A síndrome possui tratamento que inclui estratégias multiprofissionais. O diagnóstico precoce aumenta a chance de sucesso na modulação comportamental dos pacientes
O dia 2 de abril é uma data especial, que celebra o Dia Mundial de Conscientização do Autismo, onde diversos países aproveitam a oportunidade para conscientizar a população em relação a essa condição de saúde. No mundo, segundo a ONU, acredita-se haver mais de 70 milhões de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), afetando a maneira como esses indivíduos se comunicam e interagem. A incidência em meninos é maior, tendo uma relação de quatro meninos para uma menina com a síndrome.
O TEA se refere a uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva. As principais características do TEA estão relacionadas à prejuízos na interação social e comunicação, incluindo: padrões incomuns de fala; falta de contato visual; não responder quando chamado pelo nome; desenvolvimento tardio das habilidades de fala; dificuldade em manter uma conversa; repetição de frases ou palavras; dificuldade em compreender os sentimentos dos outros e expressar os seus; comportamentos repetitivos ou incomuns.
De acordo com a psiquiatra e psicoterapeuta, Nádia Bedin Gabana, a causa desta síndrome ainda permanece desconhecida. “Supõe-se que ocorre por um conjunto de fatores, entre eles genéticos, biológicos e ambientais. Já foram identificados alguns genes herdados ou novas mutações que teriam associação com o espectro autista”, informa.
Além disso, a doutora explica que o quadro se apresenta antes dos três anos de idade. “Com alterações ou atrasos do desenvolvimento e até por regressão de marcos de desenvolvimento que a criança já havia alcançado. Casos mais graves de TEA podem ser percebidos pelos pais antes do primeiro ano de vida”, ressalta.
Segundo Nádia, o diagnóstico precoce é importante para a intervenção. “É preciso estimular as áreas de maior dificuldade quando o paciente tem um ‘cérebro’ mais jovem, mais propício a modelagem e mudanças”, diz.
Muitos pais já procuram ajuda especializada sabendo que seus filhos apresentam características diferentes de crianças da mesma idade, alguns só esperam a confirmação de um diagnóstico. “Há uns que demoram para aceitar o quadro da criança e tardem a procurar ou aceitar ajuda no diagnóstico e intervenção. Outros passam por um luto do ‘filho perfeito e idealizado”’ para o enxergar o ‘filho real’ e isso é necessário para que as expectativas sejam realistas e as intervenções sejam eficazes no tratamento do filho”, salienta.
Conforme a psicoterapeuta, o tratamento comportamental e programas de treinamento de habilidades para pais, equipe escolar e outros cuidadores, podem reduzir as dificuldades de socialização e aprendizado em ambiente escolar. “Além disso, quanto mais precoce é a intervenção terapêutica, maior a chance de sucesso na modulação comportamental dos pacientes com TEA. Inclusive, já se descrevem quadros que preenchiam critérios clínicos para o transtorno e com intervenção precoce deixou de preencher os critérios, mostrando o potencial de melhora dos sintomas. Não existe cura para TEA, mas sim, tratamento de sintomas relacionados ao quadro”, destaca.
A profissional frisa que portadores de TEA são muito diferentes entre si e devem ser tratados com o respeito que merecem. “Uma pessoa com a síndrome pode apresentar uma gama de dificuldades em lidar com situações cotidianas, mas possui muitas habilidades em outras áreas, como qualquer outro ser. Eles enxergam o mundo de uma outra maneira e muitos possuem habilidades que os destacam nos grupos. As famílias de portadores de TEA merecem afeto, respeito e consideração, não pena e crítica, pois quanto mais fortalecidas, mais elas podem ajudar o portador a se desenvolver”, conclui.
Centro especializado
O CAPSi Girassol – Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil de Bento Gonçalves, é uma unidade especializada em saúde mental voltada para o tratamento e para a reinserção social de crianças e adolescentes que se encontram em sofrimento mental grave e persistente, e outras situações que impossibilitem estabelecer laços sociais e realizar projetos de vida.
O tratamento inclui estratégias e objetivos múltiplos, preocupando-se com a atenção integral dessas crianças e adolescentes. O trabalho envolve, ainda, intervenções nas relações familiares, afetivas, comunitárias, no âmbito da justiça, educação, saúde, assistência social, moradia, trabalho, renda, entre outros.
De acordo com a assistente social e coordenadora do CAPSi Girassol, Anaquel Pereira, o espaço atende toda a demanda de saúde mental de crianças e adolescentes do município, que chegam através de encaminhamento de unidades de saúde pública. “A questão do autismo entra também neste quadro de atendimentos. O município tem um acordo com a APAE, que atende crianças com autismo na faixa etária dos dois aos quatro anos de idade e a partir dos quatro anos, os atendimentos são realizados no CAPSi”, afirma.
