O rio de minha infância anda esquelético. Suas águas rasas revelaram um mar de pedras, inclusive deixando para trás a rocha na qual foi talhada a marca da estiagem de 1943. Nem de longe lembra o gigante que espuma e brame nos tempos de cheia. No lugar da fúria selvagem, só quietude e mansidão.
Vendo as imagens recentes do rio, outras imagens começaram a sair de um lockdown de décadas. E junto, as histórias protagonizadas por ele, algumas, hilárias, outras, nem tanto.
A narrativa de hoje se passa nos anos sessenta, por ocasião do retorno às aulas em colégio interno:
Cinco horas de uma manhã molhada e triste – chovera torrencialmente a noite inteira. Ao primeiro canto dos galos, me tiraram da cama. Com o coração doendo de tristeza, peguei a maleta rumo ao ponto de ônibus, que era no outro lado do rio, em frente a um capitel. O pinga-pinga costumava passar às seis e quarenta e percorrer os vinte e cinco quilômetros até a cidade, em quase três horas de enjoo.
Para chegar até o capitel, era preciso caminhar um quilômetro, atravessar o rio de caíque onde não raro entrava água, escalar uma rampa íngreme e se aventurar numa estradinha em meio a uma plantação de batatas. O ritual se completava com a lavagem dos pés e a troca de calçado – os chinelos embarrados ficavam escondidos sob o manto de Maria. Um cheiro intenso de gasolina e óleo queimado anunciava a chegada do expresso muçunense.
Mas não naquela manhã molhada e triste. Acontece que havia uma ponte no meio do caminho. Nada assim grande. Quatro metros de tábuas sobre um olho d’água tão diminuto que, normalmente, ficava com a pálpebra fechada. Só que durante a noite, ele recebera tanta água que crescera e engordara desmedidamente.
Como andávamos em marcha rápida – que perder o ônibus significava perder aula e isso era coisa inconcebível – só percebemos que a ponte havia sido engolida, em cima do lance. Por um triz, não fomos também engolidos.
Recuperados do susto, retornamos à nossa casa. Já era dia claro, e então pudemos ver o Rio Taquari fora do leito, espumando e bramindo e chegando cada vez mais perto. E não havia nada que pudéssemos fazer, a não ser rezar.
É uma sensação muito doida sentir-se aprisionada a um espaço geográfico, com um monstro gigantesco à espreita. Como agora nesta pandemia. A diferença está só no tamanho da criatura. Mas isso não conforta, porque os inimigos invisíveis são os mais perigosos.