Crianças e adolescentes sem supervisão de responsáveis no ambiente digital podem acabar sendo vítimas de crimes, visto que pessoas mal intencionadas, como predadores sexuais e pedófilos têm usado, cada vez mais, destes meios para abordar os jovens
Todo pai, mãe ou responsável legal, possivelmente, orienta seus filhos, sejam eles crianças ou adolescentes, para não dialogarem com estranhos, olhar para os dois lados ao atravessar a rua e, até mesmo, não aceitar doces de pessoas desconhecidas. Da mesma forma, é crucial que esses cuidadores alertem seus filhos sobre os perigos da Internet. A informação é a melhor defesa, permitindo que crianças e adolescentes compreendam os reais riscos e ameaças online e se protejam adequadamente. A família desempenha um papel fundamental nesse processo de conscientização.
Recentemente, o Brasil enfrentou um aumento alarmante no número de denúncias relacionadas à disseminação de imagens de abuso sexual infantil na web. A SaferNet Brasil, uma ONG dedicada à defesa dos direitos humanos na Internet, registrou quase 72 mil denúncias desse tipo de crime no último ano, um aumento de 77% em relação ao ano anterior e o maior número da série histórica, que começou em 2005. A psicóloga e coordenadora da SaferNet Brasil, Bianca Orrico, atribuiu esse aumento a três principais fatores: avanços na Inteligência Artificial, venda crescente de pacotes digitais contendo conteúdo sexual para adolescentes e demissões em massa nas grandes empresas de tecnologia, afetando equipes responsáveis pela segurança e moderação de conteúdo.
O alarmante resultado do levantamento anual se encaixa numa tendência global, que viu, desde 2019, um aumento de 87% no volume de denúncias de material de abuso sexual infantil mundialmente ou pedofilia. Os dados são da ONG internacional WeProtect Global Alliance, que também revelou que, só no ano passado, 94% dos membros de seis fóruns diferentes da chamada dark web, com mais de 600 mil membros ativos e 760 mil postagens, baixaram conteúdo de exploração sexual infantil.
Bianca destaca a importância do diálogo dos pais com seus filhos. “Discutir a relação da criança e do adolescente com o próprio corpo; mostrar como a intimidade dela não deve ser invadida por ninguém. Mesmo se passando por amigos ou pessoas boas nas conversas na internet, é muito importante que as crianças aprendam a proteger seus dados e imagem, tendo esse diálogo com pais e responsáveis sobre o que fazer nessa situação de risco. Desenvolver noções básicas de segurança e de privacidade, além de saber orientar crianças como bloquear contatos indesejados, como denunciar perfis. E principalmente, fazer com que a criança reflita sobre como realizar boas escolhas”, salienta.
Nesse contexto, a presença e orientação dos pais e responsáveis são cruciais para garantir o uso seguro das redes sociais por parte das crianças e adolescentes. A maneira como esses adultos conduzem e supervisionam o uso da Internet pelos jovens influencia diretamente suas atividades online e responsabilidade digital. A infância e adolescência são períodos de formação de valores e comportamentos, onde as referências familiares desempenham um papel vital. Assim, os pais devem orientar e acompanhar ativamente as atividades online de seus filhos, incentivando o uso de aplicativos e plataformas que priorizem a segurança.
Estabelecer acordos é uma forma eficaz de definir limites para o uso da internet pelos filhos. É essencial construir uma relação de confiança e destacar a importância de não compartilhar informações pessoais ou hábitos diários online. Alertar sobre os perigos de confiar em estranhos e a necessidade de discernir a veracidade das informações online também é fundamental.
Entre as recomendações para os pais, estão o monitoramento regular das atividades na internet dos filhos, respeitando sua privacidade conforme a idade, e ter acesso às senhas de dispositivos e redes sociais. Além disso, é importante conscientizar sobre os riscos associados à publicação de fotos de crianças seminuas, que podem ser exploradas por redes de pedofilia. Em suma, a orientação ativa dos pais e responsáveis é essencial para garantir o bem-estar das crianças e adolescentes no ambiente digital.
