Dados do Censo, do IBGE, realizado em 2022, mostram que 49,1% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Em Bento Gonçalves, a porcentagem é de 44,2%
Em 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou a divulgação do Censo Demográfico, um estudo abrangente que coleta dados essenciais para entender a realidade socioeconômica do Brasil. A pesquisa, realizada a cada dez anos, é a maior análise estatística do país e serve para reunir informações sobre a população, as características dos lares e as condições de vida dos brasileiros. Estes dados permitem que governos e instituições planejem políticas públicas e ações sociais, além de orientar investimentos e melhorias nos serviços públicos.
Uma das descobertas importantes do Censo de 2022, foi o aumento no número de lares chefiados por mulheres, indicando uma transformação significativa na estrutura familiar e na dinâmica econômica dos lares brasileiros. Este levantamento traz à tona questões relevantes sobre as mudanças nos papéis de gênero, além de reforçar a importância de entender quem são essas mulheres e quais os desafios que elas enfrentam na sociedade atual.
No cenário nacional, em 2022, 2.522.372 residências, 49,1%, tinham mulheres como responsáveis. A proporção representa uma mudança importante em relação ao Censo de 2010, quando o percentual de homens responsáveis (61,3%) era substancialmente maior do que o percentual de mulheres (38,7%). Por unidade doméstica entende-se o conjunto de pessoas que vivem em um domicílio particular.
A nível estadual, o número também aumentou significativamente. Em 2010, a porcentagem de lares chefiados por mulheres no Rio Grande do Sul, era de 39,8%. Em 2022, o número subiu para 48,6%.
Em Bento Gonçalves, os dados do censo trazem números que chamam a atenção. Estes são semelhantes à média nacional: 44,2% dos domicílios têm como principal responsável uma mulher. Destes, cerca de 11% possuem como chefe uma mãe solteira.
Além disso, 78,5% dos domicílios são habitados por mais de um morador. 61.55%, são compartilhados por casais de sexos distintos, 0.42% por casais do mesmo sexo e 38.04% possuem como moradores pessoas solteiras. 67% das residências, são compostas por um núcleo familiar, enquanto 21.15%, são unipessoais.
O estado com o maior percentual é Pernambuco, onde 53.9% das casas têm como chefe uma pessoa do gênero feminino. Além deste, outros 10 estados também possuem uma taxa acima dos 50%. Dados que indicam que em 40.7% das unidades federativas brasileiras, a maioria das residências possuem uma mulher como responsável principal.
Em relação à realização de afazeres domésticos, o IBGE indica que as mulheres dedicam 9,6 horas a mais que os homens por semana. A diferença entre homens e mulheres é maior entre as mulheres pretas (92,7%) e pardas (91.9%), que realizam mais afazeres domésticos do que os homens da mesma raça / cor (80,6% e 78,0%, respectivamente).
Fatores que contribuem para este aumento
O sociólogo e consultor político Renato Zanella, destaca que o desequilíbrio no tempo que mulheres e homens dedicam às tarefas domésticas é fruto de fatores estruturais profundos e enraizados, que se interligam para perpetuar a desigualdade. “O trabalho doméstico é frequentemente desvalorizado e invisibilizado, não sendo reconhecido como uma contribuição econômica significativa. Esta falta de reconhecimento reforça a ideia de que as tarefas domésticas são uma responsabilidade secundária, muitas vezes atribuída às mulheres”, afirma.
Zanella analisa os motivos que levaram a este salto entre 2010 e 2022, no número de mulheres chefes de lar. “Nos últimos anos, o Brasil passou por importantes transformações econômicas e sociais que impactaram diretamente a estrutura familiar. A inserção crescente das mulheres no mercado de trabalho, impulsionada pela busca por independência financeira e pela necessidade de complementar a renda familiar, contribuiu para que muitas assumissem o papel de chefes de família”, pondera.
Para o consultor político, as estruturas familiares possuem um papel significativo neste processo. “A diversidade estrutural também contribui para o aumento de domicílios chefiados por mulheres. O crescimento de famílias monoparentais, muitas vezes lideradas por mães solteiras, é um reflexo das mudanças nas dinâmicas familiares e das novas formas de organização social. Além disso, a aceitação crescente de diferentes arranjos familiares, como casais do mesmo sexo e famílias reconstituídas, também desempenha um papel importante”, comenta.
O sociólogo também destaca a ascensão de movimentos feministas nesta transformação. “A mudança nos papéis de gênero é outro fator crucial. A sociedade brasileira, embora ainda marcada por desigualdades de gênero, tem testemunhado uma gradual desconstrução de estereótipos tradicionais. As mulheres estão cada vez mais desafiando as normas patriarcais, assumindo posições de liderança não apenas no âmbito doméstico, mas também em esferas públicas e profissionais”, pontua.
