Após uma década da criação da Lei, os números seguem alarmantes. Especialistas e instituições de Bento Gonçalves relatam avanços, mas reforçam que a violência de gênero ainda exige respostas mais efetivas

A Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015) completa dez anos em 2025, representando um marco na luta contra a violência de gênero no Brasil. A legislação alterou o Código Penal para incluir o feminicídio como uma qualificadora do crime de homicídio, definindo-o como o assassinato de mulheres em razão do gênero, especialmente em contextos de violência doméstica, menosprezo ou discriminação à condição feminina. Como crime hediondo, as penas para os agressores foram endurecidas, variando entre 12 e 30 anos de reclusão, sem possibilidade de anistia ou indulto. Além disso, a lei reforçou a necessidade de aprimoramento das políticas públicas voltadas à proteção das mulheres e ao fortalecimento da rede de apoio às vítimas.

Desde sua implementação, a Lei do Feminicídio trouxe mudanças significativas no enfrentamento à violência doméstica e de gênero. O crime passou a ser investigado com maior rigor, e a tipificação específica ajudou a dar visibilidade ao problema, incentivando a formulação de políticas públicas mais eficazes e o fortalecimento dos mecanismos de denúncia. No entanto, os desafios persistem. Ainda há dificuldades na aplicação das medidas protetivas, no atendimento especializado às vítimas e na garantia de suporte contínuo para que elas possam romper o ciclo de violência. Além disso, a revitimização das mulheres em processos judiciais e a demora na execução de medidas emergenciais continuam sendo entraves no sistema de proteção.

Ao longo da década, a aplicação da lei contribuiu para um aumento das denúncias e para a conscientização da sociedade sobre o tema. Segundo dados do Ministério da Justiça, quase 12.000 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil desde a criação da lei, com um crescimento alarmante de casos ao longo dos anos. Em 2015, foram registrados 535 feminicídios, número que passou de 1.200 em 2024.

Patrícia Da Rold é coordenadora do Centro Revivi e da Coordenadoria da Mulher

Em Bento Gonçalves, a realidade também preocupa. De acordo com a professora Joana Alvares, psicóloga clínica e Conselheira do COMDIM – Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Bento Gonçalves, “estima-se que 11,1% dos assassinatos do município são de mulheres vítimas de violência, sendo a segunda causa de morte entre mulheres de 20 a 39 anos. Em sua maioria, são mortas dentro da própria residência por parceiros ou ex-parceiros”, afirma.

Conscientização e enfrentamento

A coordenadora do Centro Revivi – Centro de Referência da Mulher e da Coordenadoria da Mulher, Patrícia Da Rold, destaca que a lei ajudou a impulsionar a conscientização e a encorajar as denúncias. “As mulheres passaram a compreender que é de suma importância denunciar qualquer tipo de violência, pois ela é progressiva. A denúncia é fundamental para interromper o ciclo da violência antes que chegue ao feminicídio”, afirma.

Nos últimos anos, o número de atendimentos no Centro Revivi tem aumentado. “Acreditamos que isso se deve ao crescimento das denúncias, impulsionado pelas campanhas de conscientização. Quando as mulheres sabem que existe uma rede de proteção no município, se sentem mais seguras para buscar ajuda”, explica Patrícia.

Além das barreiras emocionais e financeiras, muitas vítimas enfrentam dificuldades ao buscar ajuda. O medo da retaliação, a dependência financeira e a falta de apoio social são desafios recorrentes. Para enfrentá-los, o Centro Revivi oferece acompanhamento psicossocial, buscando fortalecer as mulheres para que consigam recomeçar suas vidas longe do agressor. “Também realizamos encaminhamentos para a Secretaria da Saúde, da Educação, do Desenvolvimento Social, Poder Judiciário e Ministério Público, garantindo um suporte integral às vítimas”, acrescenta Patrícia.

A violência doméstica e o feminicídio, no entanto, ainda enfrentam desafios. Joana ressalta que o impacto psicológico da violência pode gerar um fenômeno chamado “aprendizagem da impotência”, em que a vítima internaliza a ideia de incapacidade e dificuldade de sair do ciclo do abuso. “A dependência emocional e financeira são grandes barreiras”, pontua. O atendimento psicológico tem sido cada vez mais procurado, inclusive de forma online, permitindo um maior alcance, principalmente para mulheres que vivem em regiões onde o suporte presencial é escasso. No entanto, a revitimização dentro do sistema de justiça ainda é um grande obstáculo para muitas vítimas.

Rede de apoio e prevenção

Joana Alvares é professora da FSG Bento Gonçalves, psicóloga clínica e Conselheira do COMDIM

Bento Gonçalves se destaca pela estrutura de atendimento às mulheres vítimas de violência. O município conta com a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), a Patrulha Maria da Penha e o Conselho Municipal de Direitos da Mulher (COMDIM). Além disso, está em fase de implementação a Sala Lilás nas dependências da UPA e uma Casa de Acolhimento para mulheres em situação de risco.

A coordenadora do Revivi ressalta que a instituição atua durante todo o ano com ações educativas. “Realizamos palestras em escolas, indústrias, sindicatos, igrejas e comércios, além de projetos como a Caravana da Mulher, que leva a equipe do Revivi aos bairros, fazendo atendimentos in loco e distribuindo material informativo. Também promovemos blitzes orientativas e eventos especiais em campanhas como o Agosto Lilás e os 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher”, detalha Patrícia.
Além dessas iniciativas, o Centro Revivi busca constantemente novos recursos para fortalecer a rede de apoio. Em 2022, a instituição foi contemplada com um edital de reaparelhagem do espaço, e em 2024 conseguiu recursos para a aquisição de um veículo por meio do governo estadual. “O município tem uma rede de proteção estruturada, servindo como referência para outras cidades que desejam criar seus próprios centros de atendimento às vítimas”, destaca Patrícia.

Outro ponto fundamental é a articulação da Rede de Proteção à Mulher no município. “Os órgãos realizam reuniões periódicas para alinhar ações e garantir que todas as instituições trabalhem de forma integrada, reforçando a segurança das vítimas”, explica a coordenadora do Revivi.

Para Joana, a educação emocional e o fortalecimento da autoestima são fundamentais para prevenir a violência. “Precisamos promover uma educação pautada na equidade de gênero, desde a infância, abordando temas como respeito, resolução de conflitos e empatia”, afirma.

O papel da sociedade

O combate ao feminicídio não depende apenas das instituições. “Todo cidadão pode e deve denunciar qualquer tipo de violência”, enfatiza Patrícia Da Rold. Denúncias podem ser feitas pelo telefone 180, além da DEAM, do Centro Revivi e das autoridades policiais.

Para Joana Alvares, a prevenção do feminicídio exige uma atuação coletiva. “A família e os amigos das vítimas devem oferecer acolhimento, sem reforçar discursos de culpabilização. Além disso, é fundamental o fortalecimento das políticas públicas e a capacitação dos profissionais de segurança e saúde para lidar com esses casos de forma sensível e eficaz”, conclui.

Após dez anos de vigência da legislação, ainda há desafios na sua aplicação. O fortalecimento da rede de apoio, a ampliação da conscientização e a participação da sociedade são fatores essenciais para aprimorar a proteção das mulheres e garantir sua segurança.