O cirurgião plástico Júlio Hochberg, radicado nos EUA retorna à Serra Gaúcha e vive imersão artística ao lado do escultor bento-gonçalvense
Aos 80 anos, o médico e escultor Júlio Hochberg desembarca em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, com dois propósitos: realizar uma cirurgia na mão e viver dias intensos de produção artística. Natural do bairro Azenha, em Porto Alegre, e residente há décadas nos Estados Unidos, o cirurgião plástico aposentado aproveita sua estadia para reencontrar antigos alunos, revisitar amigos e, principalmente, mergulhar no mundo da escultura ao lado do artista bento-gonçalvense Mauri Menegotto.
A visita a Bento não é ocasional. Hochberg já havia passado pela cidade há dois anos para se submeter a uma cirurgia semelhante e, desde então, mantém laços afetivos e artísticos com a região. “Aqui tem os melhores caras”, afirma, referindo-se aos médicos e ex-alunos dos tempos em que atuava na Santa Casa de Porto Alegre. A amizade com os profissionais, o acolhimento das famílias e as conexões artísticas fizeram de Bento um destino natural para sua retomada cirúrgica, e criativa.

Uma vida entre a medicina e a arte
Formado pela terceira turma da Faculdade Católica de Porto Alegre, em 1968, Júlio decidiu, ainda jovem, buscar formação nos Estados Unidos. “No dia em que recebi o resultado da prova, que foi ótimo, fui direto comprar as alianças e noivei”, relembra. Com 24 anos, mudou-se para o exterior para dar início a uma trajetória sólida na medicina: especializou-se em cirurgia plástica pediátrica, foi professor nas universidades de West Virginia e Arkansas e trabalhou intensamente na formação de novos médicos.
Mas mesmo enquanto se dedicava à ciência, nunca abandonou a arte. “Comecei a esculpir aos seis anos, com facas japonesas do meu pai. Depois, um vizinho que fazia lápides de mármore me ensinou a trabalhar com o material. Eu devia ter uns dez anos”, conta. A escultura foi paixão constante, e se intensificou quando, ainda estudante de medicina, presenciou um professor reconstruindo uma orelha a partir de cartilagem do peito de uma criança. “Eu já fazia orelhas em madeira e pedra. Quando vi aquilo, pensei: ‘é isso que eu quero fazer’”, diz.
De fato, Hochberg se especializou em moldar o corpo humano com precisão e sensibilidade. Operava crianças com deformidades faciais e deformações de nascença. Segundo ele, há técnicas que permitem, por exemplo, moldar uma orelha perfeita em recém-nascidos usando apenas pressão e moldes, sem necessidade de cirurgia. “É escultura humana”, define.
Um artista de alma e mãos firmes

Mesmo em meio a uma carreira exigente, o médico seguiu esculpindo. Participou de exposições nos Estados Unidos, incluindo uma que ficou seis meses em um museu de Miami. Chegou a manter um estúdio com 67 artistas e produziu peças que exploram madeira e pedra, materiais que busca com atenção e carinho em todo o mundo. “Tenho ichiban do Japão, madeira usada para esculpir budas, que só pode ser trabalhada 30 anos após o corte da árvore, na religião deles. Tenho ébano que minha filha trouxe da África, jacarandá da Bahia, madeiras da Rússia, da Amazônia”, enumera.
A dedicação é tamanha que a arte invadiu até o seu consultório. “Pacientes levavam troncos de árvore pra mim. Um chegou com uma caixa cheia de pedras numa cadeira de rodas. Outro me trouxe um pedaço de árvore dentro de um saco de lixo”, conta, com bom humor. “Minha irmã veio de Ouro Preto com uma pedra-sabão gigante, reclamando do peso que carregou pelo aeroporto”, relata, divertido.
Essas histórias renderam esculturas que hoje compõem seu acervo pessoal. Uma delas, feita após dois anos de contemplação e oito meses de trabalho, representa um casal com as cabeças encostadas, feita com uma pedra deixada em sua garagem por um paciente entusiasmado.
A experiência com Mauri Menegotto

Durante esta visita a Bento, Júlio teve um encontro especial com o escultor Mauri Menegotto, referência na região. Os dois passaram dois dias lado a lado em um intenso processo criativo, focado no trabalho com basalto, uma pedra muito mais dura do que as que Hochberg costumava manipular, como a pedra-sabão. “Eu vim pra aprender. Nunca tinha trabalhado com basalto. O Mauri me deu o beabá: as lixas certas, os tipos de ferramentas, como secar, lavar, encerar, lustrar. É um monte de coisas”, destaca. O médico produziu quatro esculturas em apenas oito horas de trabalho, mostrando habilidade, precisão e fôlego.
Menegotto se impressionou com a energia do colega: “Ele não parava um minuto, com 80 anos. A concentração dele, a precisão, o domínio do dremel para assinar a obra… Foi uma experiência incrível. E para mim também foi gratificante poder compartilhar o que sei”, pontua.
O escultor bento-gonçalvense destaca a troca de saberes como um momento especial. “Nunca fui mestre ou professor, mas já orientei algumas pessoas. Ter alguém de outro país vindo aqui para aprender o que eu sei foi algo único”, declara.
Bento como destino de alma
Hochberg já sente-se parte da cidade. Conhece pessoas, restaurantes, fornecedores de madeira e couro, artistas e artesãos. “Cada vez que venho pra cá, tenho projetos. Trago um desenho, o Felipão em Monte Belo faz facas pra mim, vou na Samara comprar couro. Tenho meus restaurantes, já sou referência. Gente de Porto Alegre me liga pra pedir dica: ‘Júlio, o que eu faço em Bento?’”, explica.
Além da cirurgia agendada, Júlio vê essa estadia como uma oportunidade de crescimento e renovação pessoal. “O meu turismo é trabalhar. Vim fazer escultura pra quê? Para aprender”, aponta. E já planeja o retorno. “Fui convidado para ficar 15 dias aqui. Quero me dedicar mais à escultura, com calma”, diz.
Em meio à dureza do basalto, Hochberg encontra a leveza de sua vocação artística. E assim, entre memórias, ferramentas, amigos e pedras, Júlio Hochberg reafirma que a arte e a medicina não são caminhos opostos, mas expressões complementares de uma mesma paixão: transformar o mundo com as mãos.