O dia 4 de setembro segue na mente de todos os moradores da região do Rio das Antas e do Taquari. Seis meses desde a fatídica data que mudou o rumo da vida destes moradores que acreditavam enfrentar apenas uma forte chuva. Casas foram inteiramente levadas. Em alguns casos, o máximo que sobraram foram escombros, já que antes da tragédia, existia um lar. Após 180 dias, apenas relatos dolorosos e de desesperança, já que pouco se fala sobre possíveis auxílios financeiros para recomeçar. Relatos emocionados feitos à reportagem do Semanário indicam o sentimento de esquecimento e solidão de quem espera ajuda dos órgãos públicos. Essa é a vida de quem perdeu tudo.
“Porque quando há uma perda, todo mundo perde igual”
Luis Antônio Rodrigues, de 60 anos, é morador da comunidade Imaculada. Há 15 anos, residia em sua casa na localidade. Por precaução, e conhecendo o histórico do lugar, decidiu fazer ela mais alta, com o intuito de evitar que a água invadisse o local. Dessa forma, ele escapou ileso do fatídico 4 de setembro, mas em novembro, a situação foi diferente. “A minha casa foi uma das poucas que não sofreu na primeira enchente. Mas na segunda, aconteceu algo pior. Um deslizamento de terra por conta das fortes chuvas, fez com que um barranco deslizasse e derrubasse parte da estrutura”, lembra.
Rodrigues sente um nó na garganta toda vez que fala sobre o fato. “Este é um assunto que faz com que as imagens voltem, de quando tudo aconteceu e isso mexe muito conosco. Sou mais um dos atingidos, não perdi mais, nem menos. Porque quando há uma perda, todo mundo perde igual. Não é questão de quem tem e quem não tem. No caso, não tenho, mas mesmo quem tinha, perdeu tudo. Quando os encontro, vejo refletido neles o meu olhar. Enxergo um semblante triste e o peso do abandono nos ombros de cada um dos meus amigos e vizinhos”, relata.
Nesses seis meses, Rodrigues procurou ajuda em diferentes esferas, pois o que conseguiu retirar em tempo da casa foram as roupas do corpo e mais nada. Após o ocorrido, ele e a esposa moraram na residência dos filhos, pois conta não ter recebido nenhum tipo de auxílio para moradia. “Ficamos na cidade de favor. Ora ficávamos em uma filha, depois em outra. Fomos ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Saí com um ranchinho e sem soluções. Ele lamenta também o afastamento de amigos após o ocorrido. “Parece que você foi contaminado, tem uma doença contagiosa, e os amigos começam a se afastar. As famílias, os mais próximos, não têm condições de ajudar.”, lamenta.
Sem ajuda financeira de nenhum lado, Rodrigues tenta erguer por conta própria, no mesmo local, as paredes de sua nova casa, mesmo com o perigo de novos deslizamentos. “Não vou me entregar, estou morando de aluguel e a situação é bem difícil. Mesmo não sendo um aluguel caro, juntando água, luz e condomínio está bem difícil, fechamos no vermelho todo mês”, conclui.
“Tudo o que restou foi um abridor de latas”
Jacson Strapazzon, de 39 anos, é engenheiro e presenciou tudo o que ocorreu naquele dia que iniciou como um outro qualquer. “Saímos às 6h30min para trabalhar em Bento Gonçalves e levar nossa filha para escola. Havia chovido no final de semana, mas o rio estava dentro do nível normal para dias semelhantes. A ponte de Cotiporã também não estava submersa”, conta.
Essa foi a última vez que Jacson Strapazzon viu sua casa
Nas horas seguintes, o cenário mudou e tornou-se um filme de terror. Strapazzon e a família estavam presos com outros moradores. “Por volta das 15h não conseguimos mais sair em nenhum sentido da estrada, a água já estava na rodovia. Foi quando vimos moradores da vizinhança subindo para os trilhos do trem, tentando se abrigar e salvar os carros. Próximo às 17h, casas e troncos já eram trazidos pelo rio. Quando começou a escurecer, vimos partes de casas e árvores virem pelo asfalto e se bater com as nossas janelas e portas”, recorda.
Após algumas horas ali, ambos precisavam sair daquela situação. “Quando decidimos arriscar e ir pelos trilhos, mesmo com muita água, chegamos próximo de Cotiporã e ligamos para uma irmã que estava na cidade para buscar nossa filha. Por volta das 22h, o caminhoneiro que havíamos conhecido no meio da enchente, nos ligou e avisou que a Defesa Civil havia informado que nossa casa tinha sido levada. Desse momento em diante, nosso mundo desabou”, afirma.
Ambos voltaram no dia seguinte para ver o que podia ser recuperado. “Ao chegar lá só havia o piso e o portão de entrada, que foi roubado dias depois. Caminhávamos à beira do local para ver se encontrávamos algum móvel ou pertences. Só achamos um abridor de lata. É o que nossa filha mostra para as pessoas quando nos perguntam se salvamos algo”, indica.
“Não se acreditava no que estava vendo”
Angelo Saim, 62 anos, aposentado, comprou sua casa na localidade quando ainda era uma das primeiras. Não havia telefone e lá sempre foi seu segundo lar. Descer sempre era divertido. Fosse para conversar com seus pais ou passar o dia respirando ar puro. Logo, ele foi acompanhando todo o crescimento daquele lugar. “Quando deu o sinistro, no dia seguinte desci até a Alcântara, até onde deu para ir. No meu caso, tínhamos o sítio da família há 40 anos. Foi aquele impacto, algo surreal. Toda aquela destruição, em um local tão bonito onde famílias viviam felizes. Ver daquela maneira foi muito deprimente. Lembro muito bem da sensação que tive, das lágrimas, não só por mim, mas por todos”, diz.
