Facilidade de acesso à tratamento diminui casos crônicos na cidade, mas preconceito ainda é visto como problema

Avançam a ciência e a qualidade de vida, mas permanece o preconceito. É desta forma que se apresentam as opiniões de especialistas e de pessoas que vivem com Aids e HIV acerca dos levantamentos sobre as doenças, apresentados nos últimos anos.

A tendência que é vista em todo o país (houve queda de 16% dos casos registrados no Brasil e 25% no Rio Grande do Sul, nos últimos quatro anos), se repete em nossa cidade: antes dos testes rápidos, a média de novos casos de Aids passava de 40; hoje, ela praticamente diminui pela metade.

O que se observa é que conforme aumentam as medidas preventivas e a facilidade de acesso a exames e medicamentos, os números de casos de Aids e de óbitos caem, e sobe a expectativa de vida e o número de pacientes em tratamento com HIV. Os números positivos, no entanto, ainda entram em contraponto, com a forma com que a sociedade enxerga o problema.

Para as pessoas que vivem com Aids, abrir-se para amigos e família é muitas vezes tão ou mais complicado do que lidar com o tratamento em si , como comenta a enfermeira do Serviço de Atendimento Especializado de Bento Gonçalves (SAE), Adriana Cirolini. “Hoje há menos preconceito, mas a gente ainda vive em um lugar onde se encara como tabu, tanto que ninguém se abre para conversar, as pessoas tem medo de se identificar. O povo ainda é desinformado e vê com maus olhos. Cabe a nós seguir trabalhando para desmistificar isso”, comenta.

Números de Bento Gonçalves

Teste rápido é apontado como avanço no combate a Aids/HIV (Foto: Fábio Becker)

O relatório anual dos dados epidemiológicos sobre a síndrome da imunodeficiência  adquirida (Aids) apresentado há poucos dias pela Vigilância Epidemiológica da Saúde de Bento Gonçalves faz uma revisão histórica sobre os casos de Aids na cidade desde os anos 1980, evidenciando os avanços no tratamento da doença .

Até o momento, já foram identificados 515 casos novos de Aids no município, sendo que desde 2014 as ocorrências de HIV também passaram a ser contabilizadas e chegam a 110. Para os especialistas, avanços como o teste rápido somado ao trabalho de conscientização levaram a média de casos de Aids a despencarem no município. Enquanto os estudos esperam 29 novos casos anuais, em Bento, a incidência chegou a ser de 15, no último ano. Entre os dados alarmantes, porém, destaca-se, por exemplo, o aumento da incidência da doença em adolescentes.

Sinal vermelho: Doença aumenta entre jovens

Embora a faixa mais atingida ainda seja a de pessoas entre 20 e 39 anos (representando 58.1% do total dos casos), os jovens entre 10 e 19 anos já representam 4% dos infectados no município, o que representa um aumento de 236,2% na década. Para o secretário da saúde, Diogo Segabinazzi Siqueira, isso revela que ainda falta um maior conhecimento dos adolescentes quanto à gravidade da doença. “Como o HIV tem tratamento e os casos de óbito são mais raros, os jovens acabam descuidando mais. Assim, também temos aumento de outras ISTS, como a sífilis”, comenta.

Sinal amarelo: falta de remédios

Em junho do ano passado, a reportagem do Semanário acompanhou o drama que assolou as pessoas que vivem com Aids e HIV no município. Devido a um atraso na entrega de medicamentos por parte do Ministério da Saúde, soropositivos chegaram a ficar quase um mês sem antirretrovirais. De acordo com Adriana, há dois meses a situação foi estabilizada, mas durante um período a preocupação foi grande. “O problema era na fonte (Ministério da Saúde), não foi por falta de esforço e telefonema aqui do SAE. Teve uma época que para 200 pacientes, eu tinha só 100 frasquinhos”, relembra.