A coordenadora destaca que, o encaminhamento, é realizado pelas Unidades de Saúde do território. “A acolhida no CAPSi é feita por um profissional (enfermeira, assistente social, educador social ou técnica de enfermagem) que após leva o caso para a discussão com a equipe encaminha para avaliação para avaliar quais as necessidades da criança e iniciar o tratamento. O critério de entrada no serviço não é o diagnóstico, mas sim, a suspeita de autismo e os sintomas que aquela criança vem apresentando”, informa.
Além disso, para um tratamento multiprofissional, outras especialidades podem ser consultadas e acionadas como a neurologia e fonoaudiologia. “O município tem uma necessidade por profissionais de fonoaudiologia, principalmente com essa demanda crescente de crianças com autismo”, revela.
A psicóloga Janice Cavalini, conta que os maiores atendimentos são realizados por ela e mais duas profissionais da mesma área, a triagem é individual e o acompanhamento posterior pode ser em grupo. “Mas aí depende muito de cada criança e da maneira como vai a evolução dela. Em questão de números, no último levantamento feito no final de 2022, haviam cerca de 70 casos suspeitos de autismo. Neste ano, nos poucos meses que se passaram, já vimos um aumento de consultas”, explica.
Essa elevação de pacientes já vem sido observada pela equipe do centro desde 2021, o que, muitas vezes, pode ser confundida pela falta de estímulos que afetou as crianças durante a pandemia de Covid-19. “Não puderam comparecer na escola e os pais muitas vezes trabalhavam fora, a atenção necessária para o desenvolvimento pode não ter sido dada. Tanto é que tem alguns casos que chegam aqui já com o pré-diagnóstico de autismo, e no andar da carruagem vemos que não é”, salienta.
Conforme Janice, quanto mais precoce o diagnóstico de autismo, melhor. “Mas não é um único profissional que vai fazer essa avaliação, ela é multiprofissional. Então psicóloga, terapeuta ocupacional, psicopedagoga, neurologista, fonoaudióloga, são especialistas que juntos, podem dar um laudo final para o TEA”, completa.
A terapeuta ocupacional do CAPSi Girassol, Juliana Calabria, que estava presente como palestrante na 1ª Semana Municipal de Conscientização sobre o Autismo, ação realizada em Bento Gonçalves desde a última segunda-feira, 27 de março, destaca sobre a sensibilidade sensorial que os pacientes apresentam. “Além de todos os sintomas do autismo, é importante observar a dificuldade de socialização e de interação. Eles têm alterações sensoriais que são bastante agravantes, ao sair na rua às vezes um barulho muito alto, ruído ou só o fato de ir para um local com mais movimentação, gera uma descarga de sensações intensa”, pontua.
Com isso, Juliana aponta que essas situações impedem de a criança ter um desenvolvimento saudável. “Atrapalha e compromete todos os outros campos de vida dela, principalmente a questão da aprendizagem. Então é na escola que ela tem mais dificuldade de ficar sentado numa sala com muitos alunos, com uma professora falando, com bastante informação visual. Daí vai pro recreio e ela não tem esse tempo de preparo, de ser avisada e de poder processar de que vai para outro espaço maior ainda, com mais agitação. Ou é aquela criança que tem dificuldade de ir em parquinhos e pisar numa areia, brincar de escorrega”, lista.
Além disso, um sinal de atenção também vem na hora da alimentação. “A maioria dos autistas tem uma seletividade, uma dificuldade, come só um tipo de alimento, um tipo de textura e tem aversão a gostos e cheiros diferentes. A gente como pessoa neurotípica, consegue processar e dizer que vai prestar atenção só no que precisa realmente fazer, o autista não. Pacientes com essa condição focam em tudo, tudo é muito importante, não conseguem fazer essa seletividade de atenção e no que vão focar. Então, a terapeuta ocupacional trabalha com essa questão de estar modulando a entrada sensorial, que é difícil para o autista”, comenta.
Segundo Juliana, com esse auxilio o portador do Transtorno do Espectro Autista (TEA), vai prestar atenção e dar uma resposta motora ou comportamental adequada. “Poderá fazer suas atividades de vida diária, ter autonomia e participar das ações normais de uma criança, que é brincar, estar na escola, conviver com família, ter o seu momento com outras pessoas, possuir a capacidade de se vestir e se alimentar sozinha, entre outras coisas que irão o ajudar a ser um adulto autista funcional, que possa trabalhar e tudo mais”, frisa.
