A solenidade de entrega da Locomotiva Maria Fumaça, realizada na manhã de ontem, 13 de dezembro, na Plataforma da Maria Fumaça, no bairro Triângulo, em Carlos Barbosa, pode ter dado capítulo final a uma ferrenha disputa ferroviária que se arrastava por mais de uma década. De um lado, a Associação de Moradores do bairro Ponte Seca, que lutava pela permanência da locomotiva na cidade, e o Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, que reivindicava seu envio para Porto Alegre.

Conhecida como Maria Fumaça pelos barbosenses e como Trenzinho da Tristeza pelos porto-alegrenses, a centenária locomotiva alemã Krauss, modelo 207, que se deteriorava sobre as ações do tempo desde 2008, na rua Irmã Teofânia, atrás da capela do bairro Triângulo, em Carlos Barbosa, já esteve muito perto de voltar à capital gaúcha, onde deveria ser instalada em uma praça do bairro Tristeza. Após anos de esforços da Associação dos Moradores da Ponte Seca e com a consolidação de parceria-público privada (PPP) entre a municipalidade e as empresas Giordani e Tramontina, no entanto, a carcaça foi enfim restaurada e instalada na praça central de Carlos Barbosa, antes que o tempo pudesse apagar seus últimos traços.


Após a cerimônia de inauguração do monumento, que contou com a presença de dezenas de pessoas, entre imprensa, população e autoridades convidadas de Carlos Barbosa e da vizinha Bento Gonçalves, a secretária municipal do Turismo, Jeneci Mocellin, destacou o simbolismo da locomotiva, inaugurada ao lado da torre de entrada. “A Maria Fumaça é o elemento mais significativo de nosso município e acreditamos que por meio dela vamos projetar ainda mais o nome da cidade”, resume.


No mesmo viés, o prefeito, Evandro Zibetti (MDB), também valorizou a importância de homenagear a ferrovia enquanto símbolo histórico de Carlos Barbosa. “Por uma série de contratempos, a locomotiva estava abandonada desde 2008. Assim que assumimos, tínhamos por meta revitalizá-la, pois mais que um ponto turístico, é parte de nossa história. Literalmente, Carlos Barbosa cresceu junto aos trilhos”, sublinha. Zibetti adiantou, ainda, que o próximo passo será restaurar os dois vagões que serão instalados no mesmo local. No momento, o projeto, mais custoso do que o da Krauss, está esperando aprovação de Brasília, para que a Prefeitura seja autorizada a buscar os recursos para sua restauração.

Beto da Fré, Marisa Gaspari Zanatta, Dayan Santarosa, Enio Grolli, Evandro Zibetti, Clóvis Tramontina, Leonel Giordani (foto: Guilherme Kalsing)

Monumento ferroviário barbosense

A um ano de completar o centenário da instalação da Estação Santa Luzia e da chegada dos trilhos a Carlos Barbosa, até então meramente conhecida como o “povoado número 35 da estrada Buarque de Macedo”, em 17 de abril de 2008, por meio dos esforços do então prefeito Irani Chies (PP), um caminhão trazia, desde o município de Arroio dos Ratos, uma pequena Maria Fumaça e dois vagões. Doados pelo Museu do Carvão, a locomotiva Krauss de 1909, que pertenceu a ferrovia municipal de Porto Alegre, e os carros que eram de propriedade da América Logística RS, deveriam ser restaurados e instalados próximos à estação, na entrada da cidade, como monumentos ao progresso trazido pela malha ferroviária. A ideia, porém, não foi comprada pela gestão seguinte, de Fernando Xavier da Silva (PDT) e, tanto os vagões quanto a locomotiva padeceriam por mais de uma década no Bairro Triângulo onde, alvos do tempo e de vandalismo, foram quase totalmente perdidos.


