Em setembro, as fortes chuvas em parte do Estado praticamente devastaram duas cidades banhadas pelos rios Taquari e das Antas, Muçum e Santa Tereza.
Em Bento Gonçalves, o maior estrago ocorreu na Linha Alcântara, no distrito de Faria Lemos
Domingo, 3 de setembro, dia de chuvas intensas no Rio Grande do Sul. Moradores de localidades próximas aos rios, como das Antas e o Taquari, já previam o pior ao observarem que o volume de água estava além do que normalmente ocorre nas cheias destes dois cursos d’água. O que ninguém imaginava era que as chuvas acumulariam mais de 100 milímetros, em pouco mais de seis horas, resultando em enchentes que cobriram cidades, causando mortes e destruição. Em Bento Gonçalves, na Linha Alcântara, não aconteceram perdas de vida, mas os danos materiais foram enormes.
Pouco restou de uma das casas destruída pelas águas do Rio das Antas no começo de setembro que passou
Na segunda-feira, dia 4, após o domingo chuvoso, a expectativa que os moradores tinham sobre o comportamento dos rios, foi superada. Em muito! Era muita água. “No domingo, estranhamos a quantidade de chuva. Já imaginávamos que iria dar uma enchente. Quando fui, às sete horas da manhã, cruzar a ponte de Cotiporã, o rio estava muito baixo. Já imaginei que subiria muito rápido,” conta o empresário Jussie Cristofoli, 38 anos.
Habituado ao comportamento do rio, aprendizado que herdou de seus avós, compreendeu que a movimentação das águas não era normal, pelo menos não como nas últimas enchentes. “Quando deu nove horas já estava todo mundo vendo que o rio estava subindo muito rápido e começou a correria dos vizinhos. Ao meio-dia já era um absurdo de tanta água, e minha tia, que herdou a casa que era da minha avó, começou a retirar as coisas, mas não deu tempo. Ela perdeu muitos pertences”, lamenta.
Cristofoli lembra que no meio da tarde daquela segunda foi à mecânica próxima da sua empresa, avisou sobre os riscos. Só que muitos não acreditavam que a água poderia invadir casas e estabelecimentos comerciais localizados em pontos nos quais nunca havia alcançado, até então. “Chegou um momento que não tinha mais luz, água e internet. No fim da tarde já tinha passado da altura da última grande enchente, de 2020. Consegui salvar as máquinas porque chamei o guincho, e foi o tempo de carregar e a água entrou, chegou a 30 centímetros”, destaca ele.
O empresário acentua o medo que ele e todas as famílias e moradores da Linha Alcântara presentes sentiram foi desesperador. “O pior de tudo é que na hora parecia um filme, mas foi assustador. As pessoas não paravam de falar do risco de rompimento das barragens, e a Defesa Civil já estava retirando moradores de suas casas. Chovia muito, se ouvia choros, foi intenso”, diz.
Desde então, a cada previsão de chuva mais forte provocada pelo fenômeno El Niño, que está causando sucessivos ciclones no Sul do Brasil, os moradores do lugar já ficam apreensivos. “Não temos mais tranquilidade. O rio nunca havia subido assim, e agora não sabemos se não vai, ou não, acontecer de novo. A maioria dos vizinhos não quer viver esse terror novamente. Nós, felizmente, não perdemos nada, somente os dias que esperamos para voltar a trabalhar”, declara.
Jussie Cristofoli, agora pode sorrir aliviado, mas passou por momentos assustadores durante a enchente
Segundo Cristofoli, para quem não mora na localidade, entender o que aconteceu não é uma tarefa fácil. “Vai ficar na memória, pelo resto da vida, de todos os moradores. Só tem noção do que aconteceu quem esteve no dia na enchente. As pessoas de Bento Gonçalves não conseguem imaginar, porque saindo de Alcântara e chegando em Faria Lemos já não tinha mais nada. Imagina a cena, tua casa está ali e quando vê, sobe uma onda e leva ela embora. Ninguém tem uma reserva de emergência de mais de R$ 200 mil, então, como fazer para recomeçar a vida? Vai passar, mas deixou marcas profundas”, finaliza.
As perdas
Maximina Scapin, aposentada de 87 anos, desde que nasceu vive na Linha Alcântara. Mas jamais viu algo parecido com o que ocorreu no lugar. “Foi bem feio, e triste. Nunca havia subido até aqui em casa. Tem uma oficina mecânica abaixo, e quando vi a correria fui verificar o que estava acontecendo. Me disseram que o rio estava subindo muito ligeiro. Fiquei muito triste, e quando escureceu tocou o alarme para todo mundo sair de casa. Nós pegamos o carro e saímos, foi muito rápido”, lembra.
A aposentada não perdeu totalmente a sua moradia, como alguns de seus vizinhos, mas se viu sob a água dentro da própria casa. “Arrebentou tudo, o telhado furou todo, ficamos na chuva. Eu me protegi das pedras em baixo da parabólica. Foi horrível ver as casas sendo arrastadas, destruídas. Agora o que sobra é o medo, sempre que vem o mau tempo”, reitera.
