Embora o colecionismo de moedas tenha raízes antigas, remontando à Grécia e Roma Antigas, a dedicação específica às cédulas é um fenômeno mais recente, intrinsecamente ligado à própria invenção e disseminação do papel-moeda
Acredita-se que os primeiros colecionadores de cédulas tenham surgido na China, onde o papel-moeda teve sua origem no século VII d.C. Sob a Dinastia Tang, e mais notadamente durante a Dinastia Song (960-1279), o uso de notas de papel se tornou difundido, e com ele, o interesse em guardar exemplares incomuns ou historicamente significativos. No entanto, o conceito de colecionismo organizado, como o conhecemos hoje, floresceu na Europa a partir do século XVII, quando os bancos começaram a emitir notas de forma mais sistemática.
Histórico

Identificar o “primeiro colecionador” em um sentido moderno é uma tarefa complexa, pois o hobby se desenvolveu gradualmente. Muitos historiadores da numismática apontam para figuras europeias que, no período do Iluminismo, começaram a organizar e catalogar suas coleções de curiosidades, que frequentemente incluíam moedas e, eventualmente, as recém-surgidas cédulas. Grandes nomes do colecionismo de moedas do século XVIII e XIX, como o inglês William Hunter, médico e colecionador notável, ou o alemão Wilhelm von Humboldt, teriam em suas vastas coleções alguns exemplares de papel-moeda, embora o foco principal ainda estivesse nas moedas metálicas. A emergência da notafilia (o termo específico para o colecionismo de cédulas) como disciplina autônoma é mais um desenvolvimento do século XX, impulsionada pela crescente variedade e complexidade das emissões de papel-moeda globalmente.
Desvendando peculiaridades

Para o notafilista, cada cédula conta uma história, e essa narrativa é enriquecida por um vocabulário próprio que descreve suas características e, por vezes, suas imperfeições. Conhecer esses termos é fundamental para compreender a fundo o valor e a singularidade de cada exemplar:
Flor de Estampa (FE): Este é o estado de conservação mais cobiçado. Uma cédula “Flor de Estampa” é aquela que nunca circulou, apresentando-se em condições impecáveis, sem dobras, manchas, vincos ou qualquer sinal de manuseio. É como se tivesse acabado de sair da casa da moeda.

MBC (Muito Bem Conservada), BC (Bem Conservada), RC (Regularmente Conservada), UM (Muito Gasta): essas são classificações que denotam os diferentes graus de desgaste de uma cédula. Uma cédula MBC, por exemplo, pode ter leves sinais de manuseio, mas mantém a nitidez dos detalhes, enquanto uma UM estará bastante desgastada, com dobras acentuadas, rasgos e sujeira.

Cédulas com erros de cunhagem (ou de impressão): São as joias raras do colecionismo. Erros de cunhagem (ou, mais precisamente, de impressão, no caso das cédulas) ocorrem quando há falhas no processo de fabricação na casa da moeda. Podem ser desde pequenos deslizes, como falhas de corte ou de registro (quando as cores não se alinham perfeitamente), até erros mais drásticos, como a ausência de uma cor, impressões invertidas, ou numeração duplicada ou ausente. Tais exemplares são extremamente valorizados por sua raridade e pela singularidade que representam no controle de qualidade.
Carimbo seco: Não é exatamente um erro, mas uma característica que pode aumentar o valor de uma cédula. Um carimbo seco é uma marca em relevo, sem tinta, aplicada em uma cédula após sua impressão. Pode indicar uma série especial, um tipo de série, ou até mesmo um erro de número de série.
Chancelas: Referem-se às assinaturas impressas nas cédulas, geralmente de autoridades do banco central ou do governo. As chancelas podem mudar ao longo do tempo, e diferentes combinações de chancelas podem indicar diferentes séries ou períodos de emissão, tornando certas combinações mais raras.
Séries especiais ou experimentais: Algumas cédulas são emitidas em séries limitadas ou com propósitos experimentais antes da produção em massa. Essas séries podem apresentar características únicas, como diferentes materiais, desenhos ou numeração, tornando-as altamente desejáveis para colecionadores.
Numeração Repetida, Capicua ou Radar: A numeração da cédula pode conferir-lhe um valor adicional. Números repetidos (ex: 1111111) ou capicua (números que podem ser lidos de trás para frente, como 123321) são procurados. O “radar” é um tipo de capicua onde os números são simétricos (ex: 121121).
Colecionadores em Bento Gonçalves

