Foi bem antes da pandemia. O rapaz, na época desempregado, acabara de levantar da cama e zanzava pela casa só de samba-canção. Ia até a cozinha preparar seu leitinho morno com Nescau, quando despertou o interfone:
-Quem é? – perguntou bocejando.
-Jesus Cristo! – foi a resposta lá do outro lado do portão.
“Opa”! – pensou o cara, enquanto espiava, através de uma fresta da persiana. Como era educado e gostava de diversão gratuita, destravou a porta.
-Entra, meu chapa! Senta. E então, o senhor é representante de quem?
-Na verdade, represento… ELE – disse, apontando para cima. E gostaria de mostrar a você que ainda está em tempo de conquistar seu pedacinho de céu…
O rapaz resolveu entrar na onda para ver no que ia dar.
-É cedo ainda. Tô bem aqui, na Terra.
-Acontece que você só está de passagem… Um dia, terá de fazer a transição. E o paraíso dispõe de apenas alguns milhões de hectares, a maioria já adquirida. Se você não aproveitar esta oportunidade, vai ter de aguardar na fila.
Então não era um vendedor de Bíblias! Aquilo estava ficando cada vez mais bizarro.
-Pórca miséria! – resmungou em dialeto vêneto – Burocracia também no céu?
-Com certeza! E enquanto o pessoal já instalado não evoluir para poder alcançar novo plano, vai faltar espaço…
Nesse momento, a mulher do moço apareceu com a cuia de chimarrão, numa bela maneira de entrar na conversa.
-O que foi, amor? – perguntou ao marido, já lhe oferecendo a cuia.
-Terreno no céu, benzinho. Acho que precisamos de três: um pra mim, um pra ti e outro pro Raul Joaquim (o filho recém-nascido).
-Como assim?– questionou ela, indignada – não vamos ficar juntos?
-Claro que não! Lembra o que o padre disse? “Até que a morte vos separe” – esclareceu ele.
-Gente, gente! O importante agora é garantir uma vaga – argumentou o interlocutor do Lá de Cima – É só fecharmos o contrato e já levam a escritura. Certo?
Mas os dois continuavam discutindo feio, com ameaças e tudo, sem se importarem com o “corretor celeste”, que, assustado, acabou picando a mula.
-O cara já foi – avisou o marido.
-Ufa! Por pouco não te dou um safanão. Um terreno só pra ti?! Que belo traidor tu me saiu, né, amor?! – disse a esposa se aconchegando no abraço dele.