Imigrantes enfrentam muitas dificuldades, mas continuam buscando vida nova no município
Desde o grande terremoto sofrido pelo Haiti em 2010, Bento Gonçalves passou a acolher diversos haitianos. Além deles, venezuelanos e cubanos começaram a vir ao município por questões políticas, falta de empregos e miséria em seu país. Senegaleses, paraguaios, argentinos e guineanos completam a lista de estrangeiros que mais se mudam para a Capital Nacional do Vinho.
A história de Daphney Pierre, uma imigrante haitiana que reside em Bento Gonçalves há sete anos, reflete a complexa realidade vivida por muitos estrangeiros que buscam uma nova vida no Brasil. “Lá no Haiti não tem emprego e tem uma guerra civil, então vim para o Brasil para buscar uma vida melhor, poder trabalhar e ajudar a minha família”, conta.
Sua jornada, marcada por desafios linguísticos, culturais e econômicos, é um retrato da luta por inclusão e oportunidades em uma sociedade que, embora acolhedora em muitos aspectos, ainda apresenta obstáculos, como a própria Daphney conta. “Um dos maiores desafios que eu enfrentei no Brasil foi o idioma, pois eu não falava português. Era bem difícil para mim entender o que as pessoas falavam comigo. Tinha algumas pessoas que eu conseguia escutar e compreender, já que eu falo espanhol. Mas foi bem difícil para mim poder aprender, além de me adaptar com o inverno, porque cheguei aqui em abril de 2017, e estava muito frio, ainda passo muita dificuldade”, evidencia.
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Desafios da integração
A principal dificuldade enfrentada por Daphney, assim como por muitos outros imigrantes, foi a adaptação à nova cultura. A barreira linguística dificultou o acesso ao mercado de trabalho e a construção de relações sociais. “Eu não me adaptei à cultura daqui, porque cada país tem a sua. Eu nunca vou esquecer de minha cultura para me adaptar na dos outros, mas também eu respeito a cultura deles, eu acho que é maravilhosa, mas eu nunca me adaptei, simplesmente eu vivo dessa forma. Eu estou aqui no Brasil, tem coisas que eu mudo, porque lá no Haiti eu andava com roupa sem manga, não havia frio. E as comidas também, tive que me acostumar a comer a comida na empresa, mas na minha casa eu faço a haitiana”, revela.
No âmbito profissional, Daphney relatou ter sofrido discriminação e exploração, sendo obrigada a realizar tarefas além de suas funções e recebendo salários inferiores aos de seus colegas brasileiros. Essa experiência, infelizmente, não é isolada e revela a persistência do preconceito e da desigualdade no mercado de trabalho. “Eu enfrentei bastante dificuldade no trabalho. Quem é estrangeiro acaba tendo que trabalhar mais. Eu tinha que fazer os trabalhos dos outros enquanto eles estavam no banheiro, no celular, se escondendo e eu tinha que fazer o trabalho deles. Eu sofri bastante nos meus empregos, até que um dia cheguei e dei um basta, apesar de que não queria perder o trabalho”, comenta.
O sonho de uma vida melhor
Apesar das dificuldades, Daphney não se rende. Seu desejo de proporcionar uma vida melhor para sua família e de construir um futuro no Brasil a impulsiona a seguir em frente. A imigrante haitiana destaca a importância da educação e busca oportunidades para se qualificar profissionalmente, mesmo enfrentando obstáculos. “Eu estava quatro meses sem trabalho. Era minha amiga que morava nos Estados Unidos, que me ajudava a pagar minha casa. Eu sou auxiliar de enfermagem formada, tenho que fazer uma prova aqui no Brasil para valer a formação, mas esse dinheiro eu não tenho. Atualmente trabalho como recrutadora de modelos e auxiliar administrativa em uma agência”, pontua.
Ela relata a dificuldade de conseguir voltar para o Haiti para visitar sua família. “Para ter seu passaporte tem que durar um ano aqui no país e eu acho que a passagem para visitar nosso país é muito cara. Tenho que juntar R$ 5 mil para ir visitar minha família. Eu tenho sete anos aqui e não posso ir para o Haiti, porque eu tenho um salário de R$ 1.300 e ainda preciso mandar dinheiro cada mês para minha família. Eu acho que deveria ter uma embaixada, pegar um haitiano sincero ou pegar um brasileiro para ser responsável pelos haitianos, porque nós, os imigrantes, temos bastante necessidade de tudo”, afirma.
Daphney ressalta o preconceito que viveu durante estes sete anos. “Claro que eu sofri preconceito por causa do meu corpo, por causa do meu cabelo. Eu me lembro, quando eu cheguei aqui, eu entrei em uma loja, eu tava com o cabelo crespo grandão e a mulher me olhava da cabeça aos pés. Ela ficava caminhando atrás de mim como se eu fosse roubar uma coisa. Eu pensei que eu tinha que mudar meu cabelo, tinha que fazer progressiva para poder ser aceita”, reitera.
