Pelo segundo ano consecutivo o Rio Grande do Sul é classificado como o Estado líder em ocorrências de injúria racial, aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado recentemente. Dentro desse contexto, Bento Gonçalves recebe toda semana, cerca de três denúncias desse crime, conforme o delegado titular da 2ª Delegacia de Polícia, Álvaro Becker.
Os números do município refletem um cenário que ocorre em todo Brasil. Em 2017 o país registrou 6.195 casos de injúria racial, enquanto em 2018 foram 7.616 ocorrências, representando alta de 20,6% em relação ao ano anterior. A nível estadual, em 2017 o Rio Grande do Sul também foi o Estado com maior número de todo país, quando revelou 1.1404 casos desse crime. Já em 2018 foram 1.507 ocorrências, tendo alta de 7,3%.
Embora os números chamem atenção, o delegado Becker afirma que, na contramão dos dados nacionais e estaduais, desde 2014, quando a cidade ganhou os holofotes nacionais após um caso de injúria racial, as ocorrências registradas reduziram de aproximadamente cinco semanais, para as atuais três. Em março daquele ano, após um jogo entre os times Esportivo e Veranópolis, o ex-árbitro Mário Chagas foi vítima de ofensas raciais. O caso ganhou repercussão nacional. “Em Bento Gonçalves, por ser uma cidade italiana, existe bastante esse preconceito, mas esse fato simplesmente abriu a visão das pessoas de que existe a possibilidade de o autor ser responsabilizado por uma ofensa dessas, sendo presa ou pagando multa pesada. O fato deixou o alerta sobre esse crime e a partir dali houve uma redução razoável. Foi um marco que veio à tona e o pessoal começou a ter mais cuidado”, comenta Becker.
Se dentro da delegacia o número de ocorrências reduziu, fora dela a situação relatada para a reportagem é outra. Bento Gonçalves não registra um terço do número real de casos de injúria racial que ocorrem na cidade, afirma a Presidente do Conselho dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, Lisiane Pires, mais conhecida como Mãe Lisi. “Temos acesso de pessoas que nos trazem situações, relatos e que não vão para a delegacia registrar porque não querem se expor, têm medo. Não podemos obrigar a fazer o boletim, mas aconselhamos, porque todos têm que procurar essa forma de resolver”, alerta.
Reafirmando esse cenário, o coordenador do Movimento Negro Raízes, Marcus Flávio Dutra Ribeiro, declara que muitas pessoas deixam de registrar ocorrência por acreditar na impunidade desse crime. “A injúria e o racismo são os crimes perfeitos, porque não há punição de fato. Cite alguém que esteja na cadeia por esses crimes? Essa cultura é tão arraigada que as pessoas não vão à delegacia fazer o registro, porque se sentem intimidadas ou porque acham que não vai adiantar, mas se fossem, com certeza o número seria bem mais espantoso do que esses que estão aí apontados”, declara.
Apesar da alta nos casos, Ribeiro afirma que os números não surpreendem. “Lamentamos e sofremos com isso, mas não é tão surpreendente porque já vinha de uma tendência, já haviam apontamentos a respeito disso, então nada mais é do que consequência do que estava vindo”, analisa.
É por meio do Movimento Negro e do Conselho, que Ribeiro e Mãe Lisi enfrentam os desafios de lutar diariamente para combater crimes de injúria racial, racismo e intolerância religiosa. Para isso, frequentam escolas da cidade e região, onde realizam palestras, debates e levantam reflexões à cerca de tudo que envolve a temática. “São situações que não podemos deixar passar, não dá para tolerar mais isso. Não podemos mais ser ofendidos pela etnia, aliás, não podemos ser ofendidos em nada”, afirma Ribeiro.
“A gente tem a reflexão de que lá no dia 13 de maio de 1888 nós fomos libertos da escravidão física, mas fomos atirados na escravidão social que se dá até hoje”
Ribeiro acredita que os crimes raciais também se agravaram devido as posições do novo Governo Federal. “Se potencializaram vozes nessa questão racial, étnica e aquilo que estava calado ou velado hoje estão transparentes, as pessoas se encorajaram a dizer. Foi uma subida aguda desse assunto. Parece que as pessoas se sentem à vontade para se manifestar, marcar posição, dizer que não gostam de negros, de gays, de índios. A matemática é perfeita, os dados estão aí para comprovar”, constata.
Onde os casos ocorrem
De acordo com o delegado, a maioria dos crimes acontecem dentro do ambiente profissional e os ofensores, na grande maioria, são pessoas com faixa etária acima dos 40 anos. “Tem bastantes casos no trabalho, no ambiente doméstico com as pessoas que fazem o trabalho na casa. Também tem muitos casos em clubes sociais, nas escolas, entre jovens, onde é classificado muitas vezes como bullying”, aponta Becker.
Por que isso ainda acontece?
A reportagem conversou com o cientista político e professor da Universidade de Caxias do Sul (UCS), João Ignácio Pires Lucas, para entender porque o Rio Grande do Sul ainda se mantém em primeiro lugar nos crimes raciais e porque tantos casos continuam ocorrendo no município.
De acordo com o Lucas, é importante considerar o fator da colonização italiana, mas não é o único motivo que deve ser levado em conta. “Um elemento que mantem o aumento dessas situações é a própria diversidade em cenários de desigualdade, que são elementos básicos para que esses fenômenos aconteçam, mesmo hoje em dia, em que há toda uma preocupação da legislação, do politicamente correto”, explica.
O cientista político também acredita que o aumento do uso da internet contribui para que esses crimes sejam cometidos com mais frequência. “Cometer injúria racial na frente de alguém é diferente de fazer em uma rede social, onde em tese a pessoa não sofre efeito nenhum e fica com mais coragem”, acredita.
Para o futuro
Ribeiro percebe que embora a estatística seja negativa, também revela que as pessoas estão começando a reagir. “O Movimento Negro abriu um espaço nesse biênio 2018 e 2019. Talvez nunca tenha se falado tanto na questão negra aqui em Bento Gonçalves, uma cidade predominantemente italiana, então é um marco, um feito para a cidade. Talvez essa luta seja infinita, não gostaria que fosse, mas penso em quanto espaço se abriu do ano passado para cá, nós levamos essa discussão para a rua”, finaliza.
Em relação ao que vem pela frente, mãe Lisi complementa: “o que vejo para nosso futuro é muito trabalho para acordar o restante dos nossos irmãos que estão adormecidos”, declara.