Em um mundo cada vez mais digital, onde transações monetárias se desmaterializam em fluxos de dados, a paixão por um hobby analógico e palpável resiste. Jacir Costa, um dedicado colecionador de Bento Gonçalves, mantém viva a chama da notafilia, acumulando cédulas, moedas e selos que contam a história econômica e social do Brasil e de outras nações. Sua jornada, que começou há mais de seis décadas, é um testemunho da persistência e do fascínio por esses pedaços de papel e metal que transcendem seu valor nominal.
Início
A centelha para essa paixão acendeu-se em um episódio pitoresco e inusitado da infância de Jacir, em sua terra natal, Santa Catarina. “Lá o meu pai negociava cavalos para os ciganos. Isso há 60 anos atrás. Em meio a uma dessas negociações,ele fez um negócio muito bom. E o cigano me deu de presente uma cédula de um cruzeiro e um cavalo”, conta com carinho. O cavalo, como ele mesmo admite, ficou em segundo plano, mas a cédula de um cruzeiro, datada de 1942, marcou o início de uma coleção que hoje impressiona pela sua completude e raridade.
A coleção de Jacir não é apenas um amontoado de objetos antigos; ela é um arquivo vivo de momentos históricos e econômicos. Ele recorda com clareza a transição do Cruzeiro Real para o Real em 1994, um período de grande instabilidade inflacionária. “Uma cédula de 50 mil cruzeiros reais. Aquela cédula eu recebi o salário. E aí houve a conversão. Ela perdeu o valor porque ia entrar o real”, explica. A desvalorização era brutal, uma cédula de 50 mil Cruzeiros Reais se tornava equivalente a apenas 28 reais. Em um movimento de ousadia e intuição, Jacir decidiu não trocar uma dessas cédulas. “Eu arrisquei e segurei aquela que está no quadro. A última cédula, a Baiana, como é chamada. Eu guardei desde 1994 ela.” Essa cédula, hoje em estado de “flor de estampa” (perfeita conservação), é uma das joias de sua coleção, com valor estimado acima de mil reais no mercado numismático atual. “Consegui guardar duas”, revela, orgulhoso.
A coleção
O que atrai Jacir para o colecionismo vai além do valor monetário ou da mera acumulação. É a paixão por aquilo que é colecionável. “Sendo colecionável, eu gosto”, afirma, de forma direta e concisa. Sua busca por novas peças é estratégica, focada na melhoria da qualidade de sua coleção. Ele participa ativamente de grupos de troca, onde aprimora suas cédulas mais antigas, buscando exemplares mais novos e bem conservados, ou aqueles com autógrafos de personalidades que agregam valor. Contudo, essa busca exige discernimento. “Essa semana, tinha um cara de São Paulo que ele vende, e estava vendendo umas cédulas de réis, tudo acima de dois mil reais. Uma cédula, então não é fácil para acompanhar”, pondera.
Além das cédulas comuns, Jacir também nutre um interesse particular por exemplares com erros de impressão, conhecidos no meio como “cédulas com defeito de fabricação”. “É muito procurada”, enfatiza. Ele cita um exemplo em sua própria coleção, uma cédula com a lista de impressão saindo dos dois lados, um detalhe que apenas um olho treinado de colecionador seria capaz de identificar. “Para conseguir uma cédula, a pessoa que não tem a coleção, ou pega uma moeda, uma cédula, não vai se dar conta desses detalhes. E é aí que a cédula vai ter o seu valor”, explica.

A dedicação de Jacir em completar sua coleção o levou a empreender viagens em busca de peças específicas. Ele recorda a procura por uma cédula de 200 cruzeiros, há cerca de sete anos, que o levou ao Parque da Redenção em Porto Alegre. “Era a última cédula que faltava para completar a coleção”, explica. Essa peça era particularmente difícil de encontrar em bom estado de conservação, e os poucos colecionadores que a possuíam não se desfaziam dela, ou exigiam valores exorbitantes. “Ele me pediu R$1250, sete anos atrás”, revela, sobre um dos encontros. “Completei a coleção ao adquirir um lote de um leilão com um valor bem mais acessível. O vendedor abriu as cédulas em leque, e bem escondida, consegui ver que a cédula que me faltava estava naquele lote. Faltando alguns segundos para encerrar o leilão fiz a oferta final e arrematei as cédulas”, conta com entusiasmo.
Com a coleção principal já completa, Jacir agora se dedica menos à caça por novas aquisições, a não ser que surjam as chamadas “barbadas”, oportunidades de compra a preços muito vantajosos. Sua interação com o mercado é predominantemente online, por meio de grupos de cédulas. Seu foco atual é a venda de duplicatas ou de peças adquiridas por oportunidade, mas o tempo dedicado a isso é limitado devido ao trabalho. “Como eu não tenho mais necessidade de cédulas, para completar a coleção, então faço só venda, porque o trabalho me toma um tempo considerável”, explica.
Futuro dos colecionadores

Apesar de sua paixão, Jacir observa com certa preocupação o declínio do interesse das novas gerações pelo colecionismo. Embora alguns pais procurem-no para iniciar seus filhos no hobby, o envolvimento é menor do que antigamente. Ele, inclusive, demonstra generosidade ao compartilhar seu conhecimento e peças com aspirantes a colecionadores, como um jovem que é “fanático pelas cédulas” e a quem presenteou com um livro especializado e um maço de cédulas para iniciar sua própria coleção.
Em sua juventude, Jacir participou ativamente de grupos de troca e venda, que se encontravam presencialmente nos Correios ou na casa de membros. Nessas reuniões, não apenas cédulas, mas também moedas e selos eram negociados. “A gente se encontrava com o grupo no correio ou na casa de um dos participantes. Aqui mesmo foi feita a reunião para a troca”, relembra.
Para os jovens que desejam embarcar no mundo da numismática, Jacir tem um conselho direto e sincero: “Tem que se dedicar, porque é difícil para conseguir. É uma coleção cara”, afirma. Ele sugere que, para começar, é importante buscar cédulas com colecionadores experientes, que muitas vezes possuem duplicatas e podem oferecer peças para dar o pontapé inicial.
A coleção de Jacir Costa é mais do que um acervo; é um elo com o passado, uma paixão que transcende o tempo e as transformações da sociedade. Em suas mãos, cada cédula, cada moeda e cada selo se tornam pequenos fragmentos de história, prontos para serem desvendados e apreciados.