Apesar disso, crianças com autismo e alguma comorbidade associada, tendem a ter mais dificuldades. “Principalmente a deficiência intelectual, mais difícil se torna. Quanto mais grau de comprometimento cognitivo, mais o prognóstico de autismo tende a ser ruim, porque é uma criança que vai ter dificuldade nas suas habilidades adaptativas e sociais, além de não desempenhar as atividades com mais autonomia. Nestes casos, é importante sempre ter o acompanhamento de um cuidador adulto e de um terapeuta”, finaliza.
Apoio da família
A cuidadora de idosos e mãe de três filhos, Tânia de Souza Melo, percebeu que o mais novo, Arthur, de seis anos, parou de comer o que ela oferecia há quatro anos atrás. Além disso, outros sinais apontavam para um possível diagnóstico de autismo. “Nesse período, ele frequentava a Escolinha Municipal Pinguinho de Gente, não comia praticamente nada que lhe era oferecido, se isolava em sala e era muito agressivo. Em casa também era assim, alinhava os brinquedos e era muito impulsivo. A escola que observou primeiro que o comportamento dele era diferenciado e me pediu que procurasse ajuda especializada”, recorda.
O diagnóstico foi feito em um mês após a procura por ajuda médica. “Eu estava sozinha com o Arthur no consultório, e o Dr. Cássio que é o Neurologista dele, fechou o diagnóstico no primeiro atendimento. Estava muito evidente para um profissional avaliar na época. Foi com mais ou menos dois anos e oito meses, parecia que tinha estourado uma bomba perto de mim e eu entrei em choque. Não sabia como agir, nem o que fazer”, admite. Nem sempre a notícia vem de forma leve aos pais, Tânia demorou uma semana para se recompor, entre lágrimas e muita cobrança pessoal. “Decidi estudar tudo que podia pela internet e seguir todas as pessoas autistas pra tentar entender como era o mundo pro meu filho”, completa.
De acordo com Tânia, a vida de pais que descobrem que o filho tem Transtorno do Espectro Autista (TEA), muda completamente. “Sem terapias eles regridem e por esse motivo, a maioria das mães não conseguem trabalhar durante o dia, ou trabalham em casa pra conseguir levar a criança com TEA nas consultas. Fora quando não temos condições financeiras de arcar com todas as terapias que necessitam e dependemos da rede pública que, nem sempre disponibiliza tratamento adequado que um autista precisa. Deixei de trabalhar durante o dia, procurei um trabalho a noite como cuidadora de idosos, para conseguir ajudar o Arthur”, resume.
Arthur tem seletividade alimentar, para ele tudo é muito mais aguçado, o que preocupa a mãe. “Eu digo que ele tem super poderes, super paladar, super olfato, super tato e super visão. Mas realmente é a alimentação que nos deixa mais preocupados, apesar de que ele está com peso e tamanho ideal para a idade”, diz.
O garoto faz terapias três vezes por semana, com isso, Tânia conta que ele está evoluindo em alguns aspectos na escola e na interação com o próximo. “Ele convive bem com outras pessoas, gosta muito de falar e se dá bem com os coleguinhas. Hoje, tem menos ecolalias (repetições), consegue interagir em conversas, mas não gosta de muitas pessoas falando ao mesmo tempo. O barulho ainda o incomoda”, percebe.
A cuidadora de idosos valida que aprende todos os dias com Arthur, que cada vez está mais inteligente. “Gostaria de dizer que a nossa vida de família atípica, não é nada fácil, nós não estamos só educando ou cuidando do nosso filho, nós temos que lutar por ele todos os dias. Brigamos quando nossos direitos são negados, quando as pessoas nos olham torto em público e nossos filhos tem uma crise que parece ‘birra’ mas não é, ou quando precisamos passar na fila preferencial porque autista não consegue esperar em filas”, realça.
Além disso, ela destaque que ela e muitas outras mães, pensam como será o futuro dos filhos com TEA em um mundo tão sem preparo para as pessoas especiais. “Quero dizer que autista não tem cara de autista, que o diferente assusta, mas que também pode nos ensinar e muito. E que devemos ter mais empatia pelo próximo, porque ninguém sabe o que passamos todos os dias e cada vitória comemoramos com imensa alegria. E para as famílias de crianças e adolescentes com o transtorno que estão perdidos sem saber para onde correr, temos um grupo chamado Voz Azul, formado por pais e famílias de atípicos, que está sempre em busca por alcançar os direitos dos autistas junto à comunidade”, encerra. Quem tiver interesse, pode entrar em contato através do número (54) 99196-5720.