Estudo revela dano devastador causado pelas inundações e deslizamentos de terra e aponta a necessidade de intervenção nas políticas de saúde mental
Após as recentes enchentes e deslizamentos de terra que assolaram o Rio Grande do Sul, uma preocupação adicional emerge: o impacto significativo nas condições de saúde mental da população. Um estudo conduzido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em conjunto com o Hospital das Clínicas de Porto Alegre revelou que a maioria dos gaúchos está enfrentando sérios problemas psicológicos decorrentes das enchentes.
Transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade, depressão e esgotamento profissional foram identificados como os principais problemas enfrentados pela população afetada. A pesquisa, que ainda está em andamento, examinou cerca de mil das duas mil e quinhentas respostas a questionários aplicados durante três semanas aos moradores do estado.
Os resultados são alarmantes: aproximadamente 90% dos participantes relataram sofrer de ansiedade, sessenta por cento apresentaram sinais de burnout e metade está lutando contra a depressão. Surpreendentemente, mesmo aqueles que não tiveram suas casas afetadas pelas enchentes foram afetados psicologicamente.
De acordo com o médico psiquiatra do Tacchini Saúde, Rodrigo Tramontini, as consequências de passar por uma situação de estresse traumático, como é o caso dos eventos climáticos que seguem assolando o Rio Grande do Sul, variam de acordo com a pessoa e o tempo transcorrido da situação. “Sintomas incluem pensamentos e sentimentos negativos persistentes, memórias involuntárias e pesadelos ligados ao episódio, sensação de estar revivendo o evento, o chamado flashback, e reações emocionais e fisiológicas intensas e evitação de qualquer sinal ou situação que lembre o ocorrido. Insônia, amnésia, irritabilidade e problemas de concentração também são comuns”, explica.
As situações apontadas por Tramontini, são destacadas em uma enquete realizada pelo Semanário nas redes sociais. O resultado mostra que 90% dos participantes envolvidos diretamente ou indiretamente com a tragédia climática, dizem que ainda seguem com medo. Outros, 10% garantem já ter superado o trauma. Em razão disso, o psiquiatra aponta quais caminhos podem ser buscados para minimizar os problemas desencadeados pela situação pós-traumática. “O primeiro passo é compreender o motivo de a pessoa estar dessa maneira, sem fazer julgamentos e acusações sobre seu comportamento. O segundo é propor uma avaliação com um(a) psicólogo(a) ou psiquiatra, já que o trauma pode e deve ser adequadamente tratado por um profissional capacitado. Não basta sugerir, por exemplo, que a pessoa pense positivo, que “esqueça isso” ou que pare de pensar; isso não funciona e pode agravar o quadro”, enfatiza.
Em alguns casos, o uso de medicação é recomendado. Entre as indicações, segundo Tramontini está o uso de ansiolíticos e antidepressivos que podem ser utilizados quando os sintomas são muito intensos. O psiquiatra afirma que muitos casos são tratados somente com psicoterapia. “O tipo de psicoterapia varia, mas é recomendável que se utilize alguma técnica comprovadamente eficaz para esse tipo de transtorno. A combinação de medicações e psicoterapia é bem utilizada e pode ser melhor do que o efeito de uma ou outra isoladamente”, afirma.
Afim de reduzir os danos causados por estes períodos de estresse pós traumático, o profissional enfatiza ainda que é importante ressaltar a maneira como a pessoa é acolhida e assistida nas primeiras horas após o evento, pois pode influenciar muito na chance de ela desenvolver o trauma. “Por isso os chamados ‘primeiros socorros psicológicos’ são tão importantes nesse período inicial, já que sua aplicação realmente diminui as chances de ocorrência do transtorno”, observa. “Em termos de tratamento, deve-se sempre buscar a orientação de um profissional de saúde mental que possa indicar a melhor conduta. O tipo de tratamento e as orientações dependem muito de cada caso, mas, como disse anteriormente, devem ser baseados em evidências científicas de que são mesmo benéficos”, pontua.
Trauma coletivo deve ser tratado com rede de apoio
Além da população atingida diretamente com os episódios, boa parte da população gaúcha, afetada indiretamente, também sofre com a situação. De acordo com Tramontini, esse trauma coletivo deve ser tratado, mas não com terapias individuais. “Devemos tratá-lo coletivamente, com união e apoio mútuo. Lembro que o principal atributo do ser humano não é a inteligência, mas a capacidade de cooperação”, revela.
Apoio da família é fundamental, diz psicóloga
Outro ponto indicado para superar problemas relacionados é o apoio da família, considerado, na maioria das vezes, fundamental para indivíduos que enfrentam problemas de estresse pós-traumático. Segundo a psicóloga Leticia Azevedo, o núcleo familiar proporciona um suporte emocional crucial durante momentos difíceis. A presença constante e o encorajamento dos entes queridos ajudam a aliviar a carga emocional, promovendo um ambiente de segurança e compreensão. Segundo ela, a família desempenha um papel vital ao oferecer conforto, ouvir atentamente e incentivar a busca por ajuda profissional, contribuindo significativamente para o processo de recuperação e resiliência do indivíduo afetado.
Outra indicação da psicóloga está atrelada à manutenção de uma rotina de autocuidado. “É necessário manter a saúde equilibrada, com a prática de exercícios físicos, alimentação saudável e sono adequado. Aprender sobre o transtorno pode ajudar a entender e lidar melhor com os sintomas”, revela.
A profissional destaca ainda que a prática de técnicas de relaxamento, como é o caso da respiração profunda e meditação, são grandes aliados no combate a problemas relacionados com episódios de estresse pós traumático. “Manter um diário para registrar e processar pensamentos e emoções, evitar o uso de álcool e drogas como forma de lidar com os sintomas, participar de grupos de apoio com outras pessoas que passaram por experiências semelhantes, podem auxiliar no tratamento”, garante.
Leticia também é enfática ao afirmar que políticas públicas direcionadas a este segmento da sociedade também precisam estar entre as prioridades do Poder Público. Entre os principais pontos, ela destaca o acesso as ações de saúde mental. “Expansão de serviços gratuitos ou de baixo custo para atendimento psicológico e psiquiátrico, além da realização de campanhas para educar a população sobre TEPT e reduzir o estigma associado à busca por ajuda”, indica.
Além disso, um olhar especial às comunidades afetadas, com a realização de atividades que auxiliam as vítimas a reduzirem traumas ocasionados pelos episódios. “Intervenções específicas em áreas afetadas por desastres naturais, como enchentes, incluindo suporte psicológico imediato e de longo prazo”, orienta e complementa: “Iniciativas para fortalecer a resiliência comunitária e prevenir o desenvolvimento dos traumas em populações vulneráveis, também são extremamente importantes”, garante Leticia.