Uma realidade bem próxima
A facilidade de criar perfis falsos em redes sociais e salas de jogos, por exemplo, é um prato cheio para os pedófilos virtuais, que podem se passar por alguém mais novo e se aproximar dos jovens, criando laços de confiança e explorando a vulnerabilidade da criança ou do adolescente para conseguir fotos, vídeos ou até mesmo marcar encontros.
Nesse caso, o abusador pode usar “iscas”, como um e-mail ou um site com temáticas infantis que atraiam as crianças para explorar fantasias românticas com os adolescentes, por exemplo. Este jogo de sedução e conquista da confiança pode durar bastante tempo. Nessa dinâmica, o abusador pode convencer o jovem a ligar a webcam, enviar fotos, e depois chantageá-lo com esse material, em busca de mais fotos ou de um encontro.
A.M.M, 36 anos, que prefere não se identificar, é pai de Gabriela (nome fictício), de 10 anos. Há alguns anos, a menina tem o próprio celular, que é utilizado sob supervisão dos pais. Recentemente, Gabriela criou um perfil no Instagram, onde compartilhava fotos e vídeos seus e de suas amigas, utilizando filtros divertidos e músicas que estão em alta no momento. “Deixamos a Gabriela utilizar o celular como meio de inclusão, mas eu e a mãe dela estamos sempre de olho. Temos acesso ao aparelho e a todos seus aplicativos, e nossa filha sabe disso e respeita. Já explicamos sobre os perigos da internet e orientamos que ela nos procure caso identifique algo estranho. Não queremos proibi-la de utilizar redes sociais e jogos. Acreditamos que não se pode viver numa bolha, mas é preciso sempre ter bastante cuidado”, comenta.
Depois de alguns dias utilizando o Instagram de forma pública, na qual qualquer pessoa poderia visualizar suas publicações e segui-la, Gabriela recebeu uma mensagem suspeita de um perfil com uma foto de um homem que aparentava estar na casa dos 20 anos de idade, e mostrou para seu pai. “Tenho a conta do Instagram da Gabriela logada no meu celular. Vi que esse homem havia enviado uma mensagem para ela e sabia que não era nenhum conhecido. Simplesmente bloqueei, fiz uma limpa nos seguidores da conta e fechamos o perfil dela. Determinamos que seus seguidores seriam apenas pessoas conhecidas e próximas”, conta.
Pouco tempo depois, outro perfil com a mesma foto insistiu em enviar mensagens para o Instagram de Gabriela e seu pai resolveu, então, responder como se fosse a filha. “Comecei a conversar com ele, que logo introduziu assuntos de cunho sexual, mesmo sabendo que estava falando com uma menina de 10 anos. Ele pediu fotos, vídeos, áudios e disse que também enviaria. Fiquei muito nervoso e mandei um áudio para ele, dizendo que era o pai da criança com quem ele estava conversando. Em seguida, ele excluiu a conta. Na mesma época, vi que ele seguia uma amiga da Gabriela, e alertei a mãe dela”, relembra.
O pai de Gabriela tem os registros de todas as conversas, e divulgou a foto do homem suspeito no grupo de mães e pais de alunos do colégio da filha. Logo a foto viralizou em outros grupos também. Foi então que a delegada Deise Ruschel entrou em contato com A.M.M para tomar seu depoimento. “Fui à delegacia para contar o que havia acontecido e denunciar esse homem. Espero que consigam tomar alguma providência sobre isso, para que outras crianças não sejam vítimas. Sorte que supervisionamos a Gabriela na utilização da internet. É muito importante que pais e responsáveis fiquem atentos ao que os filhos fazem online e com quem conversam e se relacionam, pois pode acontecer algo pior”, ressalta.
