Descobri o prazer de caminhar. Não que isso seja um fato grandioso, já que caminho antes mesmo dos dois anos de vida. E de lá pra cá, nunca mais parei. Mas contabilizando minha movimentação física sem sonegar informações, diria que passei a maior parte do tempo sentada, apoiada ou deitada, o que me levou a encarar prematuramente o Cabo das Tormentas.
Motivada por um novo objetivo, fiz que nem o rei de Portugal e rebatizei aquela ponta de terra que leva para o (além)mar, como Cabo da Boa Esperança. Assim, diminuí a navegação pela Internet e comecei a me dedicar a expedições pelo bairro.
O “sobe e desce” é um desafio constante, por isso tenho de descansar no topo de cada rampa… às vezes, na metade. Nas eventuais paradinhas, converso com a vizinhança. Ouço as reivindicações dos quero-queros, que só querem um pedacinho de chão pra constituir família. Acarinho os pets que me oferecem a pata entre as grades, tendo cautela com as fêmeas – algumas são bem belicosas. Passo pelos sete anões que, doidos de pedra, não estão nem aí pela ausência da Branca de Neve. Pisoteio com pena as uvas japonesas, que se assemelham a achados arqueológicos com histórias indecifráveis. Troco olhares com as flores, mas elas “não falam, simplesmente exalam…”.
Pelo caminho, vou tomando doses homeopáticas de lindezas. Desacelero diante de uma caixa de correio de ferro fundido, onde está escrito “cartas”. Se fosse pra mim, mandaria grafar “carnês”. Sinto a tristeza da casinha cor-de-rosa desdenhada. Outra já foi desmontada. Os pais ainda tentam manter as meninas na magia da infância, mas elas optaram por uma espécie de “Brexit” da idade, preferindo se isolar no mundo virtual a transitar pelas brincadeiras do passado. Nosso Cleo Kuhn de lata, no alto da mansão, está indeciso quanto à direção do vento… Pudera! Este inverno está duvidoso. Seguindo o rumo, percebo uma enorme flor de concreto desabrochando no lugar de duas bergamoteiras carregadinhas de frutas. Na terceira volta, a atmosfera já está diferente. O cheiro de fritas é aliciador (Vizinha, se eu bater à sua porta ao meio-dia, não pense que foi engano). Já o doce desce o morro na garupa do minuano… Direto da fábrica.
“Tudo é divino, tudo é maravilhoso…” Opa! Há “merde de chien”, “dog poop”, “caccas di cane” no meio do caminho… “Nada é divino, nada, nada é maravilhoso…”. Também não exagera, Belchior!