Lembrando as antigas cidades muradas da antiguidade, em um dos pontos mais altos do Bairro Aparecida, a cerca de 6 km da área central de Bento Gonçalves, se destaca no horizonte para quem cruza a BR 470 rumo a Veranópolis, um gigante de concreto inaugurado em 2013, após dois anos de trabalho e esforço conjunto de 150 colaboradores: o Don Inácio I.
Ao todo, o conjunto habitacional, conta com 15 torres perfiladas, divididas em três grupos, cada qual com cinco andares e 60 apartamentos, abrigando 300 famílias e cerca de 1.000 moradores. Uma população superior a de bairros inteiros da Capital do Vinho, como o Pomarosa e o Planalto (segundo demográfico de 2010), e maior que a de Serra da Saudade, em Minas Gerais, e Borá, em São Paulo (de acordo com estimativa de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE), os dois menores municípios brasileiros.
Na última semana, a reportagem do Semanário passou uma tarde junto aos moradores, para compreender como é o dia a dia, os desafios administrativos e estruturais, bem como as estratégias para manter a harmonia e bom convívio entre a vizinhança em um condomínio desse porte. Um bairro dentro de um bairro, uma cidade dentro de uma cidade.
O poder da palavra
Diálogo. Base de qualquer sociedade, como não poderia deixar de ser, essa também é a palavra-chave para o bom funcionamento e entendimento de um condomínio, onde inúmeras famílias ocupam os mesmos espaços e têm seus lares literalmente grudados abaixo, acima, e por ambos os lados, por outras famílias. Formado em Publicidade e Propaganda, o síndico do Don Inácio I, André Luiz Vasques, 31 anos, valeu-se dessa linha de pensamento, assim como do conhecimento proporcionado em sua graduação, para fazer da comunicação mais que uma ferramenta de aproximação e socialização, mas um meio de promover a transformação.
Se, ao assumir a sindicância, o residencial não contava nem ao menos com um e-mail próprio, hoje possui conta ativa nas principais redes sociais, facilitando não só a divulgação das notícias relevantes ao condomínio, mas criando também um canal direto de comunicação entre os moradores e os administradores. Além das tradicionais reuniões e assembleias de condomínio, agora tudo é acompanhado e compartilhado por meio de vídeos no Youtube, grupos de WhatsApp, e na movimentada página do Facebook, onde, mais de uma vez as publicações virilizaram, ultrapassando os muros do próprio residencial.
Em certa ocasião, após o pedido de pavimentação asfáltica feito pelos moradores da rua ser atendido apenas pela metade, Vasques foi à rua para captar a indignação geral dos vizinhos. Com mais de 180 compartilhamentos e mais de cinco mil envolvimentos na publicação, o vídeo alcançou mais de 13 mil pessoas, chegando, inclusive, ao Plenário da Câmara, ao ser citado em sessão pro três vereadores.
Outro bom exemplo foi a publicação de divulgação das então recém-instaladas tags de acesso, na época um sistema ainda pouco conhecido na cidade. “Cada vez que tínhamos que trocar o miolo da porta de entrada de alguma torre, tinha que fazer 60 chaves novas. Então essa foi uma grande solução da administradora. Hoje, pode parecer bem comum, mas foi com o nosso vídeo que isso se espalhou e vários outros prédios do município passaram a aderir”, conta orgulhoso.
Para além dos vídeos, lives, e comunicados encaminhados nas redes sociais, o conteúdo também é compartilhado pelos grupos de WhatsApp. São 16 no total, sendo um para cada torre, e um de “classificados”. Embora tenha mais de 1.000 contatos em seu celular e, por conseguinte, centenas de notificações de mensagens por dia, Vasques não reserva um horário específico para responder todo mundo. Esforça-se, entretanto, para retornar o mais rápido possível. “Claro que durante a noite estou dormindo, a não ser que seja um problema grave. Já aconteceu de um vendaval destelhar uma torre e eu tive que levantar de madrugada para, com ajuda dos moradores, retirar a água. Mas, de modo geral, o ‘x da questão’ é retornar o mais rápido possível. Quando somos transparentes com os dados que fornecemos e resolvemos os problemas de forma ágil, eles não se acumulam”, sublinha.
Consciência premiada
Se o primeiro passo para estruturar uma sociedade passa pela comunicação, para mantê-la harmônica é preciso estabelecer princípios e objetivos em comuns. Nesse sentido, a “grande família Don Inácio I”, como alguns moradores autodefinem, tem como exemplo maior os esforços feitos em prol da conscientização ambiental. O residencial que chegou a receber uma notificação pelo descuido dos moradores com o descarte do lixo, mais tarde veria suas iniciativas de reciclagem se tornar notícia e exemplo para outros condomínios.
Antes dos atuais contêineres (fabricados com tubos de pasta de dente) para lixo orgânico, e dos coletores coloridos inspirados nos que existem no Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, o condomínio possuía grandes lixeiras metálicas, onde o lixo se acumulava e o mau odor era um problema constante. “Na época, os moradores misturavam tudo. Nosso lixo era o pior da cidade, o espaço era todo sujo. Os coletores levavam mais de uma hora para fazer a coleta aqui”, recorda Vasques.