Responsabilidade e denúncias
As plataformas em que os jovens têm mais contas são o YouTube (88%), seguido pelo WhatsApp (78%), Instagram (66%), TikTok (63%) e Facebook (41%, o único em franco declínio). Mas, pelo uso, o líder é o Instagram (36%), seguido por YouTube (29%), TikTok (27%) e Facebook (2%), segundo pesquisa do Ministério da Justiça e Segurança Pública.
A informação mais preocupante indica que 17% dos brasileiros entre 11 e 17 anos se sentiram incomodados com conteúdo sexual online: 14% meninos e 21% meninas. Do total, 16% receberam diretamente ou viram conteúdo sexual, 9% receberam pedidos de fotos ou vídeos sem roupa e 5% foram solicitados a falar sobre sexo.
As empresas responsáveis pelas redes sociais implementam algumas medidas para lidar com o problema, como permitir que pais e mães monitorem as atividades de seus filhos nessas plataformas, estabelecer limites de tempo de uso e identificar atividades que possam indicar comportamentos de risco. Embora essas iniciativas sejam positivas, não são abrangentes o suficiente e podem mascarar a verdadeira intenção das empresas de proteger seus lucros e manter os usuários “viciados” em seus produtos.
Segundo a SaferNetBrasil, o pedófilo virtual padrão é homem, tem entre 18 a 55 anos e faz parte das classes A, B e C, com maior presença nos dois extratos mais ricos. O comportamento dos pedófilos na internet pode ser dividido em dois momentos. No início costumam navegar sozinhos em busca de fotos e vídeos, e evitam grupos por medo de serem identificados. Mas isso não quer dizer que não troquem informações, tanto que quando presos, sabem até o que dizer à polícia para evitarem punições mais duras.
Com a atuação cada vez mais forte das autoridades, os pedófilos têm buscado novas formas de compartilhar material evitando a identificação. O ambiente virtual é tão hostil e perigoso quanto o ambiente real, e os abusadores ganham status quando conseguem seduzir novas vítimas.
A expressão “pornografia infantil” vem sendo substituída por “imagens de abusos contra crianças e adolescentes”. Nudez ou sexo com alguém com menos de 18 anos, por definição, não é consensual. Logo, não se trata de pornografia, que pressupõe a participação voluntária de pessoas maiores de 18 anos. A Safernet adverte que quem consome imagens de violência sexual infantil é cúmplice desse abuso.
A pornografia infantil é crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, classificada como violação contra os direitos humanos para quem “apresentar, produzir, vender, fornecer, divulgar ou publicar, por qualquer meio de comunicação, inclusive pela Internet, fotografias ou imagens com pornografia ou cenas de sexo explícito envolvendo criança ou adolescente”.
O crime de publicação de imagens de pornografia infantil prevê pena de três a seis anos de reclusão. O estupro de vulneráveis prevê de 8 a 15 anos de prisão. Além disso, também existe a Lei 12.737/12, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, que tipifica criminalmente os delitos informáticos, e a Lei 13.718/18, que tipifica o crime de divulgação de cena de estupro ou de estupro a vulnerável.
A ONG SaferNet possui um canal de denúncias para crimes cibernéticos, entre eles, a pedofilia na internet e a pornografia infantil. Também é possível denunciar esses crimes através do Disque 100 e 180 ou se dirigir ao Núcleo de Cibercrimes das Secretarias de Segurança dos Estados de uma delegacia da sua cidade.
Por fim, é fundamental ter a reflexão de que as crianças podem utilizar a Internet, porém de forma dirigida e acompanhada pelos pais. Proibir o uso não educa e não previne! O importante é permitir o acesso com regras e limites negociados, para não privar os filhos desta importante tecnologia de comunicação, estudo, diversão e pesquisa. Seja assistindo TV, navegando na Internet ou jogando games, é importante a mediação dos adultos na prática dessas atividades.