ZR*, que há dois anos e meio faz tratamento no SAE, conta que vivenciou o problema, mas que ao contrário de outras pessoas, não foi tão afetado. “Quando fui buscar na segunda-feira estava em falta. Preocupei-me um pouco, mas na quinta-feira, eu já consegui pegar os medicamentos, então foram só três dias que fiquei sem”, comenta.

*A fonte preferiu não se identificar

Sinal Verde: Teste Rápido e a queda de casos de Aids

Há um mês do fim do ano, o número de testes aplicados já ultrapassou o do ano passado. Até 15 de novembro, 7021 pessoas já haviam sido testadas, enquanto em 2017, o número total foi de 7000. O aumento da procura não é algo novo, afinal desde 2014, com as facilidades do teste rápido, o número tem subido gradativamente. Para Adriana, a desburocratização do teste rápido em comparação aos convencionais testes de laboratório tem facilitado o acesso e a aplicação, que agora pode ser feita por enfermeiras.

Ainda segundo a enfermeira, já é possível observar o quanto o teste rápido tem auxiliado para a detecção precoce do HIV e a queda do número de casos de Aids. “O número de casos de Aids diminui, pois conseguimos identificar e tratar as pessoas com HIV (que é quando a pessoa é portadora do vírus, mas ainda não tem nenhuma outra doença), antes de progredir. Temos casos de pessoas que há 10 anos não apresentam carga viral”, comenta.

A visão de Adriana ganha embasamento com os números apresentados pelo Boletim Epidemiológico da Secretaria de Estado da Saúde do Rio Grande do Sul. Na última avaliação, a cidade ocupava a 36ª posição no ranking de novos casos de Aids entre os 55 municípios prioritários. Hoje, com 19 novos casos no ano, caiu para o 45ª lugar.

Outro dado positivo para a cidade está no fim dos casos de transmissão vertical, ou seja, quando o bebê herda a doença da mãe. Em nota divulgada pela Secretária Municipal da Saúde, por meio do SAE e do Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), declarou-se que 100% das crianças filhas de mães soropositivas estavam livres do vírus.

Bento promove ações para o Dia Mundial de Combate a Aids

Evento realizado pelo SAE, no dia 29 (Foto: divulgação)

Em lembrança ao Dia Mundial da Luta contra a Aids, comemorado no sábado, dia 1° de dezembro, representantes da SAE/CTA de Bento Gonçalves estiveram com a Unidade Móvel da Saúde, na Via Del Vino, na tarde da quinta-feira, 29. Ao todo mais de 60 pessoas fizeram o teste rápido para HIV, Sífilis e Hepatites B e C, além de fazer orientações sobre a prevenção. A Coordenadoria da Mulher/ Centro Revivi também participou da ação com distribuição de material informativo.

 

Grupo de apoio a pessoas que vivem com Aids

Grupo no WhatsApp acolhe pessoas que vivem com Aids (Foto: Fábio Becker)

Informar para desmitificar preconceitos, e conversar para auxiliar quem ainda enfrenta problemas em viver com HIV/Aids, esse é o objetivo do Projeto Posithividades, desenvolvido pelo gaúcho Lucian Ambrós, hoje, residente em Santa Catarina.
O projeto inicialmente foi desenvolvido como aplicativo em 2017, mas acabou migrando para as redes sociais. Hoje, conta com Youtube, Facebook e Instagram, além de grupo de WhatsApp. Nas três primeiras, como explica, Ambrós, são divulgados publicações, notícias, guias e contatos de especialistas de todo o Brasil, proporcionando informações com credibilidade. O grupo do Whats é usado para aconselhamento e para proporcionar um ambiente de conversa sem preconceitos. “Faço o acolhimento pelo grupo e pelo privado do Facebook e as redes sociais uso para disseminar informação e tirar dúvidas”, explica.

