Doutoras e mestrandas refletem sobre suas trajetórias, desafios e conquistas no âmbito científico, onde ainda há uma maior predominância masculina.

Segundo os dados do relatório Elsevier-Bori, a participação das mulheres nas ciências, como autoras, cresceu 29% nos últimos 20 anos no Brasil. Em 2022 esse número era de 49%. Com isso o país ocupa a 3ª posição entre as nações com maior integração feminina.
Apesar dos dados animadores, os resultados mostram também que a participação feminina é mais intensa entre as jovens cientistas, decaindo ao longo do tempo. Outro ponto de atenção, é que a concentração de mulheres em áreas consideradas “masculinas” não é muito grande, como matemática, 19%, ciências da computação, 21%, e engenharias, 24%.
Olhando para a realidade de Bento Gonçalves e região, é possível verificar pesquisadoras empenhadas e apaixonadas por suas áreas de atuação, como a Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Viticultura e Enologia do IFRS, Shana Sabbado Flores.

Shana Sabbado Flores, Coordenadora do Programa De Pós-Graduação em Viticultura e Enologia do IFRS

Sua graduação foi em Administração, com bolsa de pesquisa na área da sustentabilidade e estágio no polo petroquímico. Realizou mestrado em gestão e sistemas de informação da cadeia logística, em Grenoble, França, e trabalhou em uma multinacional por um tempo. “Voltei a colaborar em um projeto de pesquisa e a paixão pela área acadêmica voltou. Então fiz mestrado em geografia e depois doutorado, com dupla diplomação Brasil-França. Procurei a geografia para ter mais base teórica nas discussões de sustentabilidade. Nessa busca acabei encontrando os vinhos, uma área que trabalho até hoje”, conta.
Campo de estudo similar à de Juliana Toniolo Rossatto, formada em Enologia pelo IFRS, com especialização em viticultura e formação em sommelier internacional pela FISAR/UCS.
Atualmente é mestranda em viticultura e enologia com dissertação sobre indicações geográficas e sustentabilidade. Juliana conta que sempre viveu em meio aos vinhedos, na linha Eulália, o que contribui para sua escolha de formação.
Outra apaixonada por vinhos é a mestranda Allana Decarli. Durante o ensino médio realizou o curso técnico em Viticultura, de 2017 a 2019, após ingressou no curso superior em Viticultura e Enologia, passando para o mestrado profissional, também em Viticultura e Enologia, em agosto do ano passado.
Allana explica que o processo de graduação foi desafiador por conciliar os estudos com a prática. “Por ser um curso vespertino, muitas vezes foi preciso se ausentar do trabalho para frequentar as aulas”, conta.
Já para Raquel Cristina Balestrin, professora da Universidade de Caxias do Sul e doutoranda do Programa de Pós graduação em Genética e Biologia Molecular da UFRGS, a paixão pela genética surgiu ainda no ensino médio. Ela chegou até a considerar cursar medicina, antes de saber sobre o Bacharelado em Ciências Biológicas da UFRGS. “Quando ingressei na UFRGS, em 1998, o currículo foi reformulado, reduzindo as ênfases a apenas duas: Ambiental e Biologia Celular, Molecular e Funcional. Escolhi esta última, que se alinhava ao meu interesse pela Genética”, relembra Raquel.
As quatro pesquisadoras salientam que o apoio da família foi muito importante para suas formações. Juliana foi a primeira da família a ter um curso superior e afirma que, “se eu tivesse optado por qualquer outro curso eu tenho certeza que eu teria sido muito bem recebida e apoiada”, afirma.
Durante a graduação Juliana teve a oportunidade de realizar estágios de safra na Casa Valduga, na Chandon do Brasil e na Cooperativa Vinícola Aurora, o que foi importante para seu crescimento profissional. Após a formação foi atuar na área comercial de uma vinícola em Pinto Bandeira, o que oportunizou seu ingresso na Asprovinho (Associação de produtores de Vinho de Pinto Bandeira).
Raquel conta que a graduação foi intensa, tanto pela adaptação de morar em Porto Alegre, quanto pela carga horária considerável do curso, com viagens entre o campus do vale pela manhã e no campus central à tarde. Mas sempre obteve apoio dos grupos de estudo e da família. “Durante a maior parte da graduação, morei na Casa do Estudante da UFRGS e visitava minha família em Bento Gonçalves algumas vezes por semestre para matar a saudade, buscar os congelados feitos pela minha mãe (risos) e rever amigos”, relembra Raquel.