Seis meses após o ocorrido, Saim sente como se vivesse a situação diariamente e lamenta a falta de ajuda. “Conversei com pessoas que tinham suas residências fixas lá, e no dia estavam lá nos trilhos, não conseguiam nem falar ou chorar. E entendo, porque quando olhávamos para aquilo, não se acreditávamos no que estávamos vendo”, recorda.
O aposentado Edson Álvaro da Paixão, de 57 anos, lembra que desceu do trabalho para ir até sua casa, já que todos comentavam que o rio estava subindo rapidamente e ao chegar, teve apenas tempo de arrumar um pouco das coisas, pois sua casa já estava coberta de água. Quando retornou à noite, sequer conseguia vê-la. “Minha reação foi de muita tristeza. Ia completar quatro anos que morava ali. É um bem, a moradia que tinha para ficar, então até hoje fico muito triste, cada vez que desço lá ela consome meu corpo”, declara.
O aposentado conta que a prefeitura esteve presente, fazendo o que podia para o momento. “Tive que ir para casa de parentes na cidade, e aí a prefeitura fez todo o cadastramento, ajudou bastante, só que infelizmente ninguém se enquadrou nos programas do Governo Federal, pelo que estou sabendo. A prefeitura neste momento esteve presente, principalmente o subprefeito. Eles fizeram o que puderam, mas nós não nos enquadramos”, explica.
“Até hoje dói falar”
Rozalia Alves da Rosa passou por tudo isso aos 59 anos de idade. Até hoje tem dificuldade para falar o que foi viver os momentos de pavor no dia que perdeu a casa. “Saímos na pressa, porque o rio estava subindo muito. A água já estava entrando e não tinha para onde ir. Nunca tinha atingido o terceiro piso, jamais imaginei que isso aconteceria. Por isso até resisti de ir embora. Na hora que o rio levou minha casa, já estava na residência do meu filho. Quando a água a arrastou, ligaram para ele. Foi aí que bateu o desespero e vi que tinha perdido tudo. Até hoje dói falar”, lamenta.
Aos poucos, movimentos foram ocorrendo em busca de solução para as pessoas que haviam perdido tanto. “Depois de alguns dias passou o pessoal na casa para fazer o cadastro, mas já estava na do meu filho. Mas foi só isso também. Não sabemos de nada e nem o que vai ser feito por nós. Eles me ofereceram um aluguel solidário, só que não estava bem, não tinha condições de estar sozinha e já estava com meu filho, e acabei não aceitando”, completa Rozalia.
Desde o fatídico dia até os atuais, a sensação que muitos têm é de que foram abandonados pelo Poder Público. “Até agora ninguém falou em projeto de casa aqui em Bento. Em Santa Tereza, ouvimos que já está começando essa movimentação. Sentimos que estamos abandonados pelas autoridades. Após seis meses, estou vivendo em um porão de favor, doente, sobrevivendo com as doações que ganhei”, revela.
“Minha casa ficou condenada”
Também proprietário de uma residência na linha Alcântara, Roque Comim, de 52 anos, foi mais uma das vítimas das enchentes. Desde os 11 anos de idade passou a frequentar o local que, segundo ele, lhe oferecia tranquilidade, que mora na área urbana de Bento. “Perdi só o que tinha dentro. A casa ficou, mas lá se formou um barranco e o imóvel está em perigo. Um local que tanto amava frequentar, hoje pode nos levar a morte se desmoronar”, enfatiza.
Seu desespero é ver que o que estão passando não é levado em consideração. “A rotina continua, ninguém faz nada. Para quem mais teremos que pedir ajuda? Em 2017, entrei no Ministério Público, estava preocupado com a situação das enchentes, das barragens e fiz uma solicitação para que viessem olhar, fossem pessoalmente ou através de satélite. Mas o MP infelizmente não fez nada”, lamenta.
Prefeitura de Bento informa que acompanhou famílias
Procurados pela reportagem, a prefeitura de Bento Gonçalves, por meio de nota informou que após a situação foram realizados acompanhamentos pelas equipes e encaminhamento de famílias aos programas sociais dos governos Estadual e Federal.
Segundo a Administração, 23 famílias tiveram acesso ao Programa Volta por Cima do Governo do Estado.
Em Santa Tereza, casas serão construídas em novo loteamento
Em Santa Tereza, município também atingido pelas enchentes, com prejuízos estimados em aproximadamente R$ 95 milhões entre perdas no patrimônio público e privado, o trabalho para auxílio às famílias que perderam seus imóveis avança consideravelmente.
De acordo com a prefeita Gisele Caumo, medidas concretas foram tomadas logo após a situação de calamidade pública ser publicada em decreto oficial. Em nota, a Administração informou que todos os moradores que perderam suas casas nas enchentes, receberam móveis e utensílios. “Semana passada foi assinado o programa Minha Casa Minha Vida Rural. Há um loteamento que foi todo construído pela prefeitura, idealizado antes mesmo das enchentes”, explica a nota.
De acordo com a prefeitura, parte dos terrenos do empreendimento vão ser repassados às famílias que se enquadrarem nos critérios estabelecidos em lei, criada para tal propósito.
Ainda, segundo a nota, Santa Tereza é o município mais adiantado, de todos os atingidos pelas cheias, pois deve entregar as escrituras dos terrenos já nas próximas semanas.