Segundo ela, seu maior sonho é trazer sua família para Bento Gonçalves. “Meu sonho é ver minha mãe junto comigo e estar junto dos meus irmãos. Eu não consigo porque eu estou aqui sozinha. Além disso, quero ter minha casa própria no Brasil, ter um carro próprio, poder receber um salário melhor”, finaliza.
Assistências
De acordo com o Secretário de Esportes e Desenvolvimento Social, Eduardo Virissimo, a prefeitura disponibiliza serviços de assistência social conforme as demandas apresentadas pelos imigrantes. “Eles possuem acesso aos serviços conforme a demanda que necessitam, tendo provida as seguranças de renda, acolhida, convívio ou vivência familiar, comunitária e social, desenvolvimento de autonomia, apoio e auxílio dentro dos programas, projetos e ações desenvolvidas pelos serviços públicos do município”, afirma.
Entretanto, o maior desafio para o acolhimento dessas populações segue sendo a barreira linguística. “O maior desafio no trabalho social com os imigrantes é a comunicação, devido às diferentes línguas”, explica Virissimo. Ainda assim, ele acredita que a adaptação dos imigrantes ocorre conforme o tempo de permanência na cidade e a integração com a comunidade.
Mudanças nas políticas de acolhimento
No passado, Bento Gonçalves contava com uma Comissão Intersetorial voltada para imigrantes de etnia negra, mas o órgão foi descontinuado. Segundo o secretário, existia uma associação criada e organizada pelos próprios haitianos. Atualmente, Bento acolhe a todos que chegam com sua estrutura já utilizada por todos, não se fazendo diferenciação, como destaca Virissimo.
Para garantir o acesso dos imigrantes a serviços básicos como saúde, educação e assistência social, a prefeitura adota a mesma política aplicada aos demais munícipes. “O acesso aos serviços públicos é o mesmo de qualquer cidadão, avaliada a situação de cada família/indivíduo nos casos que exigem atenção”, pontua Virissimo. No entanto, ele afirma que não há parcerias formais com ONGs, instituições religiosas ou organizações internacionais para apoiar esses grupos.
O desafio na educação
O setor educacional também enfrenta desafios para integrar os estudantes imigrantes. Segundo a secretária de Educação, Andreza Peruzzo, a inclusão desses alunos nas escolas é essencial para valorizar a diversidade cultural. “Trata-se de uma excelente oportunidade para ampliar os horizontes culturais. Contudo, é desafiador superar a barreira da língua, por isso é preciso preparar a gestão pedagógica para acolher esses estudantes, garantindo uma experiência positiva para toda a comunidade escolar”, destaca.
Quando uma escola recebe um aluno imigrante, a Secretaria de Educação e a supervisão escolar avaliam sua documentação e realizam sua reclassificação. Dependendo da situação, o estudante pode receber adaptação curricular ou um Plano Pedagógico Individualizado.
Mercado de trabalho e migração forçada
A inclusão dos imigrantes no mercado de trabalho local é outro aspecto crucial para sua integração. A prefeitura auxilia nesse processo por meio do Balcão de Oportunidades e do Programa de Promoção do Acesso ao Mundo do Trabalho (Acessuas Trabalho), que encaminha os imigrantes para vagas disponíveis. No entanto, não há programas de qualificação específicos para essa população.
Com relação à chegada de imigrantes em situação de migração forçada — seja por catástrofes climáticas ou crises políticas —, o município adota uma postura de acolhimento sem diferenciação. “Bento acolhe a todos que chegam com sua estrutura já utilizada por todos”, afirma Virissimo.
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A visão de um sociólogo
João Ignacio Pires Lucas, sociólogo, oferece uma análise mais ampla da questão da imigração em Bento Gonçalves. Ele destaca o histórico de acolhimento da região, mas também aponta para os desafios da integração e as desigualdades existentes. “Os imigrantes, muitas vezes, se envolvem em tarefas precarizadas, tarefas que são renegadas pelas próprias populações locais, e se não fosse por essas pessoas, talvez muitas das atividades não aconteceriam”, pondera.
O sociólogo ressalta a importância das políticas públicas para garantir os direitos dos imigrantes e promover a inclusão social. No entanto, ele alerta para a necessidade de um debate mais aprofundado sobre as questões relacionadas ao mercado de trabalho, à discriminação e à xenofobia. “Infelizmente, uma parcela da população, nutre noções preconceituosas, ações de discriminação. Felizmente, nós já temos um ordenamento jurídico que tem transformado em crime, muito dessas práticas racistas, xenófobas. Infelizmente, isso ainda existe e eu diria que talvez nunca desapareça, especialmente quando tivermos esses recursos escassos, até no mercado de trabalho”, sugere.
A Lei de Migração e a Política Nacional
A Lei de Migração nº13.445 de 2017, representa um avanço significativo na legislação brasileira ao substituir o antigo Estatuto do Estrangeiro, de 1980. A nova legislação reconhece os imigrantes como sujeitos de direitos e assegura a igualdade de acesso aos serviços públicos, incluindo saúde, educação e assistência social.
