O fantástico da vida é que vivemos um dia de cada vez e nada nos abala de tal forma que não consigamos seguir adiante, por mais difícil que pareça. Há exatamente um ano, passear até Guaporé parecia um programa inocente de fim de semana. Visitar uns parentes, pescar no rio, tomar café no posto de Santa Bárbara, uma salada de fruta próximo à ponte (para quem viria de Veranópolis), uma ida às casas de veraneio ao entorno das Antas, tudo parecia muito comum. Hoje, tentando recomeçar a vida, o caos tomou conta do cenário. Uma tristeza que acomete o coração, um vazio diante da imensidão, medo, sensação de abandono. Não sobrou pedra sobre pedra. O rio, calmo, esverdeado, límpido, contornando os obstáculos, não parece que agiu com tanta fúria. Difícil imaginar como foi, mas os rastros não negam.

Vista limpa, casas destruídas, mata aberta, entulho e margens aumentadas, nada de animais, estradas esfaceladas, capitéis recém feitos na beira da estrada. Minha mente se esforça, mas não consegue rememorar a paisagem. Tudo que restou são lembranças. Difícil querer recomeçar pela terceira vez em um ano. Falta fôlego. Sobra medo.

Há um ano, eu também perdi meu pai dois dias antes do dia dos pais. Há um mês, perdia meu segundo pai que sempre fez bem esse papel. Igualmente difícil recomeçar. A gente sofre ininterruptamente, fica com medo, perde o medo, volta a sorrir e a chorar de forma intercalada. E a vida não volta ao normal.

Esse é o “novo normal”, como foi pós pandemia. Assim como a clareira no meio dos morros, no coração também há um buraco. Nem sei se parece verdade. A memória briga com a realidade. Parece que a gente anda em viagem e um dia vai voltar tudo como era há um ano. Mas conforme passa o tempo, vemos que não fecha a cicatriz, sara, apenas.

Descer Faria Lemos, tomando chimarrão, rindo da vida com meu pai, algo que era tão comum, virou atípico. Utopia. Esse era um dia fantástico e a gente não sabia, estávamos concentrados esperando mais da vida. Que inocência! Esses eram os momentos de glória que tínhamos. Será que eu agradecia por eles?
O bom da vida é que não há nada como um dia de cada vez. Se os momentos bons passam rápidos, os difíceis também hão de passar. E a gente se vê obrigado, a cada dia, a recomeçar. Replantar o parreiral.

Refazer a casa. Aprender a conviver com uma cadeira vazia na mesa. Olhar pra fora e não ver mais alguém sentado no banco. Descer Faria Lemos e não encontrar mais a tenda do Neco. Ir pra Guaporé sem ver pessoas sorrindo e bebendo na Alcântara. Ficou difícil.

A gente vive um mix de sentimentos pesados. Um luto coletivo para nossa cidade, nós, que sempre fomos tão acolhedores. Há um ano, eu ria mais da vida. Há um ano, a gente achava que estava no paraíso. Há um ano, outras eram as nossas preocupações.

Ainda bem que o tempo passa, que a chuva cessa, que o inverno se vai para logo mais a primavera revigorar e pintar o céu de azul outra vez. Ainda bem que há um dia após o outro. Ainda bem!

Tomara que daqui a um ano possamos já ter reconstruído a vida. Assim como foi na pandemia. Tomara que possamos descer Faria Lemos rindo, ouvindo música, admirando a paisagem, por mais que as marcas continuem nos fazendo lembrar. Que o luto passe, que o espírito de solidariedade perdure entre nós.

Que seja um motivo para nos reerguermos com força, mais sábios quanto ao poder que tem a natureza. Nada como um dia após o outro. Como diz a personagem Dori, no filme Procurando Nemo: “quando a vida decepciona, qual é a solução? Continue a nadar”.