Os desafios da carreira

Allana Decarli mestranda de Viticultura e Enologia


Para Allana, os desafios fazem parte da carreira, principalmente na área da viticultura, pois se depende muito do solo, do clima e esses fatores interferem na elaboração do vinho desejado. Mas são esses desafios diários que auxiliam na formação profissional, como na pesquisa. “Às vezes a gente tem uma ideia de seguir com uma linha de projeto e no meio do caminho é preciso modificar alguns conceitos, alinhar novamente, mas elas são fundamentais para que a gente consiga parar e ajustar as nossas convicções”, afirma Allana.
Raquel relembra que o seu curso era diurno, o que não permitia trabalhar paralelamente, mas, por causa disso, acabou se envolvendo em projetos de pesquisa, como no projeto do Laboratório de Diagnóstico Veterinário do Instituto de Biotecnologia da UFRGS. “Ao final da graduação, decidi direcionar minhas pesquisas para a Genética Humana e segui para o Mestrado nessa área”. Hoje, Raquel segue no Doutorado a pesquisa que iniciou na graduação e no mestrado com ênfase no Aconselhamento Genético para Doenças Raras.
Shana conta que as escolhas acadêmicas que realizou ao longo do caminho não faziam sentido para a maioria das pessoas, mas que foram elas que trouxeram o conhecimento necessário para os projetos que hoje desenvolve. Além da graduação, Shana conciliava os estudos com o trabalho em projetos de pesquisa, extensão, consultorias em empresas juniores ou estágios, além de cursar mais 3 línguas estrangeiras. “No Brasil, a maioria de nós precisa conciliar trabalho e estudo, o que pode ser bastante desafiador. Hoje converso com os estudantes adultos e quando conto sobre a minha graduação, fico pensando que hoje provavelmente eu não teria energia para fazer tudo isso de novo (risos)”, salienta a coordenadora.
Outro desafio, presente no mercado de modo geral, é a presença feminina na viticultura. “Ainda há uma predominância da figura masculina, mas cada vez temos mais mulheres ingressando na área e cada vez mais mulheres conduzindo degustações, sendo responsáveis técnicas por vinícolas dentro do setor, presentes também nas pesquisas e ciência. Acredito que isso vai aumentar ainda mais”, reflete Allana.
No ano passado Juliana foi bolsista em um projeto do IFRS, e por ser um mestrado com foco no mercado de trabalho e em pessoas que já atuam na área, Juliana conseguiu conciliar sua pesquisa, de indicação geográfica, com o trabalho na Asprovinho, que também possui indicação geográfica.

Os desafios relacionados à maternidade e ao gênero


Shana relembra que passou por momentos em que parecia que seu gênero era um empecilho para a caminhada, mas que nunca desistiu, pois, oportunidades melhores sempre vieram. “Pensando na vida acadêmica e nos cargos de gestão em si, talvez o que mais incomode é que o fato de ser mulher abre precedentes para outros questionamentos que fogem da esfera profissional e vão para a vida privada. Coisas do tipo ‘você não vai mais conseguir trabalhar assim, ou fazer essa viagem, ou fazer esse projeto, depois que tiver filhos’ ou ‘o que o seu marido pensa disso?’ Vi colegas e, inclusive, familiares serem afastados de programas de mestrado ou doutorado porque estavam grávidas”, conta.
Shana é mãe da Sophia, de seis anos, e afirma, com orgulho, que ela é o seu “melhor trabalho e mais belo projeto. Somos muito companheiras. Penso ser importante não só na maternidade, mas na vida, o tempo de qualidade e estar presente. Organizo a rotina para poder ter tempo de qualidade com ela e também fazermos atividade juntas e em família”, revela.
Raquel também percebe que há mais barreiras para as mulheres nas ciências do que para os homens, principalmente quando se trata de cargos de liderança, e quando há presença feminina existe também a necessidade de provar a competência constantemente. “Alguns estudos apontam que mulheres submetem menos projetos e, quando submetem, recebem menos recursos em comparação aos homens. A sub-representação das mulheres na concessão de bolsas de produtividade e em premiações acadêmicas reforça a necessidade de políticas públicas que incentivem maior equidade”, afirma Raquel.
Raquel é mãe da Isabella, de 19 anos, e do João Gabriel, de 13 anos, e conta que conciliar a maternidade e a carreira acadêmica foi um grande desafio. “A carga de trabalho na ciência é intensa e, muitas vezes, faltam políticas institucionais que facilitem esse equilíbrio. Por esse motivo, demorei a retornar à minha formação e a ingressar no Doutorado.” Ela explica que aguardava que os filhos tivessem mais autonomia para que pudessem viajar com mais frequência e se dedicar mais à pesquisa sem comprometer o papel de mãe. “Ainda há muito a ser feito para que a maternidade não seja um obstáculo para a progressão das mulheres na ciência, mas iniciativas como o ‘Parent in Science’ têm trazido visibilidade a essa questão e promovido mudanças importantes”, reflete Raquel.