A implementação dessa lei impulsionou a criação de uma Política Nacional de Migração, Refúgio e Apatridia, consolidando diretrizes para a inserção dos imigrantes na sociedade brasileira. A política prevê mecanismos para a regularização documental, acesso ao mercado de trabalho e proteção contra discriminação e violação de direitos.
O papel das políticas públicas
O sociólogo destaca que a efetivação dos direitos dos imigrantes depende não apenas da legislação, mas também da criação e execução de políticas públicas. “O Brasil avançou bastante nesse quesito jurídico-político, pois além da lei, há uma construção de uma política nacional que vem sendo estruturada com a previsão de grupos de trabalho e conferências nacionais”, afirma.
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Essas iniciativas facilitam a integração dos imigrantes, promovendo projetos de capacitação profissional e interiorização – processo que distribui imigrantes por diversas regiões do país para evitar a concentração em poucas cidades e aumentar suas chances de empregabilidade.
O panorama migratório em Bento Gonçalves
Nos últimos dez anos, Bento Gonçalves recebeu aproximadamente 2.600 imigrantes registrados. Esse fluxo foi marcado por ondas distintas, como a chegada expressiva de haitianos entre 2015 e 2016 e, mais recentemente, de venezuelanos. Os dados indicam que cerca de 1.140 desses imigrantes estiveram em situação temporária, enquanto 1.400 conseguiram o status de residentes permanentes. Os dados são do Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGRA).
Na esfera do mercado de trabalho, os registros do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) mostram que, em 2024, houve aproximadamente 1.300 admissões de imigrantes na cidade e 800 rescisões, com destaque para argentinos, venezuelanos, haitianos e cubanos. A busca por mão de obra estrangeira não é novidade. “Os levantamentos mostram a ida de pessoas, por exemplo, de Bento Gonçalves, Caxias, em busca desses migrantes, para trazê-los no sentido de usufruir da sua mão de obra, principalmente uma mão de obra mais em conta, mais barata. Eu diria que houve o estímulo para que essas pessoas viessem. Se formos pensar, as cidades da região da Serra têm um desenvolvimento econômico, têm uma diversidade de arranjos produtivos que permite sempre um fluxo de empregabilidade”, destaca Pires.
Ações de acolhimento da Igreja Assembleia de Deus
Segundo o pastor José Lopes, da Igreja Assembleia de Deus, a instituição religiosa fornece apoio aos imigrantes, principalmente haitianos e guineanos. “Antes mesmo de ajudar o pessoal do Haiti e os venezuelanos, já ajudávamos o pessoal de Guiné conseguindo casas, móveis, já fazem mais de 15 anos”, conta. Entre os imigrantes auxiliados, está Jean, que chegou à cidade com sua esposa Maria e filha Ruth. Lopes explica que a igreja não apenas os ajudou a conseguir móveis e uma moradia, mas também atuou no processo de legalização. “Eu mesmo fui mais de 20 vezes com eles à Polícia Federal, em Caxias do Sul, para conseguir documentação”, conta.
Para aqueles que chegam sem recursos, a igreja promove a arrecadação de cestas básicas, roupas e móveis. “Quando eles chegam, postamos no nosso grupo: ‘Preciso de cama, geladeira, sofá, cobertas’. E os irmãos ajudam”, explica Lopes. O trabalho pastoral também se estende ao apoio na busca por emprego e aprendizado da língua portuguesa.
Dentre as histórias marcantes, Lopes destaca a de Mike Palma, um venezuelano que chegou a Bento Gonçalves sem nada e foi acolhido pela congregação do bairro Vendelino. Ele se integrou à comunidade e, no ano passado, foi enviado pela igreja como missionário para a Bolívia. “Ele veio para cá, se inseriu e hoje representa a nossa igreja no altiplano boliviano”, relata o pastor.
Os desafios enfrentados pelos imigrantes vão além das dificuldades econômicas. Lopes relata episódios de preconceito e burocracia excessiva. “Muitas vezes vi os imigrantes serem maltratados na Polícia Federal. Quando havia um brasileiro acompanhando, o tratamento era outro”, afirma.
A Igreja Assembleia de Deus também tem um trabalho específico para a comunidade haitiana. Houve um esforço para ajudar na construção de uma igreja própria, além de oferecer espaços em templos para os cultos em seu idioma e estilo de adoração. “Ajudamos com documentação, estruturação e, hoje, temos um pastor haitiano formado no nosso Instituto Bíblico”, ressalta.
Atualmente, a igreja mantém 19 congregações na cidade, todas envolvidas no suporte aos imigrantes. “Cada dirigente, junto com os membros, ajuda na assistência, na documentação e no que for necessário. Nosso objetivo é fazer com que esses imigrantes não apenas sobrevivam, mas prosperem”, conclui Lopes.