Jane Krüger
Heschel, consegue por sua indignação para fora em relação a esse episódio, dizendo, “É tão difícil criar um filho, nutrir e educar. Por que tornas tão fácil matar?”1
Caim conseguiu desvirtuar completamente o propósito divino para o qual o homem havia sido criado. Imbuído por D’us de cuidar, zelar e proteger, fez exatamente o contrário. Insensível às vozes humanas, apático à voz do Eterno, tendo ouvidos somente para seus próprios sentimentos e intenções egoístas, afasta-se completamente de sua missão: ser justo e resplandecer em sua face a imagem daquele que o criou.
Reside aqui, o grande desafio: sermos honestos. A síndrome de Caim não é só dele, como de todos nós. Sofremos do mesmo problema quando, cada vez que vemos que algo está errado conosco mesmos, ao invés de nos levantarmos e assumirmos a responsabilidade e mudarmos, ficamos em nossa deliciosa zona de conforto; ou se é algum problema ou injustiça com o outro, protestarmos e nos posicionar como cidadãos conscientes neste mundo, mas não! Quantas vezes, escondemos a nossa face e simplesmente dizemos:
Não é da minha conta.
Temos falhado! Somos egoístas e cada um corre atrás do seu quinhão enquanto inúmeras injustiças acontecem e estas são tantas, que facilmente esquecemos a que já foi ontem, e enquanto a terra gira, nada fazemos, não gritamos, não exigimos direitos, não reivindicamos pelo que se tem de mais digno e sagrado: a vida humana.
A vida é sagrada e precisa ser preservada em todos os seus aspectos. A dignidade do outro precisa e deve ser protegida. Foi isso que Caim não viu, em absoluto não entendeu, nunca se deu conta, provavelmente não quisesse se dar a esse trabalho.
Você pode achar que estou exagerando, e dizer: O que tenho eu a ver com essa bandidagem, nunca matei ninguém! Compreendo, mas vamos mais fundo. No livro de Provérbios 18:21, encontramos este texto clássico: “A morte e a vida estão no poder da língua, e aquele que a ama comerá do seu fruto.” Com nossa fala, também podemos matar e isso está acontecendo de forma bem patente, agora, em nossas redes sociais, com a “famosa” cultura do cancelamento, que tem rendido alguns “assassinatos virtuais”, que para várias vítimas, têm causado forte abalo em suas vidas. No cancelamento, por exemplo, eu me acho no direito de falar e ouvir somente o que quero, e se você, por um acaso, pensa diferente de mim, discorda, “sai fora, eu te excluo, te cancelo, eu te mato”.
Cadê o dito direito à diversidade, pluralidade, que gostam tanto de promulgar? Na prática, está parecendo bem difícil de funcionar. Por quê?
Muito simples, porque assim como Caim, estamos tão preocupados conosco mesmos, com nossos próprios desejo, que se algo não sai conforme o script, detalhe, “o meu script”, eu não só me frustro, mas também me revolto e saio atacando D’us e todo mundo, pois não só busco culpados, como me acho também no direito de aniquilar, excluir, destruir, com minhas palavras ou com “minhas próprias mãos”. Vejamos a seguinte reflexão de Heschel:
Que vergonha para o homem ser o maior milagre da terra e não entendê-lo!
Como é embaraçoso para o homem viver na sombra das grandezas e ignorá-la, ser contemporâneo de Deus e não senti-lo.
A Religião se aprofunda no que o homem faz com sua última vergonha.2
Insensíveis à consciência do sagrado que vive em nós, perdemos a capacidade de ler a mensagem que em nós foi inscrita. Nos desconectamos de nós mesmos, do outro e ainda mais trágico, da eternidade que foi semeada em nós. É no encontro com o outro que eu tenho a possibilidade de ser construído, desenvolvido, confrontado, santificado, ou, exatamente o contrário.
Tudo depende de mim, somente de mim. Contudo, “isso não vou admitir! A culpa é do outro (da sociedade, da família, etc) e eles têm que pagar por isso”. Sim, admitir que tudo depende de mim é deveras pesado, repercute em muita humildade e compromisso o que impõe, evidentemente, em ser responsável também.
Por que vivemos um momento na história da humanidade, em que homens, assim como Caim, andam errantes, com tamanho vazio existencial e diferentes transtornos mentais matando mais que as guerras?
Talvez seja a falta? Falta de compromisso com a vida? Falta de responsabilidade?
Falta de paz?! Paz consigo mesmo? Com o outro? Com os céus?
A paz que nos recusamos a construir através da justiça, da responsabilidade, bondade e dignidade humana assegurada, está tendo que ser paga por meio dos inúmeros tipos de guerras que estamos a combater contra a fome, injustiça social, política, humanitária, contra a falta de um sentido, e tudo isso, só porque o homem esqueceu o seu propósito. O propósito para o qual foi criado: cuidar da vida e de tudo que isso significa e abarca nas suas mais complexas e profundas vicissitudes.