Em 2017, a carcaça, que já havia sido oferecida de volta ao Museu do Carvão — o qual se negou a recebê-la —, esteve prestes a ser devolvida para seu lugar de origem, o bairro da Tristeza, em Porto Alegre, que havia demonstrado interesse em seu retorno. Com o apoio de vereadores, a mobilização promovida pela Associação de Moradores do Bairro Ponte Seca, no entanto, barrou o Projeto de Lei Ordinária, mantendo o que restava da Maria Fumaça e da estrutura dos vagões, em Carlos Barbosa, conforme conta o então presidente da entidade, Ari Heck. “Quando soubemos que ela (a Maria Fumaça) poderia ser doada ao Tristeza, começamos o abaixo-assinado junto à população. O projeto seria votado na sessão seguinte e, apesar do pouco tempo, conseguimos mais de 3 mil assinaturas”, lembra.

“A rede ferroviária tem um significado muito importante para Barbosa. Assim que chegou aqui, foram se multiplicando os comércios e estabelecimentos ao longo dos trilhos. É um patrimônio histórico e cultural que não podia ser desprezado como foi. e Por isso nos mobilizamos”, Ari Heck


Com a permanência, no entanto, ainda faltava quem assumisse os custos e o trabalho de restauro, que seria enfim bancado por meio de PPP. Com sentimento de dever cumprido, Heck, hoje vice-presidente da associação, não esconde a alegria de ver o monumento entregue à comunidade barbosense, e apesar de entender a ligação da locomotiva com o Tristeza, acredita que a história terá maior visibilidade agora. “A Maria Fumaça faz parte do patrimônio nacional, não é nem do Ponte Seca e nem do Tristeza. Colocá-la na entrada de nossa cidade, em uma rodovia tão movimentada, que corta o Rio Grande do Sul, tem um destino melhor que deixá-la estacionada e escondida no sul de Porto Alegre. O gaúcho que passar por aqui vai lembrar que aquela foi a última locomotiva de passageiros a circular no estado”, exclama.

O lamento do Tristeza

Enquanto para os barbosenses a entrega da Maria Fumaça é celebrada como monumento ao progresso trazido pelos trilhos à cidade; há 100 km dali, entre os porto-alegrenses, sobretudo os da Zona Sul, a percepção é de que a capital gaúcha perde uma das páginas mais importantes da sua história.

Afinal, conforme conta o arquiteto, André Huyer, em sua obra “A Ferrovia do Riacho: do Sanitarismo a Modernização de Porto Alegre”, que conta a história da extinta ferrovia municipal porto-alegrense, a locomotiva instalada em Carlos Barbosa foi uma das primeiras máquinas a vapor a operar na Capital Gaúcha.

Segundo conta Huyer, a Ferrovia do Riacho, que passou a funcionar em 1899 com a finalidade de transportar dejetos domésticos os quais, em um tempo onde ainda não existia sistema de esgoto, eram armazenados em tonéis e despejados longe do centro da cidade, na Ponta do Melo, logo também passou a operar como transporte de passageiros do Centro para o Bairro Tristeza, até então um quase intocado recanto de veraneio. Em 1909, para aportar a demanda, a municipalidade que já contava com duas locomotivas alemãs, comprou seu terceiro trem, a Krauss “Porto Alegre”, hoje exposta em Carlos Barbosa.

Estação da Tristeza, década de 1920 (Foto: arquivo pessoal de André Huyer)

Com o fim da ferrovia, em 1936, a locomotiva foi repassada para a Viação Férrea do Estado. Na década de 1960, por iniciativa do Jornalista Alberto André, a peça voltaria à capital gaúcha para ser exposta no Parque Redenção. “Ela ficou bem na frente da Faculdade de Medicina. A cerca que a circundava foi retirada para as crianças poderem brincar nela, mas isso permitiu que a vandalizassem. Na década de 1980, foi então levada ao Museu do Carvão. Uma vez que faltaram recursos, ela foi repassada para Carlos Barbosa, que pretendia revitalizá-la”, conta.

