Jane Krüger
Yara. Esse era o nome dela. Forte, firme e rígida. Palavras que prontamente a definem. Difícil apagar as memórias que ela conseguiu esculpir em mim e a maneira como as mesmas ficaram impressas no recôndito de minhas lembranças. Disciplinada. Sim, ela era muito disciplinada e exigia isso de cada um de seus alunos. De forma quase que extrema, diriam nos dias de hoje. Mas para a época, as regras valiam bem. Sobre a sua mesa de madeira que ficava à frente do quadro negro, estavam os cadernos dos alunos, que prontamente levava consigo todos os dias em baixo do braço, para passar as tarefas do próximo dia, e revezava a leva entre as matérias aplicadas na época. Os cadernos tinham que ser cuidadosa e caprichosamente encapados. Quando o aluno não trazia o mesmo bem feito de casa, ela o fazia na sua. Usava-se comumente o papel tigre, um papelão grosso verde, que lembrava as cores do exército. Excelente semelhança. Tínhamos de fato, uma disciplina quase militar. Para quebrar esse estigma – quem sabe, de forma inconsciente- ela pegava as lindas figuras que estavam estampadas nos calendários anuais que os mercados gratuitamente distribuíam aos seus clientes na pequena cidade, e depois de colar a bela figura que geralmente continha elementos do campo: patas com seus patinhos, cachorrinhos dentro de cestos, ou cavalos com lindo pêlo brilhante, evocando um espírito familiar e acolhedor para nós (já que quase todos os alunos tinham algum vínculo com a agricultura e a agropecuária ali).
A imagem mais forte que guardo dela é da maneira como se vestia e se portava todos os dias. E isso me ensinou muito. Confesso que, ao começar escrever sobre isso agora, meus olhos lacrimejam em completa emoção. Professora Yara, vinha todos os dias dar aula para nós, que era numa pequena escola interiorana, para alunos simples e humildes, vestida como se estivesse indo para uma missa de domingo ou num esperado e lindo casamento. Seu traje diário era uma camisa fina de mangas longas, saia abaixo do joelho, tudo muito bem passado e sempre em tons nudes. Se fazia frio, usava ainda um terninho. Usava ainda, diariamente, meias-calças finas, tanto no inverno quanto no verão, acompanhadas de salto médio fino. Detalhe, ela vinha e voltava caminhando de casa para a escola e assim vice-versa, carregada de livros e nossos cadernos. Seus cabelos vinham sempre perfeitamente encaracolados, por certo que passava a noite dormindo sob seus bobs desconfortáveis. Nunca entendi como se aguenta tanto sofrimento voluntário. Exibia também sempre uma leve mas distinta maquiagem. Usava óculos e tinha um olhar firme, quase cortante, porém nele também havia acolhimento e amor. Hoje ao lembrar destes detalhes, fico impressionada. Pois a maneira como se vestia e portava diante de crianças tão pequenas e simples, de uma humilde e pequena escola do interior, fala pra mim a maneira como ela se sentia digna, privilegiada e importante em carregar sobre os seus ombros a responsabilidade da educação. E quão bem ela a representava. A professora Yara não aceitava de maneira alguma erros ou falas, até mesmo borrões eram execrados.
Arrancava a folha fora e tinha que se começar do zero. Tinha que se ser e fazer perfeito. Educação, de fato, é isso, ser excelente para um dia alcançar a perfeição. As letras tinham que ser desenhadas e não somente escritas. Havia um respeito profundo pelo traçado, começar do lado certo cada letra era uma lei e desrespeita-lá teria grave e certo castigo. Hoje isso virou pura confusão. As crianças estão pagando o preço desta indisciplina, inseguras não sabem por onde começar um “a” e mal fazem um “o”. Ainda sobre a mesa, repousava uma longa, dura e firme régua de madeira. Deveria ter um metro de comprimento. Servia tanto para apontar o que queria chamar atenção no quadro, quanto para dar as famosas e temidas palmadas. O aluno que relaxava em suas tarefas e porventura de qualquer maneira a desrespeitasse levava uma, literalmente na palma da mão. Nunca levei uma. Também nunca precisei cheirar parede. Sim, alunos rebeldes tinham que ficar por vários minutos virados de costas para a sala com o nariz colado na parede da sala e não podiam se mover a não ser que a professora dissesse que estavam liberados. Eu buscava fazer meu melhor e mais um pouco para jamais passar por tal constrangimento. Deu certo. Nunca também, vou esquecer o dia que ela me deu um pequeno livro em meu aniversário. Era uma narrativa acerca de um circo. Não lembro muito do enredo. O livro se perdeu. Contudo, lembro que achei tão interessante o mesmo, que propus a mim mesma enquanto o lia, que um dia seria escritora. Não sei se foi o poder do pensamento ou o poder da disciplina que internalizei bem nestes dois primeiros anos de escola que tive com ela.
Arrisco afirmar que, por certo, foi sim, por causa de sua rigidez, e ela já foi muito criticada. Mas posso dizer, que foi bem por isso que, professora Yara conseguiu me moldar tão bem. Não me sentia diminuída pelas suas exigências, pelo contrário: desafiada. Ela acreditava que eu poderia fazer, por isso mesmo exigia, e assim, por mais difícil que fosse, eu fazia. Ah fazia! Tudinho que ela pedia e como disse, mais um pouco. Valeu! Valeu a pena. Minha vida nunca foi fácil e também, desde o primeiro ano do ensino primário nunca abandonei os estudos. Estou com 44 anos e hoje, escrevo este artigo numa rua cheia de restaurantes e bares, linda e iluminada, aqui em Jerusalém, Israel, onde exatamente hoje comecei uma nova etapa em minha vida acadêmica, agora numa das melhores e mais respeitadas instituições superiores de ensino do mundo. Ao ser entrevistada nesta manhã pelo Reitor da universidade, ele me perguntou se não me apavorei com a dificultoso programa e os longos anos de estudo que estão à minha frente. Eu respondi primeiramente com um riso e depois disse:
- Amo estudar, vivo isso é será meu grande prazer me embrenhar em tão grande e difícil seara.
Graças a você, querida professora Yara, com certeza formastes em mim Resiliência, essa incrível capacidade de suportar a dor e crescer através dela. Sabe, faço a seguinte oração, que no mundo se multiplicassem Professoras assim, Professoras Yaras, que amam, vivem e são educação. Que se portam como verdadeiras mensageiras da transformação! Porque educar é formar o presente para transformar o futuro. Parabéns! Você conseguiu isso em mim. Gratidão por tanto e por tudo!