No começo da João Pessoa, em Garibaldi, ao dobrar a Buarque de Macedo, rua famosa pela preservação arquitetônica de seus casarões e prédios históricos, uma pequena e fina porta de vidro separa o mundo em duas realidades: da calçada para fora, o presente; da porta para dentro, o passado vivo e conservado. Por todo o espaço de uma sala comercial, ocupando também suas paredes, se espalham brinquedos, malas, aparelhos de rádio e televisão antigos, gibis, mobília, latas vintage, que preenchem até mesmo o ar com o cheiro de antiguidade.
De cabelos compridos presos em um rabo de cavalo, jaqueta de couro e uma camiseta preta do ZZ Top, o proprietário, Guilherme Possebon, 42 anos, deixa claro, porém, os quais, entre todos os itens do antiquário, são suas maiores paixões: os discos de vinil, sobretudo os de rock, que se acumulam em estantes e caixas. Considerado a maior referência em Long Plays, popularmente conhecidos como LPs, da Serra Gaúcha, ele possui uma média de 25 mil obras para venda e troca, fora outras 2 mil que guarda em sua coleção pessoal e que define como “invendáveis”: álbuns raros e discografias completas de bandas de rock.
Entre os favoritos, destaca desde os quatro álbuns do Cascavelletes, que diz serem complicados de garimpar assim “como todo material de bandas gaúchas dos anos 1980” e discos de surf music até o trabalho de estreia da The Outfield, “Play Deep”, o qual levou 18 anos para encontrar. “É uma obra que não se acha em lojas físicas aqui e muito menos em sebos. Quando vi na internet, comprei na hora, sem nem ver qual seria o preço do frete”, lembra. O mais querido entre todos, porém, é “Seventh son of a Seventh Son”, do Iron Maiden. “É minha banda favorita. Tenho toda a discografia em LP e, sem dúvida, esse é o disco que mais escuto”, conta animado.
Paixão que virou negócio
“Ouro de tolo”, “Gita”, “SOS”, “Medo da Chuva”. Esses são alguns dos clássicos que ouvia em looping na adolescência e que ajudaram a moldar o amor de Possebon pela música. As canções estão presentes em um álbum que guarda com carinho até hoje, sobretudo, por seu valor emocional: um LP duplo com os maiores sucessos de Raul Seixas, primeiro disco que comprou na vida. “Eu não trabalhava ainda, então tive que guardar, por quase três meses, todos os trocados que ganhava da vó, do pai e da mãe. Só não derreti esse disco de tanto escutar porque a agulha era boa”, brinca.
Na segunda metade dos anos 1990, mesmo com a derrocada do LP frente ao avanço do “Compact Disc”, o popular CD, sua coleção seguiu crescendo. Fazendo faculdade de Engenharia Mecatrônica em Porto Alegre, costumava rodar os sebos da Capital Gaúcha. Formado e mudando-se para Caxias do Sul, o passatempo o acompanhou e os contatos entre colecionadores foi fortalecendo sua paixão e gosto por colecionar. “Mesmo quando era estudante, eu sempre guardava um dinheirinho para garimpar. Aí quando comecei a trabalhar em Caxias e passei a ter renda fixa, comecei a me dedicar de verdade, fui tendo contato com amigos, comprando, trocando, vendendo”, resume.
Mas foi só em 2014, quando “meio ao acaso”, o que era hobby virou profissão. Após doze anos trabalhando em indústria, largou o trabalho para tentar abrir um negócio próprio. Após algumas tentativas frustradas, a música, como por destino, veio ao seu encontro. “Quando larguei o emprego, fiquei um tempo sem saber o que fazer. No começo, minha loja era de utilidades domésticas, até que uma rádio AM local resolveu vender seu lote e tudo mudou”, relata.
Foi assim que Possebon, que na época possuía uma coleção de pouco mais de seis centenas de discos, viu um caminhão estacionar frente à sua loja com um baú repleto de vinis. “Foi uma manhã inteira carregando caixotes. Eram pelo menos 180 caixas e mais de 35 mil LPs”, lembra.
“O melhor é fazer o que gosto. Antes ouvia o som da esmerilhadeira, no chão de fábrica. Hoje, fico aqui o dia todo ouvindo música, conversando com os amigos, conhecendo gente nova”
A volta do Long Play
Após dominar o mercado por aproximadamente 90 anos, com o avanço de formatos como o CD, o MP3 e, mais tarde, os serviços de streaming, o LP quase desapareceu. Se hoje, segundo levantamento do site Vinyl Pressing Plants, existem apenas 95 fábricas de vinil no mundo, espalhadas em 30 países, os números de vendagem são a prova de que os “bolachões”, que atravessaram quase três décadas no ostracismo, vivendo apenas pelo esforça de saudosistas e colecionadores, começaram a chamar a atenção de novos públicos.
Em 2018, as vendas nos Estados Unidos subiram 15% (sendo o 13º ano de aumento consecutivo), ultrapassando as rendas em download. A situação se repete também em outros grandes mercados mundiais como o Japão, que registrou em 2016 um acréscimo de oito vezes em relação a 2010, e e no Reino Unido, onde as vendas de vinil chegaram a superar as das mídias digitais. Se ainda não há um levantamento concreto dos números do Brasil, onde apenas duas gravadoras trabalham com vinis, Possebon assinala que a procura tem aumentado consideravelmente. “Em 2014 ainda não tinha tanta busca. Quando comecei o antiquário, o vinil voltava a passos lentos, mas vivemos um boom agora, impulsionado por lojas virtuais e brics de disco. Assim que começou a dar certo, passei a investir pesado e pude abandonar a venda de utilidades domésticas, focando em vinis e antiguidades”, sublinha.
Hoje, conforme conta, chega a vender 70 discos por semana. O maior sucesso, no entanto, ocorre nas “feiras de liquidação”, que promove a cada dois ou três meses. “Compro lotes de mais ou menos 2 mil discos e disponibilizo junto com os que tenho por preços especiais. Já fiz 17 eventos, só no último teve umas 200 pessoas”, conta. Destaca que o rock clássico é o gênero mais buscado, seguido por sertanejo de raiz e música gaúcha. Mas é falando do público que aparenta se surpreender. “Pessoas com mais de 45 anos, que viveram a época dos vinis são raras. No entanto, tem uma garotada de 20 anos que nem teve contato com os bolachões e que se tornou público frequente aqui”, comenta.
Segundo Possebon, seu foco agora é fortalecer o público investindo em material de qualidade em vez de quantidade. Além dos clientes fieis e dos jovens que começam a pegar gosto pelos discos, acredita que o saudosismo e o perfeccionismo dos LPs farão com que eles sigam no coração dos fãs de música por um longo tempo. “O maior prazer é olhar para a estante e ver que tu tens ali um produto que foi comprado em determinado momento, que fez parte da tua vida”, finaliza.
“Isso é o mais bacana: não é só ouvir, mas colecionar”