Foi já adulto que vim a saber que cola de sapateiro era usada como entorpecente entre os meninos de rua de Porto Alegre e outras grandes cidades. Tenho boas lembranças de minha infância e o cheiro daquela cola só perdia para o cheiro da cola das figurinhas de álbum de coleção. Agora acredito que viciava as crianças.
Mas que era bom era… e até tenho saudades.
Fato é que alguns de meus amigos de infância, lá pelos idos dos anos 50, eram pessoas de idade e três deles sapateiros de profissão. Gostava tanto destas pessoas e de seu trabalho que por horas ficava escutando casos e até ajudei a bater couro de sola. Se me perguntassem o que desejaria ser quando fosse grande a resposta era na ponta da língua: sapateiro.
Não acredito que fosse influência da tal da cola mas os locais de trabalho destas pessoas me pareciam um cantinho de felicidade.
No porão da casa dos Michelon, onde por anos funcionou um hotel, ao lado do Hospital Tacchini, o Seu Antônio era mestre no couro. Transformava um sapato velho num novo que parecia ter saído da fábrica. Sempre calmo e sereno era tolerante com crianças como eu que ia lá para encher o saco. Vez por outra ele oferecia um rapé, servido num caprichado recipiente de osso de chifre.
Era espirro que não acabava mais e dávamos boas risadas.
O Seu Colletta, próximo do Colégio Aparecida, era passagem obrigatória durante os dias de aula. Ficava ainda melhor o cheiro da cola de sapateiro quando combinado com o perfume do fumo de cachimbo que ele curtia. Vez por outra ele ensaiava um toque de trombone, instrumento que lhe dava posição de destaque na banda municipal do Maestro Ponticelli.
O Seu Tolotti, ao lado do Açougue Bertani, era muito amigo de meu pai. Levei tempo para entender o que o Seu Tolotti fazia com meu pai e eu, inocentemente, era cúmplice. Diariamente o Seu
Pedro me levava pela mão até a Igreja Santo Antônio para assistirmos a missa das seis. Quando estávamos na calçada do Dentista Marotti eu já largava a mão de meu pai e corria até a sapataria do
Seu Tolotti e aguardava o seu Pedro. O seu Tolotti já pegava o ferro de bater couro de sola de sapato e, calculando a proximidade de meu pai, simulava uma martelada no dedo da mão. Quanto “porqui” vinha pra fora. Meu pai entrava de cabelos arrepiados e aconselhava o Seu Tolotti dizendo que aquela não era a melhor maneira de agir, principalmente na frente de uma criança e que Deus até podia castigar. O Seu Tolotti me piscava o olho e lá ia eu faceiro, arrastado pelo meu pai, até os primeiros bancos da igreja. Que saudades…. e nem falei do cheiro da cola.
Semana passada faleceu o seu Tumelero e nos painéis luminosos das capelas mortuárias estava escrito também sua profissão: sapateiro.
Fui ao cemitério, acompanhando o enterro de meu amigo Lauro Dorigon, e aproveitei para visitar os túmulos dos meus antigos amigos Michelon, Colletta e Tolotti, todos sapateiros por profissão.