Uma vez apresentada à notificação em assembleia, os condôminos entraram em acordo para a compra dos novos coletores. Paralelo a isso, novamente valendo-se de seu conhecimento com redes sociais, o síndico criou uma campanha de propaganda com vídeos e cards, onde algumas das crianças residentes do condomínio explicaram a importância da correta destinação do lixo. “Começamos separando alumínio, papelão, garrafa pet e tetra pak, os mais comuns. E hoje, também reciclamos o metal, material eletrônico, tampinhas, as quais doamos para ongs, e óleo de cozinha, que trocamos com uma empresa por produto de limpeza para o residencial”, conta.
Além de preservar o meio ambiente, a iniciativa acabou gerando benefícios diretos aos moradores, uma vez que o dinheiro arrecadado com reciclagem é utilizado para melhorias estruturais. Uma das mais importantes foi a instalação de um sistema de iluminação na calçada de 170 m que fica em frente do condomínio. “Era bem escuro e passava insegurança. Então, com o dinheiro da reciclagem compramos todas as luminárias e a fiação, e pagamos a mão de obra. Não saiu nenhum centavo do bolso de ninguém”, destaca.
“Arrecadamos cerca de R$ 400 mensalmente. Era dinheiro jogado no lixo, literalmente. Hoje resgatamos, e além de ajudar ongs e o meio ambiente, conseguimos conscientizar as pessoas, e esse era o maior objetivo” , André Vasques
Um centro comercial
Encanador, eletricista, instalador de antena, manicure, confeiteiro, padeiro, motorista de aplicativo, cozinheiro, diarista, personal trainer, corretor de imóveis, pedreiro, advogado, artesão. Assim como em uma cidade ou um bairro de comércio, o Don Inácio I tem dentro de seus limites territoriais, profissionais das mais distintas áreas. Foi ao perceber essa realidade, que além dos 15 grupos de WhatsApp, foi criado um grupo específico para a divulgação de serviços, doações, vendas e trocas entre os condôminos. Mais que evitar deslocamentos, uma vez que as pessoas podem comprar ou solicitar uma gama distinta de serviços batendo na porta do vizinho ao lado, a iniciativa acabou gerando uma importante fonte de renda para muitos moradores, como a doceira, Giovanna Queiroz, 25 anos, que iniciou seu negócio vendendo bolos de pote, exclusivamente, para os vizinhos.
Mato-grossense de Barra das Garças, município de 60 mil habitantes, na divisa com Góias, ela veio para Bento Gonçalves, junto com o noivo Thiago Henrique S. M. Simmonds, 31 anos, com a intenção de começar uma nova vida em um lugar completamente diferente da calorosa cidade do Mato Grosso, onde vivia desde o nascimento. Uma vez que nunca esteve na Serra Gaúcha antes, a escolha por Bento Gonçalves foi simplesmente por ter gostado de fotos que viu na internet. Da mesma forma, fez a escolha pelo Don Inácio I. Viu a publicação do apartamento para locar no Facebook e pediu para uma amiga visitar o local e reservá-lo.
Se em 2016, ao chegar a Capital do Vinho, ela trabalhou por um ano no comércio, ao sair do emprego, resolveu buscar algo novo, uma vez que já atuava com vendas no Mato Grosso. Foi assim que certo dia teve a ideia de fazer alguns bolos de pote como teste. Feita a primeira remessa, os anunciou no grupo de WhatsApp e, para sua surpresa, vendeu todos no mesmo dia. “Foi o sinal de que daria certo. Então continuei fazendo e, dois anos depois, sigo anunciando diariamente no grupo”, comenta.
Junto à ampliação do cardápio e a fidelização da clientela, seus doces passaram a ganhar o paladar de clientes de fora dos muros do Don Inácio I. Hoje, com sua moto, faz entregas em toda a cidade. “Meu negócio começou aqui dentro e só expandiu. Agora levo meus produtos para empresas, residências, e também eventos, mas sigo vendendo aqui”, diz.
Além dela, o esposo, que trabalha como motorista de aplicativo, é outro que tem renda garantida com os vizinhos. “Às vezes, falo com o Thiago pelo telefone, mas já cheguei mesmo a bater na porta para pedir uma corrida. Quando tenho que sair cedo, normalmente nenhum uber está disponível, mas o vizinho sempre me salva”, comenta a contadora, Renata Schuvartz, 42 anos, que também é uma das maiores apreciadores dos doces da Giovanna.
