Discriminação, intolerância religiosa e desigualdade ainda são presentes em nossa região
Onde se esconde o seu preconceito? Onde estão os negros? É com a primeira pergunta que o presidente do Movimento Negro Raízes, Marcus Dutra Ribeiro, abre suas palestras quando a plateia é majoritariamente branca; já a segunda, é a elegida quando o público é composto por maioria negra. Uma questão pretende trazer à luz a realidade incômoda de que a intolerância e o racismo ainda existem e que precisam ser combatidos com conscientização e luta; a outra, alerta para o fato de que ainda há um abismo social muito grande entre negros e brancos na sociedade.
Levantamentos oficiais confirmam que as indagações levantadas por Marcus são pertinentes. Se, de acordo com o IBGE, as pessoas que se consideram negras ou pardas são maioria no Brasil (mais de 55%), elas também são predominantes em índices como os de desemprego, pobreza e de mortes violentas; são, porém, minoria em universidades, na política, e em cargos com maior especialização. Somam-se a isso casos constantes de racismo e intolerância e fica claro que o país que concentra a maior população negra fora da África, é também aquele onde a desigualdade racial e o preconceito são mais latentes. Na Serra Gaúcha, de acordo com estudiosos, líderes e coordenadores de entidades representativas, a realidade é semelhante.
O fim da escravidão não foi acompanhado por nenhuma medida inclusiva, nem por providências para abolir o racismo ou oportunizar o processo de equidade.
Para o historiador Lucas Caregnato, o problema é que a assinatura da Lei Áurea em 1888 não foi seguida de políticas públicas ou mudanças estruturais que possibilitassem uma igualdade real entre negros e brancos. “O fim da escravidão não foi acompanhado por nenhuma medida inclusiva, nem por providências para abolir o racismo ou oportunizar o processo de equidade”, assina. Essa mácula, segundo Caregnato, acabou por institucionalizar o preconceito e, com ele, a desigualdade e todos os demais problemas que ainda assolam o povo negro em todos os cantos do país. “Os afrodescendentes ainda sofrem com crimes de intolerância e, apesar de ser a maior parcela da população brasileira, é muito pequeno o número de negros em universidades e cargos de destaque em função de um racismo institucionalizado”, assinala.
Racismo e xenofobia na Serra Gaúcha
De acordo com o Conselho da Comunidade Negra (Comune), só em Caxias do Sul são denunciados de três a seis casos de racismo por mês. O número, porém, está longe de representar a realidade, como explica Alessandra Rosselin Pereira, da Coordenadoria de Promoção de Igualdade Racial, já que muitas pessoas evitam denunciar. “Não há como falar quantitativamente, pois a maioria ainda não faz denúncia e nem registra boletim de ocorrência, porque tem medo ou acredita que não vai mudar nada. Porém, quando fazemos palestras, escutamos inúmeros casos de racismo no ambiente de trabalho, faculdade e nas ruas”, comenta. Ela critica ainda a forma como os casos de intolerância são relativizados. “Se é preconceito deve ser tratado como preconceito, não pode ser definido como mera agressão. Por causa do racismo institucional, quando se faz uma denúncia é normal que tentem amenizar, afinal sabem que isso traria holofotes negativos para o município”, finaliza, exemplificando com o caso Márcio Chagas que ganhou a imprensa de todo o Brasil.
Se é preconceito deve ser tratado como preconceito, não pode ser definido como mera agressão. Por causa do racismo institucional, quando se faz uma denúncia é normal que tentem amenizar, afinal sabem que isso traria holofotes negativos para o município.
Há oito anos na Serra Gaúcha, Billy Ndiaye, fundador da Associação de Senegaleses de Caxias, relata que apesar da desconfiança com que os imigrantes eram recebidos, com o tempo e com a convivência os casos de preconceito têm diminuído, mas assinala que o racismo ainda pé um problema presente. “Há dias que nos gritam algo na rua, por exemplo, mas já é menos. Antes a gente ouvia muita coisa mesmo: diziam que vínhamos roubar empregos, trazer doenças, comer cachorro, mas com o tempo fazendo amizade, falando com pessoas as coisas vão melhorando”, comenta. Fala ainda, que o preconceito dificulta também na hora de encontrar um trabalho formal. “Falam-nos que as vagas são para brasileiros. E tem também as pessoas que por saberem que precisamos trabalhar e que somos de fora, nos contratam pagando menos”, expõe.
Ndiaye destaca ainda que, muitas vezes, o racismo é mais velado e se percebe no jeito com que as pessoas olham ou agem quando enxergam um imigrante ou um negro. Opinião corroborada também pelo coordenador de comunicação da Sociedade 20 de Novembro, Luiz Ferreira, que vive em Bento há mais de 30 anos. “Há um restaurante mais caro que gosto de ir, que quando entro muita gente me espia de cima a baixo, como que pedindo como um negro pode pagar por algo assim”, conta.