Para Ambrós, um dos pontos mais importantes do projeto está na abertura de espaço para compartilhamento de histórias e aconselhamentos, afinal, muitas vezes, as pessoas que vivem com HIV/Aids não encontram coragem para falar com ninguém próximo. “ Já peguei casos bem pesados, a pessoa estava desesperada, se revoltava, eu levava para o grupo e em poucas semanas a pessoa já estava melhor, ela já tinha informação, ela ficava sabendo por pessoas que já passaram pela situação. A troca de experiência é algo muito forte, há pessoas que há mais de 20 anos vivem com HIV e outras que descobriram há uma semana. A gente acolhe, aconselha e incita a pessoa a iniciar o tratamento”, conta.
Atualmente, o grupo conta com mais de 200 pessoas, mas pelo menos 800 já participaram só nesse ano. No Facebook, a página se aproxima dos 5 mil usuários, com pessoas de todo o Brasil além do exterior.

ZR e a sua vida com o vírus

Há dois anos e meio, ZR (que preferiu não se identificar), atualmente com 42 anos , passou por aquele que considera o dia mais longo da sua vida. Ainda em choque, após receber o diagnóstico positivo para AIDS, caminhou sem forças e não sabe exatamente como conseguiu chegar a casa. “Eu morava no segundo piso e levei muito tempo para subir as escadas. Não sentia as pernas, não pensava direito”, relembra.

Com crises de diarreia e perda de peso, resolveu ir ao médico, embora até então, sempre evitasse fazê-lo. Afinal, como conta, nunca conseguiu ficar parado. “Fui diagnosticado com anemia, no entanto, o doutor disse que não era só isso. Quando falou que tinha dado positivo para AIDS, eu perdi as forças”. Diz que, no entanto, a pior parte do dia estava por vir: na hora do almoço, reuniu forçar para contar a notícia. “Minha esposa não conseguiu nem comer. Correu desesperada para o quarto e chorou na cama a tarde inteira”, lembra com lágrimas nos olhos.

Hoje, afirma que leva uma vida tranquila e sem nenhuma privação, embora não esteja totalmente acostumado com a situação. “A gente vai levando, não dá para ficar só se queixando, mas sempre tem aquele peso. Há dias que já estamos mal pelo estresse aí quando lembro do meu problema, eu fico ainda pior”, comenta.

ZR conta que, no entanto, sua esposa precisa de maior ajuda. “No começo ela ficou muito doente, irritada e depressiva. Chorava e gritava muito. Sempre tive cuidado para deixar ela calma, e também a ajuda psicológica que ela tem aqui no SAE ajuda muito”. Sobre o atendimento que ele recebe no serviço, comenta que sempre foi muito bem acolhido e que se tornou parte da rotina. “Só preciso vir a cada três meses, acompanhar direitinho”, diz.

Para ZR, o apoio dos amigos e, sobretudo, o trabalho — pelo qual é apaixonado — é o que lhe permitiu e permite seguir forte. Há mais de 20 anos trabalhando com viagens, fala que ver novas paisagens lhe faz ficar leve e que, agora, assim como antes da doença, faz de tudo para se manter ocupado. “Não consigo ficar parado. Peguei atestado de gripe para três dias no inverno, mas fiquei um dia só em casa”, comenta.

Quanto aos amigos da empresa, a quem considera como irmãos, diz que se sentiu abraçado desde o dia que foi diagnosticado com AIDS e que isso é essencial. “Nem todos sabem. Os que tenho mais confiança, eu contei no dia que descobri. Pagaram até os meus exames, sempre me apoiaram. Me visitavam e diziam para eu sair de casa, que estava tudo bem”, enaltece.

As coisas estão se encaminhando, segundo ZR. Diz que está se sentindo bem, que está acostumado com os exames e que sua esposa está cada vez melhor. As únicas dificuldades, constata, é vencer as barreiras do preconceito e da aceitação. Reservado, evita até contar para a mãe e para a irmã que está em tratamento. “Minha mãe está com mais de 70, tenho medo que fique mal”. Explana, por fim, que não vê o porquê contar para todo mundo o que passa consigo, mas que intimamente o que teme é que as pessoas não o aceitem. “Tem muita gente que fala mal, isso é triste. Mas meus amigos me tratam bem, e eu estou bem”, reforça.