“Seria um marco colocar a Krauss na praça, com uma placa, e falar para as crianças que o bisavô delas andava nela, que a família subia =nele para ir à praia. Conheço pessoas que pegavam o trem e que estavam muito felizes de tê-lo de volta. Infelizmente, é um resgate que não teremos mais. É uma memória que irá se perder”, Jacqueline Custódio

Diante do abandono da carcaça em Carlos Barbosa, a locomotiva quase voltou a Porto Alegre outra vez, em 2017. “O prefeito de Barbosa dizia que não queria a locomotiva, mas nunca cooperou em liberar, jamais assinou o documento de liberação. Na época, a secretaria de Obras e a do Meio Ambiente chegaram a fazer um projeto e estabelecer um local na praça da Tristeza. Disseram que só precisava que o município da Serra colocasse as peças em cima do caminhão, o que nunca aconteceu”, destaca. Devido à intenção do bairro porto-alegrense em restaurar a locomotiva, Huyer lamenta a decisão de mantê-la na Serra Gaúcha. “Fizeram uma meia sola, só pintura, dizendo que reformaram. Não tem sentido um bem de Porto Alegre estar em Carlos Barbosa, isso é contra todos os princípios de Patrimônio Cultural”, protesta.

Atual presidente do Centro Comunitário de Desenvolvimento da Tristeza, Pedra Redonda, Vilas Conceição e Assunção (CCD) e moradora do bairro Tristeza há mais de 50 anos, Jacqueline Custódio, também lamenta a destinação da locomotiva que, segundo ela, foi essencial para o desenvolvimento do Tristeza e arredores. “Antes a Zona Sul era quase inacessível, então o trem transformou ela em um lugar de veraneio, que ficou famoso pela natureza e pelo Guaíba”, pontua.

A história da Locomotiva Krauss 207 “Porto Alegre”

1899: é inaugurada a Ferrovia do Riacho com o objetivo de transportar material sanitário para longe do centro de Porto Alegre. Logo começa a funcionar também com transporte de passageiros. É aberta uma linha até o bairro Tristeza.

1909: com o aumento do número de passageiros, a municipalidade compra sua terceira locomotiva Krauss da Alemanha, a qual batiza de “Porto Alegre”.

1936: com o fim da atividade da Ferrovia do Riacho, a locomotiva foi repassada para a Viação Férrea do Estado. Sua destinação é uma incógnita.

1960: já fora de atividade, a locomotiva que passa ser conhecida como “Trenzinho da Tristeza” é resgatada e exposta no Parque Redenção. Após atos de vandalismo, é retirada da praça. A máquina é enviada e exposta no Parque Saint’Hilaire, em Viamão.

1986: a pedido da então diretora do Museu Estadual do Carvão, Maria Luiza Flores Chaves Barcellos, a locomotiva foi transferida para o Museu Estadual do Carvão, no município de Arroio dos Ratos. Junto com a Locomotiva, foram dois vagões de passageiros. No museu, a máquina é usada como peça de exposição e, por um tempo, como biblioteca. Com falta de repasses, a estrutura começa a deteriorar.

2008: a locomotiva e os dois vagões são doados para Carlos Barbosa que pretende restaurá-los e colocá-los como monumentos na entrada da cidade. Após a troca de gestão, porém, ela acaba abandonada no bairro Triângulo. Diante da situação, associações de moradores de Porto Alegre e de Carlos Barbosa, disputam a carcaça.

2019: a revitalização da locomotiva é oficializada, e ela é instalada na entrada de Carlos Barbosa.

Cartão Postal da Estação da Tristeza, 1906 (Foto: arquivo pessoal de André Huyer)
Cartão Postal do Museu do Carvão, 1991 (Foto: Divulgação, Museu do Carvão)
Locomotiva a caminho de Carlos Barbosa, 2008 (Foto: arquivo pessoal de André Huyer)
Maria fumaça abandonada em Carlos Barbosa, 2017 (Foto: Ari Heck)
Maria Fumaça. 13 de dezembro de 2019 (Foto: Guilherme Kalsing)