Contrastes marcam forma de elaborar e vender vinhos no interior de Bento Gonçalves
Na última década, o setor vitivinícola tem passado por uma grande transformação. Os consumidores se tornaram mais exigentes e, para responder ao mercado, as vinícolas qualificaram sua produção. A forma como elas se comunicam com o público em partes também mudou. Enquanto algumas apostam no discurso técnico e contemporâneo, outras se prendem aos aspectos clássicos da tradição italiana.
Esses contrastes também são perceptíveis ao andar pelo Vale dos Vinhedos, Caminhos de Pedra e outras regiões produtoras da vinho de Bento Gonçalves. As construções imponentes, de influência europeia, se diferenciam de alguns prédios com traços modernos e transparentes. As parreiras latadas, fechadas em cima, se diferenciam das espaldeiras, baixas e abertas. As uvas europeias se misturam com as americanas e, na prática, o setor cria uma forma própria de fazer o vinho, com identidade brasileira.
Os Caminhos de Pedra hoje significam um retorno ao século XIX, com casas de madeira e pedra dos primeiros imigrantes que chegaram à região, preservadas, que oferecem a possibilidade do visitante mergulhar na cultura da região. Na rota de pouco mais de 10 km, o vinho disputa espaço com tomates, ovelhas e erva-mate.
No Vale dos Vinhedos, o ponto forte é a produção da uva e do vinho, embora tenha opções de outros estabelecimentos e esteja se tornando zona residencial em virtude da construção de conjuntos habitacionais. Em alguns aspectos, o tradicional e clássico da imigração italiana se misturam com o moderno. Agricultores dividem o espaço com pequenas vinícolas, que buscam seu lugar no mercado e apostam na qualidade dos produtos.
O resgate de uvas dos imigrantes
O vinicultor Silvério Salvati, da vinícola Salvati e Sirena, nos Caminhos de Pedra, elabora a bebida há 39 anos e é comum que misture termos em talian enquanto fala português. Sua produção varia entre 20 e 25 mil garrafas, sem contar sucos e espumantes. “Aqui somos uma vinícola pequena, bem familiar, onde elaboramos vinhos artesanais. Nos doamos com carinho, paixão e esmero”, ressalta.
Para preservar a cultura, ele busca resgatar variedades de uva clássicas, que vieram da Europa pelas mãos dos imigrantes no século XIX, como a peverella, primeira variedade branca vinífera trazida do Vêneto. “No tálian, a palavra Peverella vem de ‘pevero’, que significa pimenta. Isso porque ela dá um sabor levemente picante na ponta da língua”, explica.
Suas vendas se concentram sobretudo pela aproximação dos turistas que visitam a vinícola. Ele conta que faz contato, pega o endereço e mantém um relacionamento comercial com os visitantes pela loja virtual. Salvati percebe que a maioria dos seus clientes ou são da região metropolitana do Rio Grande do Sul ou de São Paulo. “Em julho os paulistas vêm para cá, eles compram e nem pedem preço. Já o consumidor de Porto Alegre, no primeiro friozinho que dá, um final de semana chuvoso, vem para a Serra”, observa.
Ainda segundo Salvati, o mercado é bastante difícil quando se restringe aos bento-gonçalvenses, que na sua percepção não costumam comprar vinho. “Para vender vinhos e móveis em Bento tem que ser um vendedor muito bom”, brinca.
Com relação à competição com vinhos estrangeiros, Salvati vê que o setor deveria brigar por direitos iguais, na medida em que os vinhos nacionais estão ganhando muita qualidade e a carga tributária é muito alta. “Os chilenos e argentinos é zero imposto e nós pagamos 74,4%. Não tem como brigar com um vinho de boa qualidade, que é vendido por R$ 14,90 no mercado”, observa.
O que vende está na taça
A Vinícola Almaúnica foi fundada em 2008 e dá as boas vindas às pessoas que passam pelo Vale dos Vinhedos, na medida em que está localizada praticamente na entrada da rota. O prédio imponente, cercado de parreirais, se destaca no cenário pela arquitetura contemporânea.
Márcio Brandelli, um dos fundadores, trabalha no setor desde a década de 90 e passou por outras vinícolas antes de apostar na Almaúnica. Ele observa que o público mudou bastante e hoje está mais exigente. “Tem uma geração na faixa etária dos 25 aos 45, com a cabeça mais descolada. Não é como aquele cara acima de 60 anos, com opinião formada”, compara.
Na opinião de Brandelli, a mudança de cultura é resultado da curiosidade do consumidor, que se interessa mais, faz cursos de degustação, viaja e pesquisa o vinho antes de escolher o rótulo. “Antes dos anos 90, o consumidor evoluía a cada dez anos. Hoje você não vende mais discurso, você vende o que está na taça”, observa.
Embora esteja localizada em Bento Gonçalves, o principal público da Almaúnica está concentrado em Porto Alegre e São Paulo e mais da metade das vendas acontecem diretamente na vinícola. “O paulista dá mais valor para o vinho gaúcho do que o próprio gaúcho. É um cliente que valoriza muito, que tem interesse”, comenta. Além deles, a Almaúnica também tem mercado no Rio de Janeiro, Brasília, Curitiba e outros lugares do Brasil.
Algo que Brandelli percebe é que o visitante do Vale dos Vinhedos geralmente é mais exigente, além de haver competição por mercado maior entre as vinícolas, que se encontram próximas umas das outras. “Por isso, nós sempre temos que buscar o alto nível, seja em grande ou pequena quantidade”, complementa.
Outra mudança observada desde a década de 90 é de que o número de visitantes no Vale cresceu bastante e que agora é normal os estabelecimentos receberem visitantes durante todo o ano. “Uma vez nós tínhamos períodos de baixa, agora não temos. São seis meses com uma visitação boa e outros seis excelentes”, afirma.
Sobre a competição com vinhos estrangeiros, que entram com baixa carga tributária no Brasil, o vinicultor pensa que isso sempre vai existir. Contudo, entre os vinhos de alto nível, ele avalia que os brasileiros são mais baratos que os chilenos ou argentinos. “A Vinícola Almaviva, do Chile, faz 500 mil garrafas e alguns chegam a R$ 1300 no Brasil. Esse vinho se compara ao Parte 2 da Almaunica, ao Lote 43 da Miolo, ao Storia da Casa Valduga ou ao DNA da Pizzato. Esses vinhos estão na faixa de R$ 150 a R$ 250”, compara.