Desembarcamos num pequeno éden, no exato momento em que o sol mergulhava no mar, feito uma azeitona vermelha. O quadro era estonteante. Barcos de grandes egos disputavam espaço no porto, cutucando-se ao sabor das ondas. Passarinhos riscavam e rabiscavam o céu de um azul sem limites, abusados como eles só. A aragem vinda do oceano soprava poesia…
De repente, um cheiro apetitoso, que escapuliu da cozinha do restaurante – ancorado na enseada – voou direto para minhas narinas. A direita, sempre trancada à chave pelo desvio de septo, não deu a mínima. Mas a esquerda quase endoidou. Só então tive a certeza de que a tal Ômicron picara a mula. Já não era sem tempo. O olfato faz uma falta danada, principalmente para evocar memórias…
Por mais bonito que fosse aquele paraíso, a fome se interpôs na paisagem, e então fizemos o pedido. Quem não paga, procura ser modesto nos desejos, especialmente quando a conta vem em euros. Assim, pedi um
“risotto ai gamberi”, sem acompanhamentos.
E o prato veio! Com “un profumo delizioso”. E com um par de olhos negros me encarando. Ok! Eu pedira risoto de camarão, mas não com o bicho inteiro – com carapaça, pedúnculos oculares, mandíbulas, rabo e com patinhas que não acabavam mais.
Olhei para o crustáceo vermelho de quase dez centímetros, ali, na minha frente, com os bigodes maiores que os dos gatos… Bigodes ou antenas… e barbichas. Na verdade, parecia um enorme grilo. E de grilo eu não gosto nem do canto, imaginem atravessado no meu prato, pronto para atacar.
Fixada naquela imagem bizarra, eu refletia… “Por que não decapitaram o olhudo, se é na cabeça que ficam as fezes?” Mas aí me lembrei de certa similaridade humana. Quantas vezes a gente carrega no primeiro cérebro aquilo que deveria ficar transitoriamente no segundo cérebro, e nem por isso se é discriminado…
Que doideira! Eu devia estar mesmo sequelada pela Covid, em sua forma mais estranha, para alimentar tantas ideias sem pés nem cabeça… Então resolvi agir. Peguei um guardanapo e ia enrolar o camarão quando o patrocinador da viagem me alertou que não o fizesse na cara do proprietário, que, simpático e generoso, renovava o estoque de pão continuamente. Sem alternativas, disfarcei meu prato no meio dos outros e me deliciei com “pane e olio d’oliva”.
A consequência chegou nos dias que se seguiram. Meu segundo cérebro recebeu um mandado de prisão temporária… que vou renovada por mais uma semana.