“Já precisei de eletricista, diarista, uber. Já comprei pão, bolo. Muitas vezes evitei me deslocar, pois, praticamente, tudo que preciso tenho aqui. E o melhor: sem horário de atendimento. Se me dá uma vontade de bolo de noite, só mando uma mensagem e pronto”, comenta Renata
Harmonia entre mil vizinhos
Mesmo em meio a duas fileiras de prédios de cinco andares perfilados na esquerda e na direita, ao fechar os olhos, é possível se imaginar em um cenário remoto, tamanho é o silêncio vivenciado no residencial. Embora seja horário de almoço, momento em que boa parte das famílias está em casa, nenhum som ecoa pelas centenas de janelas abertas (e são 1200 delas). Ao concentrar-se, o som que se escuta é do vento soprando nas árvores que compõe o bosque do residencial.
Por mais que o síndico admita que a hora mais agitada seja o fim de tarde, devido à chegada das vans escolares, como que se fadada à tranquilidade, nem mesmo a sintonia enérgica das vozes infantis é capaz de romper a harmonia do residencial, contrariando todas as expectativas geradas quando pensamos em um condomínio desse porte. Não é de se estranhar, portanto, o “julgamento errôneo”, de Renata, como ela mesma define, ao ver o local pela primeira vez. Embora tenha comprado o apartamento no dia em que foram inauguradas as vendas na planta, em 2011, ela só se mudaria em 2015, dois anos após a chegada dos primeiros moradores.
Segundo relata, o marido, Milton da Silva, 46 anos, havia visto o banner na imobiliária, e lhe ligou, pedindo para que, antes de voltar para casa, ela passasse e efetuasse a compra. Foi só dias depois, após ter todos os documentos encaminhados, que visitaram a futura morada. Se a distância já havia parecido mau sinal, uma vez que viviam no Centro, ao ver o local pela primeira vez, o choque foi ainda maior. “Ao redor só havia mato. Inclinei-me na ponta dos pés para ver por cima do tapume. Vi esse monstro de concreto, e como sabia de problemas que estavam acontecendo em residências semelhantes, disse que não ia vir morar aqui. Peguei a chave e voltei para a casa. Fiquei mais de ano vindo às reuniões, falando com as pessoas, até me convencer a fazer a mudança”, conta.
Hoje, há cinco anos morando ali, diz que jamais se arrependeu de ter se mudado. “É um lugar silencioso, colaborativo. Temos praticamente tudo que precisamos aqui: serviço de saúde, comércio e amigos”, destaca. Perguntada sobre algum ponto negativo, ela que tanto hesitou em viver ali, demora a pensar, mas por fim lembra-se de algo. “A única coisa ruim é que não conseguimos conhecer todo mundo”, responde, entre risos.
Esse sentimento bastante impensado de tranquilidade em um ambiente de densidade demográfica tão alta, também é destacado pelo maître, Dejair Catelan, 42 anos. Conta que, por ter morado a vida toda em uma casa, se mudou para o Don Inácio I, em 2013, justamente para ter a experiência de uma vida em condomínio. Para ele, as regras de boa convivência podem ajudar a manter a paz, mas o que verdadeiramente garante a harmonia é algo bem mais simples e menos pragmático: o respeito mútuo. “Ao optar morar em um residencial, você já não está sozinho como se vivesse em casa, onde tem seu próprio terreno, espaço e regras. Por isso, o essencial, é sempre pensar no coletivo, e acho que todos os condôminos daqui pensam assim”, sublinha.
A cidade não para, a cidade só cresce
Além da reciclagem e das melhorias nas áreas de lazer, como o salão de festas, playground e jogos, e a recente conclusão dos reparos do aquecimento solar, que garantiu uma economia de R$40 mensais na conta de luz, a administração e os condôminos já passaram e seguem passando por diferentes necessidades e conquistas desde que o residencial abriu as portas há sete anos. Em uma das ações bem-sucedidas mais recentes, em parceria com os vizinhos do Don Inácio II, conseguiram, junto à Secretaria Municipal da Saúde, o deslocamento semanal de uma unidade móvel de saúde.
Conforme Vasquez, a situação era uma demanda antiga, uma vez que pelo alto número de moradores nos dois residências, eles não eram atendidos na Unidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) do Aparecida, tendo que se deslocar pelo menos 2 km até a Unidade Básica de Saúde (UBS) do Bairro São Roque. Uma tarefa complicada, sobretudo, para os idosos e gestantes. Já internamente, desafio importante para a saúde financeira do condomínio, a inadimplência é um problema que, ano após ano, é minimizado. Em 2019 houve uma queda de 14% se comparado ao ano anterior.
Atualmente, além de melhorias internas, como a possibilidade de instalar bancos e mesas no bosque interno e um espaço para pets no mesmo local, os moradores pedem ao Poder Público o asfaltamento completo da rua e a ampliação dos horários de ônibus, considerados insuficientes para atender a demanda local. Como uma cidade que cresce a partir de um pequeno povoado, o microcosmo chamado Don Inácio I também segue seu próprio e contínuo caminho de aperfeiçoamento. A calçada foi iluminada, os equipamentos de lazer foram ampliados, o comércio interno, bem como o atendimento a saúde e a consciência ambiental foram fortalecidos. E, como organismo vivo, o condomínio segue crescendo, pulsando vida e comunidade.