzo riva in zo”, como “o diabo gosta” diria meu avô. Fui. Pedalei, pedalei seguindo a diretriz do meu pai, quanto mais tu pedala, mais tu fica em cima dela. Com aquilo na cabeça pedalei, pedalei e lá no final do potrero não tinha “uma pedra no meio do caminho” tinha “uma taipa no meio do caminho”. Como a ordem unida era pedalar, pedalei e não freei, partiu o Riquinho para o outro lado da taipa, cai sentado, a bunda ficou distendida mas, sobrevivi. Minha bici ficou do outro lado, só sobrou o farol, o que sobrou dela carreguei “com o dedo mindinho da minha mão direita”. Escondi o “entulho” por três dias. Minha mãe “bzbzbz” no ouvido do meu pai. Veio a voz do pátrio poder: “onde está a bici? No meu quarto respondi. Deixa ver! Mostrei, olhei para a britola, fiquei esperando, surpreendentemente ele disse: “pelo menos tu tentou”. Trabalhei para aprender. Quinze dias depois ganhei uma nova bicicleta. Mas aí o que foi que eu fiz? Olhava lá na entrada do Country não vinha ninguém, eu subia e pedalava em direção a ponte ao lado do Posto, sabendo que depois dela, vinha a subida, o que faria a bici parar. E foi assim que eu aprendi. Uma semana depois eu estava visitando minha avó de bici. Com 6 anos eu fui duas vezes a São Paulo com motoristas de meu pai e uma vez ao Rio com meu tio Ladyr. Em São Paulo, no Hotel Avis, na recepção, assisti a primeira transmissão de televisão no Brasil. Na viagem ao Rio, estava na cabine do caminhão esperando a descarga de vinho. Fazia muito calor, como demorava, subi na carroceria para ajudar. Depois, na volta para a cabine, ao querer tomar um atalho, guri besta, minha calça curta ficou presa num gancho e rasgou de cima a baixo. De vergonha, e com a mão na bunda escondendo o baita rasgo, não me mexi mais, era três horas da tarde, chegamos no hotel 9 da noite. Eu só tinha aquela calça. No dia seguinte meu tio foi me comprar uma calça nova e a minha vida “voltou ao normal”, saí da reclusão. No próximo capítulo vou contar a minha vida com a Vó Dileta e o Colégio Marista. Comece a chorar.
Enquanto isso
Meu pai elaborara um “manual de sobrevivência”. Quando eu ainda estava lá, ele fez um pouco de tudo. Como minhas “atividades agrícolas” não evoluíram ele colocou um mini armazém e me colocou a cuidar dele. Então meu regime era assim: de manhã estudo no Marista, de tarde cuidar da venda, no sábado cuidar da roça, no domingo missa do lado de fora da Igreja e assistir futebol. Meu emprego de supermercadista durou rigorosamente 20 dias. Acontece que para cada paçoquinha vendida eu comia três e para cada quilo de açúcar vendido a granel eu comia dez torrões. Razão da demissão: “el me manha fora tuto el lucro”. Tinha um fator agravante nisso tudo. Se eu fosse um índio meu codinome não seria “Pocahonta”, nem “Touro Sentado”, nem “Gerônimo”, nem “Nuvem Vermelha” seria “POCAVOIA”. Então o “POCAVOIA” estava sempre por ai , rondando a periferia, de briga com a enxada, de olho no armazém, atenção redobrada com a britola (canivete grande com lâmina curva) porque a qualquer momento ela poderia ser acionada e comandada com a seguinte ordem de serviço: “uma vara” ou “uma vara de vime” ou “uma vara de marmelo”. Vejam que eu tinha que ir buscar meu próprio instrumento de tortura. Quando era uma vara eu saia cantando “moreninha linda, do meu bem querer…”, quando era uma vara de vime eu ia sério e reflexivo. E, quando era uma vara de marmelo eu já saia chorando. Porque, sendo “uma vara” eu escolhia uma qualquer, quebrava logo, “uma vara de vime” só quebrava depois de 5 minutos e, “uma vara de marmelo”? Não quebra nunca. E, meu pai, só parava de bater quando a vara quebrava. Porque eu apanhava? Acho porque eu era um “POCAVOIA”, pouca vontade, não ajudava muito. Meu pai se virava e minha mãe também, era preciso sobreviver. Meu pai foi vendedor de Rádios (telefunken, motorádio), vendedor de automóvel, alfaiate, teve moto importada, teve uma perua Dodge importada, teve três caminhões, tudo isso em “BarracãoCity”. Eu olhava tudo aquilo e torcia por ele. Ao mesmo tempo em que ele me exigia vocação para o trabalho e dedicação ao estudo ele me gratificava: o melhor dentista; o melhor médico; o melhor colégio; e me deu uma bicicleta com farol, top na época, e sentenciou: “aprender a andar é contigo”.