Intolerância Religiosa em Bento Gonçalves
De acordo com o último Censo, Bento Gonçalves conta com 365 casas de religião de matriz africana. Esse número não significa, porém, que a aceitação popular esteja maior. Segundo Ribeiro e Mãe Lisi, também idealizadora do Movimento Negro Raízes, a maioria dos casos de preconceito que se tem notícia na cidade estão relacionadas com intolerância religiosa.
Há seis anos morando em Bento, enumera com facilidade uma lista de episódios que tem conhecimento. Cita, por exemplo, que estacionaram um carro com um hino religioso espírita em frente a uma casa onde estava acontecendo uma sessão de Exu; lembra ainda de inúmeros casos de casas apedrejadas e ameaças.
Além das histórias que escutou de terceiros, Mãe Lisi conta que também já foi vítima de preconceito. “Sempre tive muita dificuldade aqui. A intolerância que todo mundo finge não existir, existe sim. Já aconteceu de eu sair para a rua para fazer um ritual religioso chamado ‘abertura de cruzeiro’ que é para pedir coisas boas para meus filhos de santo, e eu ser apedrejada rua afora”, lembra. Conta ainda que em outra ocasião foi afugentada por um senhor com cachorros, além de ser ofendida.
Dados comprovam o abismo social
Representatividade e inclusão seguem como desafios
Segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral, (TSE) 29,11% dos atuais prefeitos são autodeclarados negros, enquanto os brancos correspondem a 70,29%. Quanto aos vereadores, a diferença é menor: são 42,07% negros e 57,13% brancos. Se a nível nacional a representatividade negra na política é diminuta, em Bento Gonçalves, a realidade é ainda pior. Por mais que se sublinhe o fato da população ser majoritariamente italiana, os dados ainda chamam a atenção, afinal, de acordo com a assessoria da Câmara, desde 1977 (ano a partir do qual se encontram registros fotográficos), a cidade nunca teve nenhum prefeito ou vereador negro.
Para o sociólogo Gregório Grisa, a representatividade é fundamental para se mudar o histórico brasileiro de exclusão da população negra. “Não parece que esse cenário possa se modificar de modo substancial sem que a população negra tenha protagonismo na política, na arte, na ciência, no mercado e em todas esferas da vida em sociedade”, pontua. Opinião semelhante a de Ferreira, que acredita que muito da realidade seria modificada com a eleição de um vereador negro na cidade. “A falta de alguém que vivencie os problemas enfrentados por nosso povo, faz com que faltem políticas públicas específicas para as pessoas negras”, observa.
Quanto à possibilidade de que um negro seja eleito para a Câmara na cidade, Ferreira afirma que a realidade não deve ser modificada tão cedo. “Bento não está preparado para isso ainda. O movimento negro está se organizando e quando estiver bem estruturado e conseguir inserir nossa cultura e pensamentos, teremos representantes com maiores chances na política”, projeta.
Educação e inclusão
Embora defasado, levando em conta a onda de imigrantes haitianos e senegaleses que chegaram a Bento Gonçalves nos últimos anos, os levantamentos do Censo 2010, ilustram bem as desigualdades sociais que se apresentam entre negros e brancos na cidade. Enquanto aproximadamente 3% dos brancos possuíam algum tipo de negócio, apenas 0,75% dos negros eram empregadores. Quanto à renda, o cenário se repetia: mais de 7% da população branca ganhava cinco salários mínimos ou mais, ao passo que 4% da população negra alcançava esse patamar.
Para as entidades e especialistas, os números sublinham a necessidade de políticas públicas que visem à inclusão do negro em cargos representativos, e que minimizem os distanciamentos sociais criados ao longo da história. Nesse sentido, as cotas nas universidades e reservas de vagas em serviços públicos são medidas assinaladas como positivas. “No serviço público federal a reserva de vagas tem sido fato fundamental para garantir a representatividade. Para os alunos de cursos superior da Serra, ter professores negros é uma experiência nova. Os relatos são números e emocionantes entre os estudantes, isso faz toda diferença”, comenta Grisa.
Alguns alunos relataram estranhamento ao se deparar com uma professora negra. Muitos afirmam que sou a primeira professora negra em todo o seu trajetar formativo.
Colega de trabalho de Grisa, Aline Santos Oliveira é um dos exemplos de como as políticas de ingresso no serviço público são essenciais para promover a equidade. Há um ano, a Doutora em Educação, ingressou como professora no IFRS de Bento Gonçalves por meio das cotas. Segundo ela, o índice de inserção de negros em cargos e instituições de ensino superior tem aumentado gradativamente, mas ainda estão longe do ideal. Prova disso, é a forma com que é recebida em sala de aula. “Alguns alunos relataram estranhamento ao se deparar com uma professora negra. Muitos afirmam que sou a primeira professora negra em todo o seu trajetar formativo”, comenta.
Para ela, ser professora negra tem provocado movimentos importantes em dois sentidos. “Para alunos negros, a importância da representatividade em lugares antes não acessíveis e o lugar de fala que se fortalece a partir de abordagens teórico-metodológicas que dialogam com seus contextos; já para os não negros, cria-se a experienciação de modos outros de produção de conhecimento antes invisíveis no contexto formativo”, finaliza.