Com mais de 420 milhões de visualizações da hashtag #chatgpttherapy, fenômeno global acende debate sobre limites e riscos do uso da IA para saúde mental
O uso de chatbots de inteligência artificial (IA), como o ChatGPT, para fins terapêuticos ganha cada vez mais destaque. Embora não existam dados oficiais sobre o número exato de pessoas que solicitam sessões de terapia diretamente ao ChatGPT, diversos estudos e levantamentos apontam uma tendência crescente nesse comportamento.
No Brasil, uma pesquisa realizada pela Talk Inc. revela que um em cada 10 brasileiros recorre a chats de IA para desabafar, buscar conselhos ou simplesmente conversar. Entre os principais motivos, destacam-se a introspecção, a escassez de amigos disponíveis e a solidão.
Nos Estados Unidos, um estudo com 2.000 adultos norte-americanos aponta que 18% já usaram o ChatGPT para falar sobre saúde mental, transformando a IA em um dos maiores prestadores informais de acolhimento psicológico do país. Globalmente, a hashtag #chatgpttherapy no TikTok ultrapassa 420 milhões de visualizações até março deste ano, evidenciando um interesse massivo no uso do ChatGPT com fins terapêuticos.
Motivações para o uso da IA em terapias

A popularização do uso de chatbots para suporte emocional se sustenta em algumas vantagens percebidas pelos usuários: a acessibilidade, já que estão disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana; o custo reduzido, sendo uma alternativa econômica em comparação com a terapia tradicional; a privacidade, com uma sensação de anonimato e ausência de julgamento; e o imediatismo, pois as respostas são rápidas e não exigem agendamento.
Especialistas apontam riscos e limites
Apesar da crescente adesão, especialistas alertam para os riscos associados ao uso da inteligência artificial com fins terapêuticos. A psicóloga especialista em luto e perdas, e mestre em Psicologia Clínica, Franciele Sassi, reconhece que “a inteligência artificial pode ser um recurso de apoio interessante, desde que seja utilizado como um suporte complementar e, ainda assim, com muitos filtros e cuidados, uma vez que quem deve ser o protagonista da história é o próprio sujeito”, avalia.
Ela observa que muitas pessoas recorrem ao ChatGPT para buscar conselhos sobre ‘como viver melhor’, ‘o que fazer para curar doenças mentais específicas’, ‘como portar-se diante de situações’, o que as tira definitivamente da responsabilidade de questionar e, sobretudo, da autonomia de poder construir uma vida com liberdade.
Segundo a especialista, há uma discrepância entre a velocidade da tecnologia e o ritmo necessário para os processos emocionais humanos. “Penso que a rapidez com que as coisas funcionam atualmente não tem acompanhado o nosso processo emocional. A tecnologia, construída pelo homem, avança rapidamente, enquanto alguns processos internos precisam de mais tempo para serem devidamente organizados”, analisa.
Para ela, esse cenário alimenta o “encantamento das formulações prontas que acabam, no fim das contas, nos isentando da responsabilidade de pensar. E um ser não-pensante é um ser que apresenta sintomas”, reflete.
Franciele destaca a necessidade de reflexão sobre por que as pessoas se sentem mais confortáveis em buscar a IA para falar sobre suas intimidades. “Precisamos compreender as causas, não unicamente os sintomas. Se isso vem acontecendo, minimamente devemos questionar sobre como os vínculos entre seres humanos estão se estabelecendo, de que forma as pessoas enfrentam desafios, dificuldades e frustrações, como reagem às diferenças”, propõe.

Ela reforça que a grande diferença entre um profissional humano e a IA está “no respeito à singularidade do sujeito, ademais da profundidade da análise. A IA elabora respostas generalizadas com base em formulações específicas de cada pergunta”, explica. E adverte: “Se mudamos o formato da mesma pergunta, outras respostas podem ser construídas, o que assegura que o indivíduo não precise pensar de forma profunda naquilo que o angustia e siga reproduzindo o seu sintoma em diferentes contextos e relações, justamente porque a resposta veio de fora e não de dentro”, alerta.