Juliana Toniolo Rossatto mestranda em viticultura e enologia

Juliana é mãe do Antônio, e revela que ele foi a inspiração para ela retornar aos estudos. “Como o Antônio ia iniciar a escola, e meu trabalho é home-office, eu senti que precisava dar o exemplo para o meu filho”. A pesquisadora reflete que a academia, de modo geral, não está pronta para as mães, pois é uma responsabilidade que requer bastante tempo e atenção, mas que sempre conseguiu superar com a ajuda e apoio da família e da Asprovinho. “O meu maior desafio até agora foi quando fui chamada, em novembro do ano passado, para a jornada acadêmica nas Ilhas Canárias na Espanha. Foram 15 dias somente apresentando o mestrado e realizando visitas técnicas, todas ligadas à minha área de pesquisa. Nunca tinha ficado tanto tempo longe do meu filho, mas meu marido assumiu toda a função de cuidados, sempre me apoiando e incentivando,” conta a pesquisadora, que retornará às Ilhas Canárias para ministrar duas degustações do vinho D.O. Altos de Pinto Bandeira. A viagem é uma parceria entre o IFRS e a faculdade de La Laguna.

Conquistas inesquecíveis

Raquel Cristina Balestrin, professora da Universidade de Caxias do Sul


Mas nem só de desafios é feita a carreira destas pesquisadoras. Allana lembra que seu momento inesquecível foi ser a segunda colocada para o mestrado. “Mesmo sendo jovem, ainda não tendo tantas publicações, tanta experiência no setor e anos de carreira quanto os demais colegas, mas percebendo que o meu projeto de pesquisa era interessante, havia sido muito bem pontuado e tinha grande potencial para ser resolvido”, relembra Allana com orgulho.
Para Shana as conquistas mais importantes são o reconhecimento diário, seja dos alunos ou da sociedade. “No ano passado uma aluna estava indo apresentar seu trabalho de pesquisa em um evento na Espanha e antes de viajar ela me escreveu e disse que graças ao meu empenho diário na pesquisa e no mestrado ela estava tendo aquela oportunidade. Essas são as conquistas que mais me emocionam e fazem todo esforço valer a pena!”, finaliza a coordenadora.
Juliana conta que sua maior conquista é sua família e seu filho Antônio. “Geralmente as conquistas são atreladas a carreira, mas não posso deixar de pensar que já alcancei minha maior conquista, meu filho”, explica Juliana com orgulho.
Para Raquel, a graduação na Universidade Federal foi uma das conquistas mais marcantes de sua vida. “Ser a primeira pessoa da família a concluir um curso superior, após toda a minha trajetória em escolas públicas, foi uma conquista indescritível.” Além disso, a pesquisadora conta que o retorno à formação, ingressando no doutorado, e cada passo de sua pesquisa tem um valor significativo. Raquel finaliza afirmando que “saber que minha trajetória pode inspirar outras pessoas a persistirem em seus objetivos é, sem dúvida, uma das maiores realizações da minha vida.”