Em meio ao caos que tomava conta dos distritos como Faria Lemos e Tuituy, cidadãos comuns decidiram arriscar suas próprias vidas para reduzir o número de vítimas dos mais de 100 deslizamentos que ocorreram em Bento Gonçalves
Alex Pretto tem 36 anos, é vendedor e possui uma casa de veraneio em Alcântara, o que colocou ele e sua e sua esposa Ana Paula Caneppele Pretto, de 33 anos, nessa história. Ele não era nenhum salvador e sequer tinha cursos ou imaginava que um dia participaria de algo assim. Por ter sua casa de veraneio na região, ele era amigo de muitas pessoas do distrito, especialmente de Rafael Bortolosso e Ana Paula Moser, os amigos que ele inicialmente foi ajudar, sem saber tudo o que enfrentaria nos próximos três dias.
Rafael Bortolosso (e) e Alex Pretto (d), que encontraram, através da amizade, forças para salvar as pessoas
O início
A chuva intensa que começou naquela semana já prometia causar estragos por sua força e quantidade, mas os moradores daquela região se preocupavam mesmo com o temido Rio das Antas. Na enchente de setembro, o rio havia carregado casas e inundado outras. “Como a minha casa é bem alta e a do Rafa também, nunca pegava água. Mas nós já sabíamos que, quando o rio começava a subir, havia muito a fazer, como tirar os pertences dos vizinhos do andar de baixo para o andar de cima. Em setembro, as casas foram levadas, mas ninguém se machucou”, relembra.
Pretto, assim como a maioria dos moradores, não esperava que o problema viesse de cima; todos se preocupavam com o que estava embaixo, que era o rio. “Nas fotos dá para ver o pessoal carregando lavadoras de alta pressão, tentando salvar seus pertences para não perdê-los para o rio. E alguns perderam a vida, infelizmente, porque ninguém se preparou para o que realmente aconteceu”, lamenta.
Na terça-feira, a chuva que caía já era extremamente forte, o que preocupava todos os moradores próximos do rio, que já conheciam bem o desfecho dessa história. Rafael, amigo de Pretto, que estava junto na conversa e deu seu relato, já avisava o amigo que a situação estava ficando feia e o deixou em alerta para buscá-lo. “Eu e minha esposa tivemos medo, porque passamos a noite inteira na chuva. Saímos de casa às três horas da manhã e começamos a subir. Quando vimos que não havia mais estradas por onde sair, começamos a subir pelas parreiras; era a única saída. Mas, conforme foi escurecendo, ficamos por ali. Às três da manhã, chovia muito e encontramos uma casa onde todos estavam acordados também, assustados. E ali ficamos”, revela Rafael Bortolosso, acrescentando que “eles tinham o mesmo plano: esperar o dia clarear para depois sairmos. Quando o dia clareou, começamos a subir, debaixo da chuva, e nos encontramos. Em dado momento, minha esposa conseguiu enviar a localização de onde estávamos, e eles já estavam alertados que tudo estava deslizando”, lembra.
Pretto conta que quem realmente sabia o que estava acontecendo eram os moradores que viam os barrancos caírem; até então, não haviam sido emitidos avisos. “Na verdade, os avisos vieram depois, na quarta-feira à tarde, mas já tinha caído tudo. Só havia o aviso sobre a barragem, que ia estourar. Eles colocaram os megafones lá. Existiam pessoas que nem sabiam que estava deslizando, souberam pelos moradores. Por isso, ninguém estava preparado para o deslizamento”, relata.
Os resgates
Quando chegaram em Alcântara com alguns amigos de jipes e quadriciclos e conseguiram salvar o casal de amigos e as outras pessoas que estavam junto, perceberam que havia mais pessoas ilhadas e precisando de ajuda. “Vimos a quantidade de pessoas que estavam lá embaixo presas. Nesse momento, ninguém tinha tanta certeza; imaginávamos que eram bem menos. Havia pessoas tentando descer, mas ninguém conseguia acessar lá embaixo. Nós até tentamos descer por ali para ajudar o pessoal, mas era muito mais longe. Tinham senhorinhas e cadeirantes, não ia ter como, pois tinha que caminhar de três a quatro quilômetros a pé. Então descemos do jipe, fizemos uma abertura na pista, pegávamos os tuk-tuk do pessoal que estava embaixo mesmo. Levávamos até um pedaço e até o outro ponto tinha que ser de quadriciclo”, explica.
A falta de acesso e a dificuldade de mobilidade de muitos ali complicaram ainda mais a situação. “A logística tinha que ser muito pensada, pois havia locais cobertos por galhos e terra em uma extensão de 40 metros. Então, ajudávamos aqueles que conseguiam ir caminhando, oferecendo apoio e auxiliando a pular obstáculos. Já as pessoas mais velhas, os acamados e os feridos eram colocados em macas, atravessávamos por cima dos obstáculos e, em seguida, eram transportados de trator e depois para os quadriciclos, até finalmente serem transferidos para a ambulância”, explica.