Casas em baixo da água
Suely Bortoletti é professora aposentada e tem um bar junto com o marido, Sérgio Bortoletti, na frente da Igreja Santo Antônio. “No dia da enchente não havíamos notado, e um vizinho que mora mais abaixo disse para olhar o campo dele. Quando vimos estava pura água, e ela foi subindo bem rápido. Quando percebemos, as casas estavam debaixo d’água”, explica.
Conforme o dia foi passando, o rio subia cada vez mais e cenas nada comuns passaram a acontecer, sucessivamente. “Um sentimento de medo tomou conta, começou a aparecer o prefeito, a Defesa Civil, policiais. Fomos bem amparados, tinha muita gente colocando lona, porque dentro no nosso barzinho chovia como na rua. A água não parava um segundo de subir, e eu já dizia para o meu marido para irmos embora antes que estourasse a barragem. Ele teimou, não queria ir, mas o convencemos”, revelou.
Na terça pela manhã o que restava no lugar era a sujeira depositada pela água, o desespero de moradores ao verem o resultado da tragédia e a tristeza de um dia que jamais será esquecido. “No dia seguinte, quando chegamos logo cedo, não havia mais água, mas vários amigos perderam muita coisa”, lamenta. O que restou para parcela da população de Alcântara, apesar da ajuda do governo e das doações, após dois meses, foi a dificuldade para assimilar as perdas causadas pela enchente.
Perda se aproxima dos R$ 150 mil
Marcio Eugênio Scapin, 40 anos, tem uma mecânica na Linha Alcântara, relativamente distante do Rio das Antas. Por isso mesmo que ele ficou surpreso ao ver a água invadindo a empresa. “Chegou em um nível que sequer consigo lembrar. Mas foi complicado, difícil… Pela manhã, a ponte de Cotiporã estava sendo coberta, e à tardinha já estava entrando água na oficina, o que ocorreu pela primeira vez”, relembra.
Ele diz que contou com a ajuda de muitas pessoas, inclusive de Jussie Cristofli, seu vizinho, que foi quem previu que a água poderia invadir as casas, mesmo as de pontos mais altos do terreno. “Ainda veio um pessoal ajudar a retirar as peças da oficina, mas estoque foi praticamente todo perdido. Nós até começamos a trabalhar porque precisamos, mas ainda não deu para arrumar tudo. Nossa perda está perto dos R$ 150 mil. E muita coisa que não deu para a água levar, ela estraga”, enfatiza.
Scapin observa o temor no rosto dos outros moradores e diz que ele também tem medo. “Está bem difícil, qualquer chuva já deixa todo mundo ansioso e com medo. Temos que recomeçar e trabalhar, mas isso não quer dizer que seja fácil. Foi algo muito rápido e por isso, talvez, a gente até demorou ou para reagir”, conclui.
“Tinha uma casinha e a água levou embora”
Eva e o marido, Aldo Bordignon, perderam a casa em que moravam na linha Alcântara. Para eles, ainda está difícil assimilar o que a vida lhes reservou, aos 77 anos de idade. “Estava em Bento, no hospital, umas 11 horas, e uma mulher mostrou que a água já estava invadindo casas, e me perguntou se conhecia o lugar. Eu disse que sim, que morava bem pertinho. No vídeo já dava para notar que o rio havia subido uns cinco metros, ou mais”, ela conta.
No dia 4 de setembro a água descia pelo Rio das Antas em direção ao Taquari, com muita violência, “Todo mundo começou a ajudar a tirar as coisas do porão da nossa casa, onde eu não pensei que não pudesse entrar a água. Na última cheia, chegou a subir um metro e pouco no porão, e todos diziam que desta vez também não iria entrar na casa. Já a Defesa Civil pedia para tirar tudo de dentro, mas não deu para salvar nem a metade. Quando vi, ninguém mais chegava na casa, foi muito feio”, lamenta.
Para Bordignon, está sendo difícil aceitar, e todas as vezes que lembra do desastre, se sente profundamente triste. “Não sobrou nada onde nós morávamos. Era mais de 50 anos, nunca vi o rio chegar daquele jeito, não sobrou nem a nossa casa. Fomos um dos mais atingidos, só tinha um terreninho e a minha casinha que a água veio e levou embora. Agora preciso pagar aluguel”, lamenta.
Eva e Aldo Bordignon ainda sofrem após a perda da casa que moravam há 50 anos
Segundo o Departamento de Assistência Social de Bento Gonçalves, 251 casas foram atingidas e cerca de 721 famílias foram impactadas, na Linha Alcântara. O cadastramento das famílias foi reponsabilidade da Secretaria de Esportes e Desenvolvimento Social, que apurou as necessidades de cada uma, como móveis, alimentação, roupas e material de higiene. Os programas dos governos Federal e Estadual, apoiam famílias que fazem parte do Cadastro Único, ou que se enquadrem na linha da pobreza. Cinco famílias da localidade estão recebendo auxílios, quatro delas para pagar aluguel, por meio da Prefeitura de Bento Gonçalves.
Fotos: Renata Carvalho