Agora é sábado à noite, 20h. Chove (pra nossa tristeza) em Bento Gonçalves. Eu estou com meu filho no colo dormindo, no escuro, sentada na poltrona, olhando pela janela. Poucos carros, ninguém na rua. Eu o abraço forte.
Sempre me considerei uma pessoa de sorte. Bem-sucedida mesmo – e isso nada tem a ver com dinheiro. É incrível ver que, embora a tragédia assole nosso estado, eu sou uma pessoa grata. Eu estou exatamente onde sonhava quando criança.
Ser colo quente de mãe em meio ao temporal lá fora, me faz agradecer somente. Pela vida. Pela vida dele. Pela família. Pelo lar.
Quem está abrigado nesses dias, ajudando aos demais, mesmo seguro, também sofre com a situação do nosso Rio Grande. Sofre porque, diferente de setembro passado, os danos não são só materiais. Mesmo que fossem, pra quem perde, perde o sonho, a vida, restam apenas as memórias, já que nem as fotos se salvam mais. Sofre, porque é um estado inteiro em situação de calamidade pública. É a capital inundada. São as rodovias da Serra inutilizadas, são áreas verdes que se tornaram marrons, são pessoas mortas, outras desaparecidas, são animais lutando por sobrevivência, pessoas não sabendo por onde recomeçar. Se é que vão recomeçar. Se é que não vão, simplesmente, desistir.
Mesmo na segurança da minha casa, o momento é uma mistura de tristeza com gratidão. Quem não se sente assim? Chora ao ver o noticiário na TV; reza pedindo a Deus por misericórdia; lamenta, por tanta catástrofe; se revolta, por falta de políticas públicas ambientais que auxiliem nisso; ajuda, doa, faz sua parte e mais ainda?
Nunca clamamos tanto para cessar a chuva. Ela, que na medida certa, traz bênçãos! Ela, tão suplicada nos dias insuportáveis de verão. Até para a água, a medida entre o remédio e o veneno é a dose. Ultrapassou demais. Deu overdose. Quando estávamos tranquilos, pós-Covid, tentando nos reeguer. Sem há muito ouvir falar em leptospirose. Sem diferenciar ricos e pobres, devastando o estado inteiro.
Paro e reflito acerca de nossas ações humanas. É o aquecimento global, antes futuro, que se torna presente. É o desmatamento, o excesso de gases de efeito estufa, a poluição, as queimadas. É, de novo, o homem, contribuindo para o desequilíbrio ambiental. A revolta da mãe natureza.
Ela, que de todas as mães, é a mais sábia, porém também a mais brava, que cobra o dever não realizado. Os efeitos, nós já sabemos. Mais de 80 mil gaúchos em abrigos; mais de 500 mil desalojados; mais de 148 mortos e 300 desaparecidos; mais de 800 feridos. Muitas mães que passarão o seu dia longe dos filhos e vice-versa.
Tento parar de pensar, mas a chuva não nos dá trégua. Senhor, tende piedade!
Sentada, olhando a janela, eu rezo para a chuva parar e abraço forte meu filho. Até me perdi nas Ave-Marias. Eu sou uma pessoa realizada. Olhando pra dentro, carrinhos espalhados pela sala. Sem mais, isso é tudo na vida!