Ele explica que as normas culturais e sociais associam as mulheres ao cuidado da casa, uma expectativa que resiste mesmo com as transformações sociais e reforça a percepção de que as tarefas domésticas são “naturalmente” femininas. Além disso, a desigualdade de gênero no mercado de trabalho também contribui, pois mulheres frequentemente ocupam empregos de meio período ou recebem menores salários, justificando que assumam mais tarefas domésticas. “A ausência de políticas de apoio, como licenças parentais iguais e flexibilidade, também reforça essa divisão”, afirma Zanella.
O lado psicológico
A psicóloga Daniele Walczak, detalha como a carga horária excessiva de trabalho doméstico pode prejudicar mentalmente as mulheres. “Essa sobrecarga de tarefas impacta profundamente a saúde mental, aumentando os níveis de estresse, sentimentos de tristeza e frustração, da irritabilidade (tanto na que é expressa, ou não, para os outros), quanto no nível de cansaço – físico e mental, aparecendo de diversas formas, tanto na forma de perda de memória quanto em dificuldades com o sono. Se incluirmos nesta conta os cuidados com filhos, sabemos que o cansaço tende a aumentar, junto com as repercussões emocionais”, afirma.
Reflexo em Bento Gonçalves
A crescente participação de mulheres como chefes de família no Brasil, realidade em quase metade dos lares, reflete também em Bento Gonçalves, onde histórias de luta e superação tornam-se exemplos de força e resiliência. Gentília Gonzatti, de 62 anos, compartilha sua experiência ao se tornar chefe da família após a perda do marido, momento em que assumiu responsabilidades sobre sua casa e propriedade. “Me tornei chefe quando fiquei viúva com dois filhos adolescentes para criar. Ali vi que era preciso tomar a frente de tudo”, relembra Gentília. Ela destaca: “quem estava mais à frente antes era o marido”, mas que, ao perder o companheiro, precisou assumir todas as responsabilidades. “Eu tive que cuidar das parreiras, cuidar da casa, cuidar de dois filhos adolescentes, uma menina com 16 anos e um menino com 13”, conta, reforçando o peso que recaiu sobre seus ombros.
Gentília relata que, com a nova rotina, precisou “colocar as mãos e a cabeça no lugar para trabalhar”, contratando funcionários e mantendo o sustento da família. “A responsabilidade caiu toda para mim”, diz ela, destacando como a experiência transformou profundamente sua vida. Hoje, Gentília expressa orgulho e felicidade pela jornada e por ter criado dois filhos bem-sucedidos. “Sou feliz por ter conseguido dar a volta por tudo isso, passar por cima de todos estes desafios e me tornar o que me tornei”, reflete, com a satisfação de quem superou os obstáculos e alcançou seus objetivos.
O que o cenário nos diz
Zanella propõe uma reflexão sobre os impactos culturais e sociais da chefia feminina nos domicílios. Segundo ele, a presença crescente de mulheres como principais responsáveis pela família desafia normas tradicionais. “Esse fenômeno gera uma maior valorização do papel das mulheres na sociedade e fomenta uma discussão necessária sobre igualdade de gênero”, afirma. No entanto, ele alerta que essa transformação também pode gerar tensões em contextos onde as normas patriarcais permanecem fortes. Para o sociólogo, este cenário simboliza mudanças culturais profundas, ao mesmo tempo que reflete avanços e desafios contínuos na luta pela igualdade de gênero.
Ele debate a urgência de políticas públicas voltadas ao reconhecimento e apoio do trabalho não remunerado, destacando que a ausência dessas políticas aprofunda desigualdades socioeconômicas já arraigadas em nossa sociedade. Ele aponta que “medidas como a criação de creches acessíveis e a implementação de uma licença parental equilibrada entre gêneros são passos importantes para aliviar a carga do trabalho doméstico, proporcionando uma divisão mais justa das responsabilidades dentro das famílias.”
O sociólogo alerta que a carga excessiva do trabalho não remunerado não só drena o tempo e a energia de quem o realiza, mas também afeta diretamente a saúde física e mental dessas pessoas. “Esse acúmulo de responsabilidades gera impactos diretos na saúde, elevando os custos com cuidados e diminuindo a qualidade de vida. Ao final, o impacto recai sobre o sistema de saúde pública e aprofunda ainda mais as desigualdades sociais.”
Para Zanella, a solução passa por repensar as normas culturais e incluir políticas públicas que deem valor ao trabalho doméstico e de cuidado, tradicionalmente não remunerado, mas essencial para o bem-estar da sociedade. “Se queremos combater verdadeiramente a desigualdade, precisamos reconhecer e valorizar esse trabalho como parte integrante da economia, promovendo apoio e reconhecimento na forma de políticas públicas inclusivas,” conclui.
Imagem da capa: Nathielly Paz