Além disso, Franciele alerta que a IA tem seus limites e, por ser um apanhado de informações da internet e de dados compartilhados de rede, pode fornecer informações que nem sempre fazem sentido para todos, que podem direcionar ou orientar de forma inadequada e podem até mesmo colocar pessoas em risco.
Ela compara o uso da IA aos riscos associados às redes sociais, sublinhando que deve ser utilizada com cautela: “Assim como não se deve aceitar coisas de estranhos, assim como a gente busca se resguardar em determinadas horas da noite ou evita determinados locais por segurança e proteção, a IA também deve ser utilizada com cautela, pois os riscos podem ser proporcionais aos benefícios que traz quando utilizada como complemento, não como fator principal”, compara.
Psicoterapia e a complexidade do ser humano
Franciele é enfática ao afirmar que “psicoterapia não é um processo fácil, pois envolve, muitas vezes, ter de olhar com persistência para aquilo que está ligado à dor, à angústia, ao vazio existencial, ao sentimento de impotência diante de tantas coisas que não estão sob o nosso controle”, ressalta. Segundo ela, parece mais fácil usar a IA: “Quanto mais respostas prontas as pessoas têm para as suas questões existenciais, menor a chance de precisarem entrar em contato consigo mesmas. Afinal, se eu não penso, logo, não me responsabilizo, não me frustro, não preciso reconhecer limites”, pondera.
A psicóloga ressalta que a psicoterapia deve ser “um ‘lar’, um espaço no qual a pessoa que frequenta possa se sentir à vontade para ser ela mesma, tendo clareza de que não será julgada pelas suas condutas. E completa: “Ter um espaço real e um ser igual com quem eu posso contar significa dar valor à minha história, pois não vou aceitar que respostas gerais direcionem os rumos que posso construir e escolher com propriedade”, afirma.
A psicóloga defende que a psicoterapia oferece um espaço de aliança, cuidado, amparo, suporte, escuta e importância, e com cada pessoa isso tudo é construído de um jeito personalizado, afirmando o valor da vida de quem compartilha questões tão íntimas e valiosas. Para ela, a IA não dá conta de construir pilares seguros capazes de sustentar a complexidade que é o ser humano, e isso é algo essencial de ser compartilhado na psicoterapia.
Sobre a realização de psicoterapia considerando recursos de IA, Franciele adota uma postura cautelosa: “Há diversas variáveis que precisam ser devidamente analisadas em termos de custos, ganhos, intercorrências e benefícios. Antes de qualquer intervenção direta, é preciso pensar com responsabilidade, e não reproduzir um sintoma social que é justamente o que a psicologia deve trabalhar para reduzir”, defende.
Por fim, ela sublinha: “Eu, particularmente, na psicoterapia, prezo pelo acolhimento do olhar, do abraço, de mostrar que me importo através do meu interesse por cada história que é narrada a partir do encontro com um ser que é capaz de surpreender”, enfatiza.
Considerações sobre regulamentação e privacidade
Além das questões emocionais, existem preocupações sobre a ausência de regulamentação específica para o uso de IAs na psicoterapia, especialmente no Brasil. Isso levanta questões éticas e de responsabilidade. A privacidade dos dados é outro ponto sensível, pois ainda não se sabe com clareza como as informações compartilhadas com chatbots são armazenadas e utilizadas.
Especialistas apontam que o uso desenfreado da IA, sem o devido discernimento, pode apresentar riscos consideráveis, especialmente quando se trata de saúde mental.
Caminhos futuros
O avanço da tecnologia e a popularização de ferramentas como o ChatGPT colocam a sociedade diante de um debate urgente sobre os limites e as possibilidades do uso da inteligência artificial na saúde mental. Enquanto parte do público encontra nesses sistemas uma forma de acolhimento e suporte, profissionais da psicologia defendem a importância da escuta humana, da empatia genuína e do respeito à singularidade de cada indivíduo.
A reflexão sobre esses limites se faz cada vez mais necessária diante de um cenário em que, conforme aponta Franciele Sassi, “não podemos nos perder em meio a tantos estímulos externos”, e que a tecnologia, quando utilizada com consciência, pode ser um recurso de apoio, mas jamais um substituto para a complexidade das relações humanas.