A orientação inicial era que todos fossem levados para o Salão da Comunidade de Alcântara, pois lá era um lugar seguro. “Temos o sítio há anos, conhecemos tudo e sabíamos mais ou menos onde estavam as famílias. Então, saímos em direção ao destino, resgatamos as pessoas e as levamos para o salão, que era o ponto mais alto. Íamos pelas parreiras; só foi aberta a estrada na terça-feira e quarta-feira”, salienta.
O cenário era caótico, e não havia quem não sentisse medo de estar ali, presenciando e ouvindo tudo o que acontecia. “Lá era puro barro, tudo molhado, com chuva o tempo inteiro; a cada momento, um deslizamento ocorria em algum lugar. Até dava medo, mas não tínhamos escolha, estávamos arriscando. Foi a primeira vez que fiz algo assim, e não há muito o que pensar na hora. Só que depois do que vimos, era difícil voltar para casa e não ajudar as pessoas”, revela e complementa que “era só gente chorando, com casas caídas, colchões e cadeiras espalhados, e havia animais mortos. O cheiro era de morte. Houve casas inteiras que desapareceram. Tínhamos que ir passando, cuidando e contar com a sorte. Na verdade, era mais sorte do que qualquer outra coisa. Poderia descer a qualquer momento os morros, como desceu antes”, realça.
Os três dias de resgate resultaram no salvamento de 203 vidas pelos voluntários, que, mesmo com medo, seguiram suas intuições. “Na quinta, sexta e sábado, ficamos ali para ajudar, porque apenas os jipes conseguiam passar. Foram resgatadas 61 pessoas na quinta-feira, 128 na sexta-feira e 14 no sábado. Sabemos o número porque a orientação do prefeito era que cada pessoa que subisse gravasse um áudio com o nome completo e a localidade, assim podiam dar suporte às famílias, pois sabiam quem havia sido resgatado e quem não havia”, explica.
A saúde mental
É difícil mensurar o impacto que momentos de terror como esses podem causar em pessoas que vivenciaram esse trauma. Muitos conseguem se recuperar, mas é quase impossível esquecer o que viram, ouviram e passaram. “Ver as pessoas apavoradas, tendo que sair de seu cantinho. Saber que estavam precisando de ajuda, chorando pelos seus animais perdidos, que tinham pessoas soterradas, e não havia o que fazer por elas, não tinha como ajudar. Era só tristeza. Ainda me assombra bastante, e não vai apagar tão cedo. Realmente não queria ter passado por isso, e é algo que nunca imaginávamos. Como o caso do Rafael e da esposa, que passaram a noite no meio do mato, no escuro, os dois sozinhos, mal sabendo por onde estavam indo”, compartilha.
O sentimento que permanece, até agora, é o choro ainda preso na garganta, apesar dos ganhos, as perdas deixaram marcas. “Preferia não ter passado por essa experiência. Quando chegava em casa, botava para fora, mas no dia a dia, ficava zero. Mas em casa não tinha como não chorar, uma meia hora, porque era o momento em que lembrava de tudo que vi”, revela.
Povo solidário
Mas o que Pretto viveu fez com que enxergasse a bondade do ser humano, que desde o início foi empático e solidário com as vítimas. “Éramos uns 15, e no primeiro dia em que postamos fotos, já vieram amigos querendo ajudar. Íamos vendo quem tinha os equipamentos que eram necessários. Eram bem-vindos todos que quisessem ajudar. No sábado, havia mil pessoas lá, imagina. Tinha muita gente. Todo mundo tinha um parente, um amigo, um conhecido, sabe? Então, acho que isso me deu força”, constata.
Muitas vítimas resgatadas contribuíram emprestando tratores e tuk-tuks
As ajudas vinham de todos os lugares, desde quem doava, quem separava, quem preparava refeições até quem ia até os locais de resgate. “Foi tudo bem louco e deu certo. Todo mundo queria se meter e ajudar. Um grãozinho que fosse, todo mundo ajudou. Seja localizando alguém, seja carregando, porque precisava fazer bastante força. Por exemplo, na maca, carregava-se com seis pessoas, mas conforme íamos subindo, as pessoas iam afundando um pouco. Não era fácil, mas fazíamos duas, três viagens e já estávamos cansados. Todo mundo ajudou, de uma maneira ou outra, como já falei. Tinha gente que não podia sair de casa, mas contribuiu com doações de roupas, teve quem rezou. E nesses momentos, toda ajuda é bem-vinda”, declara.
Um de seus agradecimentos, também, é especialmente para aqueles que disponibilizaram seus equipamentos, muitas vezes de trabalho, para estar ali. “Queria agradecer ao pessoal dos veículos 4×4 e 4×2, das motos de trilha, dos jipes, dos quadriciclos, à população, aos moradores, aos tratores, porque ajudaram muito nesta região de Faria Lemos e fizeram toda a diferença no resgate”, conta.
Pretto finaliza com um apelo, pedindo para que as doações continuem, pois nas próximas semanas a tendência é diminuir. “A preocupação agora é com o frio, porque as temperaturas vão baixar, e as pessoas vão precisar de roupas grossas e cobertores. E meu outro receio é a longo prazo; agora todos estão ajudando muito, mas essa ajuda precisa continuar”, conclui.